12.26.2005

Razões para viver

Eu era amigo do Hominho, que se chamava Anselmo. Ele era filho de dona Alta, que se chamava Altamira. Ela era amiga da minha mãe, em Baixo Guandu, a cidade plana, quente, de ruas longas e retas na ponta do triângulo formado pelo encontro dos rios Doce e Guandu. As duas eram da Congregação Mariana e usavam véu preto quando entravam na igreja. Com a diferença de que minha mãe usava roupas coloridas, vestidos brancos com bolinhas azuis, saias vermelhas e blusas cor de creme. Dona Alta, para lembrar o marido morto, usava preto e duas alianças grossas no dedo anelar da mão esquerda.

Hominho e eu, a gente tinha oito anos, mas ele era mais baixo. E também era mais ágil e mais veloz para subir em árvores, atravessar rio, correr pelas ruas quando alguém, mais alto ou mais velho, corria atrás de nós. Eu tinha duas cachorras, a Mimosa e a Malvina. Na casa da dona Alta só tinha galinhas e porcos.

E eu estava lá, na casa dela, esperando a hora certa da minha mãe e dona Alta apanharem os véus, os missais e os terços, e saírem pra Igreja. Era em momentos assim que Hominho e eu cometíamos o nosso pecado preferido: caçar lagarta-fogo debaixo do clube, um casarão com a porta principal virada para a praça e os fundos com pernas compridas enfiadas nas águas do rio. O lugar era a nossa piscina, sendo as vigas de madeira entre as pilastras os nossos trampolins. E era também um bestiário, com lagartas, marimbondos violentos, borboletas amarelas, ninhos de passarinhos.

Mas na hora de sair, dona Alta ouviu o ruído no quarto dela. Vinha de algum lugar, era fino, insistente, como um coro de recém-nascidos à procura da mãe. Ninguém mais ouvia, só ela. Por isso, todo o mundo se amontoou no quarto, em silêncio, até que Hominho desse o alerta:

-Ouvi! Ouvi! É no guarda-roupa!

Dona Alta abriu a porta do armário grande, de madeira brilhosa. Tirou casacos guardados em sacos de plástico com naftalina, tirou cobertores grossos, tirou caixas, embrulhos e pacotes. Aí, gritou:

-Ah, meu Deus! É rato!

Hominho e eu pulamos na frente das mães. Passamos entre as pernas agitadas delas e olhamos para dentro do guarda-roupa. No canto, quatro filhotes, menores que dedos, com peles tão finas e sangüíneas quanto lábios de gente muito branca, tão delicados e ingênuos quanto olhos de crianças, procuravam a mãe, que tentava fugir com eles pela boca.

Dona Alta voltou para o quarto com uma vassoura grande, de cabo comprido. Mas minha mãe pediu:

-Vamos embora, Alta. A missa já deve ter começado.

E ficamos nós dois com a incumbência de dar sumiço nos bichos do guarda-roupa. Dona Alta explicou, palavra por palavra:

-Não presta, não serve pra nada, é horrível saber que isso existe. Mata e joga fora.

E ainda explicou:

-As roupas e as caixas, pode deixar. Quando eu voltar da missa, vou limpar o guarda-roupa com álcool para depois arrumar tudo outra vez.

Quando as duas mães saíram para rezar, com os véus, os missais e os terços, Hominho e eu nos agachamos em frente da porta do armário. Os ratinhos se espreguiçavam, esticavam as pernas e os braços, enrugavam as caras, apertavam os olhos pequenos, como se viver fosse atravessar a nado um rio largo, caudaloso e bravo. Com uma força magnífica, abriam as bocas à procura das tetas da mãe.

-Vamos levar eles embora?

Fui eu que tive a idéia.

-Mas a mãe falou pra matar e jogar fora.

-A gente não mata. Só joga fora.

E aí tiramos os sapatos pretos de dentro da caixa. Agarramos a mãe pelas patas, abraçamos os filhotes nas mãos e guardamos a família inteira debaixo da tampa de papelão.

O sol estava bravo quando pegamos uma das ruas muito retas de Baixo Guandu. Atravessamos a praça, descemos a ribanceira ao lado do clube e chegamos, então, no nosso esconderijo com piscina, trampolim e bestiário.

Lá, abrimos a caixa e soltamos a mãe com seus filhotes. Ela cheirou a viga com aflição, rodou sobre o próprio corpo várias vezes, arrastou o rabo na madeira e voltou para os quatros filhos miúdos, quase invisíveis, quase como orvalhos cor-de-rosa vivo. Depois, fomos para casa, pusemos os sapatos de volta no lugar certo e saímos para outro grande pecado, que era o de ir até o cercado da prefeitura para futucar os cavalos, que reagiam com coices bravos.

