11.28.2005

O vizinho

Quero falar de um homem, que é o meu vizinho. Talvez, com quase absoluta certeza, o meu cachorro Negão seja mais indicado para falar dele porque foi ele, o cão, que chegou perto, cheirou e ofereceu a cabeça para que a mão do homem tocasse e acarinhasse. Eu, não. Eu fiquei apenas com a parte que nos toca, que são as palavras.

O meu vizinho usa, sempre, bermuda e camiseta de aposentado. Tem cabelos grisalhos. E os olhos baixos, como quem olha para a terra e nunca para as pessoas. A primeira vez que nos vimos era de manhã muito cedo, quando o sol ainda é úmido e doce e se espalha sobre a grama como se pudesse gotejar.

Ele estava lá, em pé, em silêncio. Passei perto, não disse nada. Ele não deve ter me visto. Olhava para o chão e para a grama radiante com o sol dos primeiros minutos do dia, que são sempre calmos e serenos. Talvez seja mesmo verdade que ninguém sofre entre as cinco e meia e as seis horas da manhã.

Dias depois, conversamos. A conversa, na verdade, começou entre o meu vizinho e o Negão, que se aproximou para cheirar o ponto do chão para onde ele olhava de maneira persistente e fixa. Ele, o vizinho, sorriu. Negão se aproximou e cheirou as pernas, as mãos, a barriga. Aí, ficou sentado e recebeu carinhos na cabeça.

Nós dois fizemos a nossa parte:

-Bom dia.

-Bom dia.

Um ano antes, eram três da madrugada quando bateram na porta da casa dele para avisar que o carro do filho único, de 24 anos, tinha se espatifado contra uma árvore. O corpo esperava para ser enterrado.

Ele me contou isso como se já não fosse nada de mais. O filho único estava morto. Até mesmo olhei para os olhos deles para ver se algum sinal, alguma dor, lástima, pena, dó, saltava das pupilas. Tudo estava intacto.

Cinco meses depois, a mulher dele, por não agüentar a certeza da morte do filho, decidiu tomar o mesmo rumo. Deixou o coração se arrebentar e foi embora. O vizinho então ficou no apartamento igual ao meu: três quarto, mais um para a empregada, dois banheiros, sala, cozinha e área de serviço.

Mas na cozinha e na área de serviço, e também no corredor que leva para os quartos, as paredes estavam furadas por pregos onde ele pendurava as gaiolas dos passarinhos. De tamanhos, cores e penas variadas.

Era lá, no apartamento, que o homem sozinho, sem mulher e sem filho, convivia com uma multidão que cantava, batia as asas, pulava de poleiro em poleiro e, mais que tudo, mais que nunca, mantinha viva a vida. Porque a vida é como os olhos: coisa pequena, delicada, apenas uma película muito frágil, e que, ao mesmo tempo, é capaz de abarcar o mundo inteiro.

Era isso que ele entendia quando estava acompanhado dos seus passarinhos espalhados pelo apartamento vazio. Até o dia em que ele colocou ovos numa panela com água no fogo para, depois, alimentar os amigos.

E, aí, procurou o sofá para se sentar. Sentado, pensou na mulher, no filho, era fim da madrugada, não tinha barulho que viesse de fora, e ele dormiu sentado. Quando acordou, uma fumaça densa saía da panela deixada em cima do fogão. A água tinha fervido e secado. Os ovos estavam pretos, queimados e grudados no fundo da panela.

Ele tossiu quando entrou na cozinha. E nas paredes, em todas as paredes da casa onde tinha gaiolas penduradas, estavam os corpos dos passarinhos sufocados.

-Eu abri as gaiolas, uma por uma. Peguei os passarinhos, um por um. Coloquei em cima da mesa, um corpo ao lado do outro. Ao lado deles, minha mulher e meu filho. Era como se eles dois estivessem ali também.

Ele desceu as escadas do prédio, o mesmo prédio em que eu moro, e foi até a grama, que ainda estava escura no fim da madrugada. Com uma colher, abriu pequenos buracos e enterrou todos, um por um. Até que, finalmente, conseguiu também enterrar, de uma maneira pessoal e particular, a mulher e o filho.

O Negão cheirou a mão dele, sem tocar o focinho. Ele acariciou o cachorro, outra vez. Nós, de novo, fizemos a nossa parte:

-Deve ser difícil para você.

-A gente se acostuma. E vai levando a vida.

Olhei para o Negão, calmo e firme como um anjo, sentado sobre a terra do pequeno cemitério do meu vizinho.

30 comentários:

Anônimo disse...

Que linda história triste.Tomara que o Negão continue sendo companheiro dele e você também.Quanta trsteza e solidão.

Anônimo disse...

Verdade ou não, é o retrato de uma multidão de nós mesmos.

Anônimo disse...

Como sempre a história é linda.
Só que hoje preciso dizer...
Que Deus os proteja e dê uma vida muito longa ao Negão.

maria alice disse...

Menino, seus contos deveriam vir com bula: um por dia. Fiquei um tempo fora e ler os tres últimos ao mesmo tempo me deixou sem ar, com vontade por todo mundo no colo, meio atropelada pelas mazelas da vida. Dê um abraço bem forte no Negão por mim, daqueles que a gente chega por cima e encosta o rosto todo no pescoço.
bisous

Matilda Penna disse...

