11.04.2005

Tensão pantaneira

Apesar de bonita, elegante e sonhadora, não era nem mesmo uma cidade. Bem do lado da Bolívia, rodeada de Pantanal, acompanhando um pedaço do rio Paraguai, Corumbá era, para falar a verdade, uma chapa quente deixada ao sol. Ela se ardia lentamente quando o sol, duro, amarelo, paciente, parava no meio do céu e se recusava a ir embora. Qualquer um se recusaria. Ali, o mundo é muito bonito.

Às duas da tarde, eu e o Everaldo, a gente buscava lugar para passar a noite e, no dia seguinte, entrar no Trem da Morte e seguir para Santa Cruz de la Sierra, a cidade mais rica e mais drogada da Bolívia.

E, então, com as vistas escurecidas pelo ouro do sol, com a pele arrepiada pelo vapor morno que escapava das águas do Paraguai, com as roupas umedecidas pelo suor que escorria no Pantanal inteiro, eu me sentei na escadaria que desce da cidade até a margem do rio.

Comprava picolés, um atrás do outro. Escolhia pela delícia das cores. Pedia um e era amarelo vivo, forte. Pedia outro e aí vinha uma água congelada de cor vermelha. Comprava mais um: era mais verde que as copas das árvores.

O Everaldo, do meu lado, com uma voz calma de quem, depois de ver o Pantanal, passa a acreditar em tudo, me perguntou:

-Estátua mexe o gogó?

Debaixo de sol muito quente, qualquer indagação faz sentido. Respondi:

-Que eu saiba, não.
-Então, tem um jacaré aqui do lado da gente.

Com o picolé na mão, olhei. Parecia ser um lagarto enorme, capaz de girar os olhos para frente e para trás. Como se engolisse em seco, movia a pele logo abaixo da boca imensa. Mas no meio do verão, fugir ou ficar ao lado do perigo é uma decisão complicada e árdua, que requer sacrifícios.

Tentei compreender o jacaré. Como meus olhos sem tanta mobilidade, encarei. Por algum motivo, ele, o réptil, não se movia. E, também por algum motivo, mas de outra ordem, eu, o mamífero, não sentia medo. Não era bravura, coragem ou heroísmo. Era lassidão mesmo. Acabei de chupar o picolé e, só então, me levantei lentamente, com a calma dos anfíbios, e fui procurar uma pensão.

No calor da tarde, quis tomar banho. O banheiro da pensão era no centro do quintal, rodeado de roseiras com rosas miúdas e despetaladas. Mas o chão, feito de terra escura, compacta e úmida, enchia a planta dos pés com um frescor brando que, pouco a pouco, subia pelas pernas e chegava até o coração, uma bomba quente no meio do Mato Grosso do Sul.

Então, fui me lavar, com a toalha pendurada no ombro. Acontece que o banheiro era um arremedo de si mesmo. Ali, debaixo do céu, tinha quadro tábuas largas sem teto e, do meio delas, subia um cano alto que, em seguida, dobrava-se em linha reta. Era do próprio cano que caía um jato forte, único, de água forte e fria.

Cheguei perto. Compreendo os anfíbios, sei me sentar ao lado de jacarés pantaneiros, mas tenho uma certa indisposição com galinhas. Não só com elas. Com patos e papagaios, também. A junção de pés capazes de se contraírem com força, de penas que se arrepiam e de bicos que apontam, sempre me pareceu perigosa e assustadora.

E tinha uma galinha que, conformada com o começo do pôr-do-sol, já estava empoleirada na tábua que servia de porta para o banheiro no meio do quintal.

Tentei compreender a galinha. Ela me olhou, impassível e lerda. Tomei coragem. Abri a porta lentamente, enquanto ela se acomodava no poleiro móvel. Entrei em silêncio, fechei a porta. A galinha reclamou, mas não muito. Ajeitou-se sobre a tábua e continuou ali, como quem se torna introspectivo diante da marcha lenta do dia para o resto do mundo atrás do horizonte.

