11.17.2005

Os dois filhos de Shantung

Vítor Emanuel era mais velho que Miguel, mas eram, os dois, filhos de Shantung, a gata que se recusou a morar em Brasília e se mudou para a Vila Mateus, a casa da roça, com varanda, janelas azuis e parede branca e plantas e flores que nunca freqüentaram xaxins ou vasos de cerâmica. Desde que nasceram, viveram sempre em latas de óleo furadas no fundo a golpes de prego.

Vítor Emanuel era magrelo, com olhos enormes, todo preto. Apenas uma marca branca no pescoço, debaixo do queixo, parecia ser uma gravata borboleta. Por isso, por essa elegância de berço, recebeu nome pomposo, que ele sempre recusou, por ser do campo – sendo, desta forma, conhecido como Flecha. Mas era Vítor Emanuel. Pelo mesmo para mim.

E era Flecha por causa da extrema velocidade, em qualquer situação. Para correr atrás de fêmeas, para afugentar machos, para se recolher diante de qualquer ameaça de afago que era, das atividades humanas, a que ele mais detestava e evitava. Somente a mãe, a pequena Shantung, tinha autoridade sobre ele, inclusive para dar lambidas amorosas e patadas violentas.

Miguel era o contrário: gordo, muito gordo, todo branco, com um traço preto entre os olhos, como se fosse uma pincelada fortuita da Tomie Otaki. Por isso, não era bem um gato. Era uma instalação artística. Além disso, era a felicidade com formas de felino.

Tudo nele era feliz. O meneio do rabo, os movimentos precisos das orelhas, o olhar esperto, a gordura excessiva, a brancura do pêlo e o miado sedutor. Além disso, de uma maneira muito peculiar, Miguel tinha nascido para ser rico e viver no luxo, para dormir em almofadas de seda oriental, para beber água mineral francesa e comer filé minhom.

Quando a mãe morreu, Miguel subiu no galho mais alto da árvore mais alta do quintal da Vila Mateus e ficou lá um dia inteiro. Queria, a seu modo, evitar a visão da tristeza que foi enterrar a dona da casa. Ele tinha a obrigação de ser feliz. Tinha sido gerado para isso, Miguel sabia.

Vítor Emanuel, que nunca entrava na casa, que nunca relaxava nem mesmo quando se deitava ao sol no muro baixo da varanda, que não consentia aproximações humanas, ficou subitamente imóvel diante do corpo de Shantung. Depois, passo a passo, como se pisasse em veludo precioso, chegou perto e cheirou, como se não quisesse tocar, todo o corpo da mãe. Depois, cheirou também demoradamente o ar, olhou, pela primeira vez, para cada uma das pessoas que se reuniam em volta do corpo, deu um pulo grande, forte, até o alto do portão da cerca e observou a paisagem goiana.

De lá, foi embora depois de se despedir apenas da mãe, e de mais ninguém. Sem olhar para trás, sem se importar com os três anos de vida vivida ali na casa branca de janelas azuis, desapareceu para sempre. Eu ainda esperei Vitor Emanuel, o grande Flecha, por alguns dias. Ainda coloquei água e comida para ele, no mesmo canto da varanda, mas, pouco a pouco, compreendi que era ela, a gata bonita, a única razão para ele conviver entre pessoas. E se ela tinha ido embora, era chegado o momento, para ele, de fazer a mesma coisa.

Miguel, não. Dias depois da morte da mãe, virou adulto. Perdeu alguns quilos, resolveu ser esbelto, e ganhou um interesse vivo, acentuado, premente, por todas as gatas da vizinhança. E cada uma delas, grávida, ia morar no quintal da Vila Mateus. Às vezes, a ninhadas nascia debaixo do pé de lima. Outra vezes, dentro do galinheiro velho. Ou entre os pés de mandioca. Do muro da varanda, Miguel observava, com um certo ar de maturidade, os novos filhos que, com pernas ainda bambas, se aventuravam na grande e inesquecível experiência de conhecer o mundo.

Miguel tornou-se um grande amigo meu. O sorriso dele, permanente, escorria na minha alma com uma gentileza e uma doçura que se imprimiram nas fibras do coração para sempre. Quando subia no meu peito, dobrava as pernas e se tornava um novelo de lã, ronronava como quem conta segredos e faz declarações de amizade eterna.

Na companhia de Lula, o cachorro, ele passou também a cuidar da casa. Lula se ocupava dos outros cães, dos cavalos, das vacas lerdas que insistiam em comer os pés de milho ainda no broto. Miguel era responsável pelas maritacas que iam tomar café da manhã nas bananeiras e no abacateiro, e também se responsabilizava pelos outros gatos machos.

E tinha o dom da coisa. Cada gato que pulava a cerca e se arriscava no território era motivo de alarde e algazarra. Miguel pulava no parapeito da janela, se arrepiava do rabo até os bigodes, emitia sons roucos, apertava as orelhas para trás e partia para o ataque, com um sorriso de satisfação imenso. Quando a luta acabava, ele voltava, com o rabo e os pêlos mais reluzentes e felizes do que nunca, e contava os detalhes da batalha. Miava alto, como para anunciar que o reino ainda era dele. E, depois, se enroscava no cobertor eternamente estendido sobre a cama de casal, unhava cada pedaço dele, e só então se deitava.

Até que um gato aventureiro foi mais forte e traiçoeiro. Nem mesmo Lula conseguiu acudir a tempo. Uma mordida forte no pescoço paralisou Miguel, que caiu no chão com a brancura do pêlo manchada de vermelho vivo e jovem.

Olhei para ele. Acho que ainda sorria. Era um sorriso suave, amigável, o que marcava a boca do Miguel, deitado na laje debaixo do caramanchão de boungainvilles.

Compreendi. Ele tinha vivido e morrido como quis. Na alegria sem fim de ser Miguel.

9 comentários:

Anônimo disse...

Adorei o Miguel Instalação Artística de Tomie Otaki.
Mereceu morreu num caramanchão de boungainvilles.
E é o senhor que tem o dom da coisa, de transmitir o mundo dos bichos para quem o lê.

Anônimo disse...

Miau! :-(

Anônimo disse...

Ribs,acredita q eu percebi q vc tava falando de gato somente qdo o Miguel subiu numa arvore?
Argh,mae nao tem direito de fazer NADA sozinha,com calma.
Mandei todo mundo embora e agora lerei o texto direito.
Beijo.

Jussara disse...

Monica r. você é ótima. Ribondi, eu sempre gosto dos seus textos mas fico triste no final. Manda um daqueles só pra rir, por favor!

leila disse...

Ribondi.. nunca ouvi falar antes de um gato matar o outro assim numa briga?

Anônimo disse...

Jussara!
Relou!
Vc e´´ minha fotografa especial!
Concordo cntigo,ele tem uma veia melancolica.Mas,eu sou viciada nisso.

Anônimo disse...

Por onde você anda?

Anônimo disse...

Oi Rib! Cadê vc? Eu tenho vindo aqui só pra te ver...

Anônimo disse...

Ribs,e´Doril o culpado?