Por qualquer razão, talvez até falta de tempo, ou coisa mais banal, ou motivo mais sério ainda por entender, nunca mais voltei a Baixo Guandu. Só me lembro do delta das águas, do calor, das ruas muito retas e entrecruzadas. Lembro também dos véus, dos missais e do sino da igreja. E me lembro de 30 anos depois, quando minha mãe me perguntou, como quem, subitamente, puxa pela memória a notícia que já era para ter sido dada há mais tempo:

-Sabe o Hominho?

Olhei para ela, sentada na sombra da castanheira na beira da praia. Os olhos da minha mãe brilhavam. A boca se preparava para anunciar a tragédia. Eu ainda estava em silêncio, na observação desse desenho materno, quando ela completou a frase:

-Se matou.

Esperou que eu reagisse. E continuou:

-Tem uns dois anos já. Encontrei a dona Alta e ela me disse.

Então eu me remexi por dentro para querer saber as razões para se matar.

-Coitado, não agüentou. Tinha dívidas enormes, a mulher dele foi embora com os filhos. Chegou um dia em casa e deu um tiro nas têmporas. Que horror, meu Deus.

Pensei nele. E aí lembrei também que Hominho era capaz de atravessar, como ninguém, o encontro do Guandu com o rio Doce. Que sabia subir, sem escorregar, as pedreiras do morro atrás da serralheria. E que sabia levar ninho de passarinho de um lugar para outro sem machucar os ovos.

Mas foi então que voltou a voz da dona Alta, quando saía de casa, amarrada no luto, presa ao missal. Foi ela quem disse:

-Não presta, não serve pra nada, é horrível saber que isso existe. Mata e joga fora.

12.25.2005

A traição

Ti-Jean e Chris tinham uma vida inteira de coisas em comum. Além de serem amigos de infância, desde os primeiros dias de ir à escola, eram também, os dois, cada um do seu jeito, muito bonitos. Ela, a Chris, se serpenteava quando caminhava, com passos lentos, pelas ruas de Sète, onde a França se despenca em falésias para dentro do Mediterrâneo. Ele tinha o andar empinado, rígido, e, sem se importar com dias quentes ou dias frios, escondia as mãos nos bolsos.

Ti-Jean tinha os olhos insuportavelmente azuis e, por serem grandes e redondos, refletiam o azul contra o sol, contra a lua, contra as lâmpadas de dentro de casa. Ela tinha olhos amendoados, verdes, e, por isso, era conhecida como “Chris aux yeux de chatte”. Era Chris dos olhos de gata. Moravam juntos e dormiam na mesma cama do apartamento velho perto do mar. Numa almofada grande da sala, dormia Rita, chamada Ritá. Era a cadela sem raça, preta, de pernas compridas e olhar sonhador.

Ritá era uma farejadora contumaz. Cheirava tudo. De manhã bem cedo, esfregava o nariz na cama onde Ti-Jean e Chris tinham passado a noite. Vasculhava cada pedaço do lençol e das fronhas, numa intimidade assustadora e ciumenta. Depois, entrava no banheiro grande, de paredes pardacentas, e cheirava a toalha pendurada, o rolo de papel higiênico, a borda da banheira, a calcinha ou a cueca deixadas no chão.

Mas sonhava por Ti-Jean e era ele quem ela mais cheirava. Com o focinho úmido e gelado, percorria os óculos dele, à procura dos olhos azuis cintilantes. O nariz preto e carnudo arfava, se dilatava num ritmo acelerado e miúdo, enquanto cheirava as pernas dos óculos desde a parte atrás das orelhas até as lentes grossas, de míope grave. Gostava também de lamber as sobrancelhas do homem com quem sonhava.

Um dia, as coisas em comum se embaralharam, se intricaram, ficaram confusas e Ti-Jean e Chris decidiram que não iam mais viver juntos. Ele foi ríspido, seco, e viajou para Paris. Queria, finalmente, procurar emprego na cidade onde tinha nascido e que tinha deixado anos antes para viver no calor do sul do país. Chris e Ritá ficaram. Chris chorou na cama, atrás da porta, na cozinha, no banheiro, nas escadas do prédio e nas ruas, por onde andava malemolente e bela com os olhos verdes infernais. Ritá, não. Esperou três dias no corredor onde se abria a porta da rua. Depois, esperou na cozinha, no quarto e no banheiro. Mas não chorou. Apenas esperou.

