Ti-Jean e Chris tinham uma vida inteira de coisas em comum. Além de serem amigos de infância, desde os primeiros dias de ir à escola, eram também, os dois, cada um do seu jeito, muito bonitos. Ela, a Chris, se serpenteava quando caminhava, com passos lentos, pelas ruas de Sète, onde a França se despenca em falésias para dentro do Mediterrâneo. Ele tinha o andar empinado, rígido, e, sem se importar com dias quentes ou dias frios, escondia as mãos nos bolsos.
Ti-Jean tinha os olhos insuportavelmente azuis e, por serem grandes e redondos, refletiam o azul contra o sol, contra a lua, contra as lâmpadas de dentro de casa. Ela tinha olhos amendoados, verdes, e, por isso, era conhecida como “Chris aux yeux de chatte”. Era Chris dos olhos de gata. Moravam juntos e dormiam na mesma cama do apartamento velho perto do mar. Numa almofada grande da sala, dormia Rita, chamada Ritá. Era a cadela sem raça, preta, de pernas compridas e olhar sonhador.
Ritá era uma farejadora contumaz. Cheirava tudo. De manhã bem cedo, esfregava o nariz na cama onde Ti-Jean e Chris tinham passado a noite. Vasculhava cada pedaço do lençol e das fronhas, numa intimidade assustadora e ciumenta. Depois, entrava no banheiro grande, de paredes pardacentas, e cheirava a toalha pendurada, o rolo de papel higiênico, a borda da banheira, a calcinha ou a cueca deixadas no chão.
Mas sonhava por Ti-Jean e era ele quem ela mais cheirava. Com o focinho úmido e gelado, percorria os óculos dele, à procura dos olhos azuis cintilantes. O nariz preto e carnudo arfava, se dilatava num ritmo acelerado e miúdo, enquanto cheirava as pernas dos óculos desde a parte atrás das orelhas até as lentes grossas, de míope grave. Gostava também de lamber as sobrancelhas do homem com quem sonhava.
Um dia, as coisas em comum se embaralharam, se intricaram, ficaram confusas e Ti-Jean e Chris decidiram que não iam mais viver juntos. Ele foi ríspido, seco, e viajou para Paris. Queria, finalmente, procurar emprego na cidade onde tinha nascido e que tinha deixado anos antes para viver no calor do sul do país. Chris e Ritá ficaram. Chris chorou na cama, atrás da porta, na cozinha, no banheiro, nas escadas do prédio e nas ruas, por onde andava malemolente e bela com os olhos verdes infernais. Ritá, não. Esperou três dias no corredor onde se abria a porta da rua. Depois, esperou na cozinha, no quarto e no banheiro. Mas não chorou. Apenas esperou.
Até que Chris chegou em casa e não encontrou a cadela preta. Procurou, primeiro, em todos os quartos e cômodos trancados do apartamento velho e imenso. Foi desde a porta da rua até o último quarto, nos fundos, atrás da parede onde ficava a lareira abandonada. Depois, procurou nas ruas, nas praças, nas alamedas. Pôs anúncios em bares, cafés e restaurantes.
E só aceitou o sumiço quando, um mês e meio depois, Ti-Jean voltou para fazer as malas de vez e apanhar Ritá, que havia desaparecido. Ele, com o rosto vermelho e os olhos azuis molhados de lágrimas traídas, xingou e acusou Chris que, então, se trancou no quarto e chorou sobre os olhos verdes.
Mas oito meses depois, ele voltou a aparecer em Sète, e viu, de perto, com uma proximidade quase provocadora, que Chris, sem sair do apartamento grande, inútil e velho, de paredes pardas, esquecia-se dele aos poucos. Para isso, ela abraçava, beijava e ouvia palavras de amor de Luc, o provençal, com olhos castanhos como os de Ritá.
Assim, Ti-Jean disse que ia ficar na casa de Poupette, a amiga enfermeira e gorda, que morava fora da cidade, num campo rodeado de lavandas e rosmaninhos. E foi lá, caminhando no bosque francês, de árvores mansas e flores suaves, que ele, um dia, ouviu um latido fino, sonhador, vindo de um quintal cercado por muro alto.
Olhou pelo portão. Lá dentro, a cadela preta, de pernas compridas, brincava com uma bola, vermelha e azul como a bandeira da França. Da sala da casa, uma mulher viu Ti-Jean no portão. Devagar, com cuidado e atenção, abriu a porta para perguntar o que ele queria. E chamou a cachorra:
-Milou!
E foi quando a Milou se levantou para ir até a mulher, que Ti-Jean, com o coração contorcido, com a voz embalada pela saudade, também chamou:
-Ritá!