Tirei calça, camiseta, cueca e pendurei no único prego grudado na tábua da porta. No meio do cano tinha uma torneira, que girei. A água deu o primeiro sinal de vida: o cano se sacudiu um pouco. Em seguida, gemeu. Aí, se sacudiu mais ainda, como se anunciasse um dilúvio e, de uma vez, o cano lançou um jato só, barulhento, enérgico, que bateu na minha cabeça e se espalhou, como uma fonte, para todos os lados.

A galinha não entendeu. Deu um grito alto, abriu as asas, arrepiou as penas e arregalou os olhos. E, movida apenas pelo susto, incapaz de tomar uma decisão sensata, em vez de fugir da água, achou por bem pular para dentro do banheiro.

O espaço era pouco para tanta coisa. Ela tentava se salvar do dilúvio que despencava do cano. Cacarejava e corria, espremida pelas quatro tábuas. Não tive muito o que pensar. Com um puxão forte para dentro, abri a porta que veio com tramela, roupas, dobradiças e parafuso, e ficou solta na minha mão.

Larguei a porta e corri para dentro da pensão. E só lá, na mira de olhares espantados e curiosos, lembrei que ainda estava sem roupa e que a toalha tinha ficado no prego da porta arrombada. Corri de volta para o banheiro. A água continuava farta, a galinha ainda tentava entender o acontecido, minhas roupas estavam encharcadas. Não entrei.

A dona da pensão veio em seguida. Com passos lentos e com a boca preparada para gargalhar, entrou no que restava do banheiro, girou a torneira, pegou a galinha pelos pés e me encarou.

Enquanto apanhava minhas roupas para cobrir o que estava à mostra, a mulher, ainda com a galinha na mão, avisou num tom de voz maduro e muito experiente de quem já está acostumado a pegar patos, pintos e perus:

-Ah, meu filho, não tem problema. Igual ao seu, já vi milhares.

Relaxei. Eu havia sobrevivido à galinha. Dali em diante, estava pronto e treinado para enfrentar a Bolívia inteira.

7 comentários:

Anônimo disse...

Hilário.
Não tem outra palavra para descrever esse conto.
Adorei.

Anônimo disse...

E se nunca tivesse visto, seria uma ótima oportunidade, hein Rib?!
Ótima história! Adoro galos e galinhas. Acho eles muito engraçados.

maria alice disse...

Milhares??? Humilhou...
Bolivia? vai ter história de lhama?
Tem uns contos que pela toada, dá pra adivinhar se vai ser risadaria ou lágrimas mas este manteve o suspense por um tempão.

Anônimo disse...

Como sempre, diversão deliciosa. :D

Anônimo disse...

Ribs,a galinha mais arisca do quintal se chama Heidi.Agora deu vontade de dar um banho nela so´pra ver o resultado.
Falndo em Pintos,esse ano o meu filho mais velho me surpreendeu.Sua metamorfose de menino para um jovem aconteceu em pouco tempo e qdo eu vi,tava ali um baita dum pintao!Fiquei passada com essa transformacao.Agora vou ficar de olho no filho n°2 pra desvendar o misterio de pinto magrelo virar galo.

Nelsinho disse...

Monica r.

Você é demais, linda!!!!
Acrescentei boas gargalhadas às que já tinha dado com o conto do Ribondi...

E a propósito: você, Ribondi, também teve em risco os seus atributos de menino! Vai que a penosa aflita, desatava a bicar por lá à toa?!...

Anônimo disse...

ih,nelsinho,encabulei.
mas,bem q eu gostei dessa interdinamica tb no blog do Ribondi,he he he.
vc e´um amigo carinhoso,como esse nosso aqui tb.isso faz o maior bem,ter homens carinhosos por perto!
um abraco para os dois,infelizmente me desencontro o tempo inteiro,peninha.