6.01.2013

Portugal - O País Agridoce




O Passeio das Virtudes

         Comprei um livro de Vergílio Ferreira, para evitar falta de assunto da próxima vez que tiver que passar pela alfândega portuguesa, e aluguei um apartamento.
        
      A escolha do lugar para morar não foi fácil. Não que falte, que isso tem. Mas principalmente porque, quando você se depara com uma cidade fascinante, é como estar frente a frente com uma mulher do mesmo fascínio, feito a Adélia: por onde começar a tocar, onde é que se aninha? Você pode nem tomar esse cuidado, mas tocar ou fazer ninho a esmo é sempre não saber aproveitar tudo o que o fascínio pode revelar, se não for meticulosamente vasculhado. O Porto é como uma pedra preciosa enfiada em barranco à beira-rio, e, por isso, tomei cuidado, fui cauteloso, prestei atenção e acabei me decidindo por um pequeno apartamento, de quarto, sala, cozinha e banheiro, perto do centro, com vista para o rio Douro.

         Não que o apartamento tenha vista para o Douro, porque não tem. A rua é que tem. Já o apartamento dá para os fundos do prédio, o que pode ser uma desvantagem parcial. Mas o que me fez decidir por ele foi que, enquanto examinava os cômodos, na companhia do proprietário, tive a curiosidade de saber por que a parede da cozinha era diferente das outras. As outras, eram apenas brancas e lisas. A da cozinha era feita de pontos coloridos, miríades de brilhos.

         Parece que o proprietário tinha um certo orgulho do detalhe da propriedade. Eu também teria, se os fundos da minha casa fossem feitos com um trecho da Muralha Fernandina. Emoção igual terá o brasileiro que, um dia,  alugar casa ou apartamento construído a partir das futuras e inevitáveis ruínas do Cristo Redentor. Além da vista da baía da Guanabara, oferecerá restos de um monumento.

         Enquanto o dono do apartamento no Porto me explicava a diferença da parede, comecei a tocá-la com cuidado. Sabia que não seria o primeiro a pôr as mãos e que talvez o meu toque só provocasse indiferença. Mas o que mais podia fazer na hora de ver e me encostar numa parede construída nos confins do século XIV? Um outro trecho da Muralha Fernandina é monumento no alto de uma das pedras da cidade, sempre fotografado e visitado por hordas de turistas. Mas esse pedaço é mais íntimo, quase ninguém sabe dele. É assim também quando uma mulher bonita caminha pelas ruas da cidade e muita gente olha, observa e comenta. Mas poucos trancam a porta da casa e ficam frente a frente com ela.

         Parece que, para viver bem no Porto, é preciso cuidar desses detalhes. É uma cidade inteira resguardada, atrás das portas, dos cercos e das muralhas. Nada é exposto, nada escancara. Tem sido assim nesses últimos dois mil anos. A Muralha Fernandina foi construída para substituir um cerco ainda mais antigo, quando os espanhóis, sempre eles, quiseram, mais uma vez, invadir o lugar e recuperar a posse. O muro resistiu e manteve a cidade inatingível, como ela sempre se orgulhou de ser. E não foram só os espanhóis que nunca entraram. Os árabes também tentaram, sem conseguirem atravessar o rio. Ficaram na margem sul, onde está, hoje, outra cidade, separada por pontes sobre o Douro. É Vila Nova de Gaia, que os portuenses ainda olham com certo desprezo nortenho e chamam de Marrocos. Eles, que nunca foram invadidos, e que chamam o Porto de “A Invicta”, podem fazer essas coisas.

         Se o corpo de uma mulher bonita, além da beleza física, tem nomes preciosos que identifiquem os pontos, como seios, monte-de-vênus, bacia, quadris, ancas, coxas e bunda, o Porto também tem.  É tudo muito caprichoso. Se você sair da rua da Fonte Taurina, que fica na Ribeira, lá embaixo, às margens do rio, e subir ruelas íngremes e quase inescaláveis, vai dar no Passeio das Virtudes, que é onde eu moro agora. Esse Passeio tem casas (entre elas, a minha) somente de um lado, porque o outro é amparado por um muro baixo, onde as pessoas se debruçam e vêem a última curva do Douro, metros abaixo, antes de se perder na grandeza do Atlântico. Depois, siga em frente e vá dar no Largo do Viriato. Desça muito outra vez, até esbarrar numa rua pequena. Ali, tem uma casa onde, dizem, nasceu o Infante Dom Henrique, e o nome dele está no começo da história do Brasil. Foi o homem que, por ser infante, impossibilitado de chegar ao trono, dedicou-se às artimanhas da navegação e deu aos portugueses a arte de revirar o mundo. Deve ter sido o único nobre a viver por aqui, porque o Porto, cidade de comerciantes e burgueses, tinha uma regra: gente com títulos, os inúteis da corte, sem mercadorias para vender, não podia se estabelecer na cidade. Na verdade, só tinha o direito de fazer três pernoites dentro dos limites da Muralha e depois era obrigada a tomar outro rumo e ir dormir em castelos longe dali.

         No Porto também tem a rua do Lindo Vale, a rua da Graciosa, a rua do Abraço, a rua da Piedade, a praça da Cordoaria e a rua das Flores. Tem a Escadaria da Verdade, a rua Sobre-o-Douro e a rua do Miradouro, a rua Firmeza e a rua Formosa, uma ao lado da outra. Tem o Largo da Fontainha, a Praça da Alegria e a rua do Heroísmo. Mas também tem ruas, várias delas, com nome de gente, que mereceu a homenagem para depois virar apenas nome de rua e ser esquecida no que fez para merecer a honraria. Virar nome de rua é morrer duas vezes. 

         A Adélia deixou o filho com a tia e veio aqui para a comemoração da primeira noite no Passeio das Virtudes. Trouxe duas garrafas de vinho. Uma, a Pêra Manca, a gente bebeu até a última gota. A outra, Barca Velha, ficou fechada.  E ela dançou se esfregando contra a minha Muralha Fernandina.