A cachorra parou. O som veio de longe, de algum lugar remoto, de memórias velhas. Surpresa, olhou para o portão. Esperou, arfou o focinho e, só então, se preparou para correr em direção aos antigos olhos azuis. Pôs as patas da frente nas grades do portão, abanou o rabo e ganiu baixo, fino. Era o coração dela que também se contorcia. Em seguida, enquanto a mulher se aproximava, Ritá correu para dar a volta em todo o quintal. Ti-Jean e a mulher já estavam próximos um do outro. A cachorra apareceu na rua, solta e tonta de felicidade.
Ti-Jean decidiu que não ia explicar nada. O portão estava fechado, a mulher teria que voltar para apanhar a chave. Ele, então, se afastou com passos rápidos e chamou:
-Ritá, viens!
Ela foi. Levantou novamente as patas e se apoiou nas pernas dele. Cheirou as calças, a cintura, as mãos, a braguilha onde permanecia, forte e vivo, o mesmo aroma do lençol de antigamente. Os ganidos eram marcados pelos movimentos firmes e quase desesperados do rabo preto.
A mulher gritou:
-Milou, Milou!
A cachorra abaixou as patas e olhou para o portão. Sorriu. Olhou para Ti-Jean. Chorou com sons finos, quase inaudíveis. Abaixou a cabeça. Ele pediu que ela continuasse ao lado dele, mas a mulher voltou a chamar. Ritá parou.
A mulher e o homem se olharam. A cadela, preta como um pedaço de noite sem lua, voltou para perto de Ti-Jean e cheirou tudo, com a alegria ávida e tresloucada dos reencontros súbitos que não servem para nada, que não aliviam a saudade nem a pena da separação. Então, latiu alto, com raiva, maldade e dor.
Correu de volta pela rua até reaparecer no quintal, atrás do portão. Sem tirar os olhos de Ti-Jean, viu quando ele se afastou e começou a ir embora. Ela lambeu a mão da mulher e, mais uma vez, com ansiedade, correu para fora. Ele acelerou o passo, como quem foge, e ela acompanhou Ti-Jean. E chegaram na curva, onde a estrada estreita se sombreava com as copas das árvores mansas.
Ela parou e ficou sentada. Queria só ver Ti-Jean mais um pouco e esperava que ele desaparecesse das vistas dela. Ele, antes de sumir, ainda se virou para trás e pediu, sem dizer nada. Ela não se moveu. Ti-Jean olhou para a frente, como um homem traído, incapaz de contar o que sente e o que dói. Quis ficar, quis falar, mas foi embora.
Ela latiu e os latidos, debaixo das árvores de grandes copas, falavam dos olhos azuis dele, que não esqueceria nunca. Tremeu o focinho, guardou para sempre o cheiro de Ti-Jean e, sem querer deixar dúvida sobre a façanha de ser feliz após cada traição, voltou para casa.
13 comentários:
E voltou em grande estilo, claro!
Excelente presente de Natal, Senhor Ribondi!
Não poderia ter voltado melhor. Obrigada, Ribondi, pelo presente.
Feliz Ano novo para você e para o Negão (ainda dá tempo de vir para o Palaphita...)
Que bom Rib! Vivaaa!
A estrada de volta do banquete deu numa linda inspiração.
Vem de surpresa pro Palaphita conhecer os cheiros dos amigos...
:-----) ( o nariz farejador )
Li,não sei o que dizer e fico esperando o próximo conto...
Nelsinho
Téquinfim! Pensei que a comichão de postar tinha passado.... bom que não passou. Feliz 2006
Welcome back, I miss you so much!
Ih, hoje estou inspirada, acho que foi a rabanada de ontem.
Ao contrário da Ritá, somos fiéis.
gostei da Milou!
Voltou com tudo!
Apesar de estar de noite, a primeira linha me transportou pra luz quente do sul da França e todo o conto se passou com um céu azulíssimo.
"Não deixar dúvida sobre a façanha de ser feliz após cada traição".. é genial.
Presentão de Natal, obrigada!
Obrigada pelo lindo presente de Natal, não poderia ter sido melhor.Por favor, não desapareça mais ,continue com suas lindas histórias. Acabei de voltar da França e espero viajar para outros lugares. via Ribondi.
Termo meio forte - "TRAIÇÂO"
Vc continua genial em suas narrações e de uma sutileza ao descrever cada personagem que nos mete, sem pedir permissão, nas histórias de uma maneira surpreendente. Parabéns mais uma vez querido amigo.
Adorei seus textos. Só pediria que escrevesse mais. Um abraço
Gi
Lindo
Como é bom te ler...
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