É, cada um tem um ritual para enterrar seus mortos, mas enterra-los é preciso.
E o Negão sentiu o perfume da solidão à volta do seu vizinho e, "calmo e firme como um anjo" "chegou perto, cheirou e ofereceu a cabeça para que a mão do homem tocasse e acarinhasse".
O Negão é um sábio.
P.S.: Estou de blog em casa nova agora, a antiga desabou mesmo...

Anônimo disse...

Que tristeza! Estou particularmente triste esses dias e essa história me tocou terrívelmente.

Anônimo disse...

Suas história sempre me fazem chorar. Essa foi dose maciça na veia da véia aqui ]
:c))) / :c(((

Anônimo disse...

Você sumiu de novo...Como está o Negão?

Anônimo disse...

Conto emocionante e bem escrito. Parabéns

Anônimo disse...

Tô chorando...

Anônimo disse...

Você está fazendo falta. Será que está convencido, agora que descobriu que o dna do Negão é quase igual ao seu. Viu como estamos progredindo? Quase chegando à perfeição ( que é deles)

Anônimo disse...

Não dá pra ler essa história pela décima quinta vez.
Mais Rib, mais!
:-)))

Anônimo disse...

Parabéns pelo seu aniversário, mas gostaria muito que o presente fosse nosso, com você voltando a escrever suas lindas histórias. Tudo de bom e um beijo no Negão.

Lucas Landau disse...

Parabéns Ribondi. Tudo de bom.

Anônimo disse...

Ribs,
te amo!

Anônimo disse...

Parabéns, Ribondi! Saúde, paz e amor.


PS: o aniversário é seu, mas que tal nos presentear com um novo conto? ;)

Anônimo disse...

Depois é que vi que a Maria Helena pediu o mesmo. :)

Teresa Amorim disse...

Feliz Aniversário Ribondi!!!

Conhecer você foi uma das boas coisas que aconteceram em 2005.
O seu blog é maravilhoso, é onde descobri que por trás daquele cara brincalhão dos comentários do blog da Cora, existe um ser humano super sensível e justo.
Agora só falta conhecer vc pessoalmente. Quando vc vem a Lisboa??
Bjs

Cora disse...

Parabéns, querido, tudo, tudo, tudo de bom! Não quer dar um pulo aqui ao Rio pro nosso pré-Réveillon? A TeAmo vai estar aqui, vamos fazer uma festinha no Palaphita... Ia ser bom demais! Muitos beijos, abraços, carinho.

Jussara disse...

Vem, Ribondi, pro nosso pré-reveillon. Ia ser tão bom!!!!
Feliz aniversário (de novo)e felicidades. Um grande abraço.

Anônimo disse...

Tocante, meu caro, tocante...

Grande abraço!

Anônimo disse...

Olá, Alexandre. Cheguei aqui por indicação do Marcos VP. Seu conto me fez chorar e ficar na dúvida se seria realidade ou ficção.

maria alice disse...

Uai.. Tá igual passarinho, que não pia na muda??
Já acabou o inferno astral, vida nova daqui pra frente! Ou melhor, cronicas novas, é o que esperam os seus insaciáveis leitores... Ou será que o silencio por aqui é um prenúncio do livro no forno?
Beijoca, some não.

Anônimo disse...

Não querendo ser chata, mas claro que sendo, você não imagina a falta que você faz.Continuo esperando. Beijo no Negão e seja lá qual tenha sido o motivo do seu sumiço, o seu talento é infinitamente maior.

Mari Ceratti disse...

A história desse homem rendia um filme. Um curta-metragem. O mais triste curta-metragem feito em toda a terra...

Mari Ceratti disse...

Off Topic:
Na verdade, eu entrei aqui só para dizer que concordo com você: as Aerolíneas Argentinas são de fato a mais antipática companhia aérea da face da Terra. Lembro que o almoço deles era um horror... eu e os coleguinhas apelidamos a refeição de "helado de pollo". Será que preciso explicar o porquê?
Beijos,
Mari

Nelsinho disse...

Vim e li o texto três vezes e continuo sem saber o que dizer...

Se eu estivesse em terra eu estaria fazendo muita força de mãos dadas com as meninas (Cora, Jussara...) para que você viesse à Palaphyta!

Tudo de bom e muita paz neste Natal

Nelsinho

Anônimo disse...

Parabéns! "O vizinho" é um ótimo texto. Imagino que não seja ficção. Mas qual seria a lição a tirar dessa leitura (se é que existe alguma...)? O vizinho não foi diretamente responsável pelas mortes do filho e da mulher. Mas foi pelas mortes dos pássaros. Não há paralelos entre as mortes, exceto o fato de que o vizinho parece atrair desgraça. Gostei muito do texto e do estilo, mas não consigo imaginar como "aproveitar" algo dele senão exatamente o prazer com o estilo do autor. "Negão" que se cuide chegando perto do representante do mau agouro.

Nana e suas paixões disse...

Ribondi,
Obrigada pela visita. Parabéns pelo blog e um beijo enorme para o Negão.
Um abraço,
Rosana Monteiro.

Anônimo disse...

Entrei aqui para desejar um Natal bem legal prá você e o Negão.