Até que Chris chegou em casa e não encontrou a cadela preta. Procurou, primeiro, em todos os quartos e cômodos trancados do apartamento velho e imenso. Foi desde a porta da rua até o último quarto, nos fundos, atrás da parede onde ficava a lareira abandonada. Depois, procurou nas ruas, nas praças, nas alamedas. Pôs anúncios em bares, cafés e restaurantes.

E só aceitou o sumiço quando, um mês e meio depois, Ti-Jean voltou para fazer as malas de vez e apanhar Ritá, que havia desaparecido. Ele, com o rosto vermelho e os olhos azuis molhados de lágrimas traídas, xingou e acusou Chris que, então, se trancou no quarto e chorou sobre os olhos verdes.

Mas oito meses depois, ele voltou a aparecer em Sète, e viu, de perto, com uma proximidade quase provocadora, que Chris, sem sair do apartamento grande, inútil e velho, de paredes pardas, esquecia-se dele aos poucos. Para isso, ela abraçava, beijava e ouvia palavras de amor de Luc, o provençal, com olhos castanhos como os de Ritá.

Assim, Ti-Jean disse que ia ficar na casa de Poupette, a amiga enfermeira e gorda, que morava fora da cidade, num campo rodeado de lavandas e rosmaninhos. E foi lá, caminhando no bosque francês, de árvores mansas e flores suaves, que ele, um dia, ouviu um latido fino, sonhador, vindo de um quintal cercado por muro alto.

Olhou pelo portão. Lá dentro, a cadela preta, de pernas compridas, brincava com uma bola, vermelha e azul como a bandeira da França. Da sala da casa, uma mulher viu Ti-Jean no portão. Devagar, com cuidado e atenção, abriu a porta para perguntar o que ele queria. E chamou a cachorra:

-Milou!

E foi quando a Milou se levantou para ir até a mulher, que Ti-Jean, com o coração contorcido, com a voz embalada pela saudade, também chamou:

-Ritá!

A cachorra parou. O som veio de longe, de algum lugar remoto, de memórias velhas. Surpresa, olhou para o portão. Esperou, arfou o focinho e, só então, se preparou para correr em direção aos antigos olhos azuis. Pôs as patas da frente nas grades do portão, abanou o rabo e ganiu baixo, fino. Era o coração dela que também se contorcia. Em seguida, enquanto a mulher se aproximava, Ritá correu para dar a volta em todo o quintal. Ti-Jean e a mulher já estavam próximos um do outro. A cachorra apareceu na rua, solta e tonta de felicidade.

Ti-Jean decidiu que não ia explicar nada. O portão estava fechado, a mulher teria que voltar para apanhar a chave. Ele, então, se afastou com passos rápidos e chamou:

-Ritá, viens!

Ela foi. Levantou novamente as patas e se apoiou nas pernas dele. Cheirou as calças, a cintura, as mãos, a braguilha onde permanecia, forte e vivo, o mesmo aroma do lençol de antigamente. Os ganidos eram marcados pelos movimentos firmes e quase desesperados do rabo preto.
A mulher gritou:

-Milou, Milou!

A cachorra abaixou as patas e olhou para o portão. Sorriu. Olhou para Ti-Jean. Chorou com sons finos, quase inaudíveis. Abaixou a cabeça. Ele pediu que ela continuasse ao lado dele, mas a mulher voltou a chamar. Ritá parou.

A mulher e o homem se olharam. A cadela, preta como um pedaço de noite sem lua, voltou para perto de Ti-Jean e cheirou tudo, com a alegria ávida e tresloucada dos reencontros súbitos que não servem para nada, que não aliviam a saudade nem a pena da separação. Então, latiu alto, com raiva, maldade e dor.

Correu de volta pela rua até reaparecer no quintal, atrás do portão. Sem tirar os olhos de Ti-Jean, viu quando ele se afastou e começou a ir embora. Ela lambeu a mão da mulher e, mais uma vez, com ansiedade, correu para fora. Ele acelerou o passo, como quem foge, e ela acompanhou Ti-Jean. E chegaram na curva, onde a estrada estreita se sombreava com as copas das árvores mansas.

Ela parou e ficou sentada. Queria só ver Ti-Jean mais um pouco e esperava que ele desaparecesse das vistas dela. Ele, antes de sumir, ainda se virou para trás e pediu, sem dizer nada. Ela não se moveu. Ti-Jean olhou para a frente, como um homem traído, incapaz de contar o que sente e o que dói. Quis ficar, quis falar, mas foi embora.

Ela latiu e os latidos, debaixo das árvores de grandes copas, falavam dos olhos azuis dele, que não esqueceria nunca. Tremeu o focinho, guardou para sempre o cheiro de Ti-Jean e, sem querer deixar dúvida sobre a façanha de ser feliz após cada traição, voltou para casa.