O Passeio das Virtudes
Comprei
um livro de Vergílio Ferreira, para evitar falta de assunto da próxima vez que
tiver que passar pela alfândega portuguesa, e aluguei um apartamento.
A
escolha do lugar para morar não foi fácil. Não que falte, que isso tem. Mas
principalmente porque, quando você se depara com uma cidade fascinante, é como
estar frente a frente com uma mulher do mesmo fascínio, feito a Adélia: por
onde começar a tocar, onde é que se aninha? Você pode nem tomar esse cuidado,
mas tocar ou fazer ninho a esmo é sempre não saber aproveitar tudo o que o
fascínio pode revelar, se não for meticulosamente vasculhado. O Porto é como
uma pedra preciosa enfiada em barranco à beira-rio, e, por isso, tomei cuidado,
fui cauteloso, prestei atenção e acabei me decidindo por um pequeno
apartamento, de quarto, sala, cozinha e banheiro, perto do centro, com vista
para o rio Douro.
Não
que o apartamento tenha vista para o Douro, porque não tem. A rua é que tem. Já
o apartamento dá para os fundos do prédio, o que pode ser uma desvantagem
parcial. Mas o que me fez decidir por ele foi que, enquanto examinava os
cômodos, na companhia do proprietário, tive a curiosidade de saber por que a
parede da cozinha era diferente das outras. As outras, eram apenas brancas e lisas. A da cozinha era feita de pontos coloridos, miríades de brilhos.
Parece
que o proprietário tinha um certo orgulho do detalhe da propriedade. Eu também
teria, se os fundos da minha casa fossem feitos com um trecho da Muralha
Fernandina. Emoção igual terá o brasileiro que, um dia, alugar casa ou apartamento construído a
partir das futuras e inevitáveis ruínas do Cristo Redentor. Além da vista da
baía da Guanabara, oferecerá restos de um monumento.
Enquanto
o dono do apartamento no Porto me explicava a diferença da parede, comecei a
tocá-la com cuidado. Sabia que não seria o primeiro a pôr as mãos e que talvez
o meu toque só provocasse indiferença. Mas o que mais podia fazer na hora de
ver e me encostar numa parede construída nos confins do século XIV? Um outro
trecho da Muralha Fernandina é monumento no alto de uma das pedras da cidade,
sempre fotografado e visitado por hordas de turistas. Mas esse pedaço é mais
íntimo, quase ninguém sabe dele. É assim também quando uma mulher bonita caminha
pelas ruas da cidade e muita gente olha, observa e comenta. Mas poucos trancam
a porta da casa e ficam frente a frente com ela.
Parece
que, para viver bem no Porto, é preciso cuidar desses detalhes. É uma cidade
inteira resguardada, atrás das portas, dos cercos e das muralhas. Nada é
exposto, nada escancara. Tem sido assim nesses últimos dois mil anos. A Muralha
Fernandina foi construída para substituir um cerco ainda mais antigo, quando os
espanhóis, sempre eles, quiseram, mais uma vez, invadir o lugar e recuperar a
posse. O muro resistiu e manteve a cidade inatingível, como ela sempre se
orgulhou de ser. E não foram só os espanhóis que nunca entraram. Os árabes
também tentaram, sem conseguirem atravessar o rio. Ficaram na margem sul, onde
está, hoje, outra cidade, separada por pontes sobre o Douro. É Vila Nova de
Gaia, que os portuenses ainda olham com certo desprezo nortenho e chamam de
Marrocos. Eles, que nunca foram invadidos, e que chamam o Porto de “A Invicta”,
podem fazer essas coisas.
Se o
corpo de uma mulher bonita, além da beleza física, tem nomes preciosos que
identifiquem os pontos, como seios, monte-de-vênus, bacia, quadris, ancas,
coxas e bunda, o Porto também tem. É
tudo muito caprichoso. Se você sair da rua da Fonte Taurina, que fica na
Ribeira, lá embaixo, às margens do rio, e subir ruelas íngremes e quase
inescaláveis, vai dar no Passeio das Virtudes, que é onde eu moro agora. Esse
Passeio tem casas (entre elas, a minha) somente de um lado, porque o outro é
amparado por um muro baixo, onde as pessoas se debruçam e vêem a última curva
do Douro, metros abaixo, antes de se perder na grandeza do Atlântico. Depois,
siga em frente e vá dar no Largo do Viriato. Desça muito outra vez, até
esbarrar numa rua pequena. Ali, tem uma casa onde, dizem, nasceu o Infante Dom
Henrique, e o nome dele está no começo da história do Brasil. Foi o homem que,
por ser infante, impossibilitado de chegar ao trono, dedicou-se às artimanhas
da navegação e deu aos portugueses a arte de revirar o mundo. Deve ter sido o
único nobre a viver por aqui, porque o Porto, cidade de comerciantes e
burgueses, tinha uma regra: gente com títulos, os inúteis da corte, sem
mercadorias para vender, não podia se estabelecer na cidade. Na verdade, só
tinha o direito de fazer três pernoites dentro dos limites da Muralha e depois
era obrigada a tomar outro rumo e ir dormir em castelos longe dali.
No
Porto também tem a rua do Lindo Vale, a rua da Graciosa, a rua do Abraço, a rua
da Piedade, a praça da Cordoaria e a rua das Flores. Tem a Escadaria da
Verdade, a rua Sobre-o-Douro e a rua do Miradouro, a rua Firmeza e a rua
Formosa, uma ao lado da outra. Tem o Largo da Fontainha, a Praça da Alegria e a
rua do Heroísmo. Mas também tem ruas, várias delas, com nome de gente, que
mereceu a homenagem para depois virar apenas nome de rua e ser esquecida no que
fez para merecer a honraria. Virar nome de rua é morrer duas vezes.
A
Adélia deixou o filho com a tia e veio aqui para a comemoração da primeira
noite no Passeio das Virtudes. Trouxe duas garrafas de vinho. Uma, a Pêra
Manca, a gente bebeu até a última gota. A outra, Barca Velha, ficou
fechada. E ela dançou se esfregando
contra a minha Muralha Fernandina.
3 comentários:
Ficou apenas uma dúvida: ela se esfregou contra a Muralha Fernandina mesmo?... Ou teria sido, na verdade, a Muralha Alexandrina?
Alexandre....!
Quando eu for a Portugal, levarei seu livro! <3
Será apenas um capítulo por semana??? Please, estou em abstinência!
que maravilhosa cena da mulher dançando para a muralha. bela imagem de sedução.
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