11.24.2005

Uma coisa que aprendi com ele




O meu cachorro Negão, que, quando não está encardido, é todo branco, e mede 1,75m em pé, o que basta para que passe a língua na ponta do meu nariz sem grandes esforços, tem alguns medos. E é incapaz de negociar, já que faz questão de deixar bem claro que medo é medo, e que ser adulto não significa desmerecer o que grudou à personalidade desde os primeiros meses de vida.

Ele tem medo de cachorro pequeno, destes bem miudinhos, que levam a vida como bibelô. Quando eles latem irritantemente fino, várias vezes, o meu Negão recolhe as orelhas, guarda o rabo e se esconde, inteiro, atrás das minhas pernas. Talvez por tique nervoso, lambe o próprio focinho várias vezes, o que serve para mostrar a angústia que está sentindo no momento do cruel ataque do cachorrinho, que costuma vir com laços nas orelhas ou no alto da cabeça.

Tem medo, ou seria melhor dizer pânico, do barulho dos plásticos ao vento. E nisso é irredutível: não entra em carro que tenha, solto no banco traseiro ou dianteiro, alguma sacola de supermercado, não anda do lado do meu corpo onde estiver a mão que carrega compras de padaria e mercearia e, principalmente, se arrepia até os confins do rabo quando vê imensos sacos de lixo deixados na calçada à espera do caminhão de lixo.

Também se assusta com pessoas, qualquer uma, que se aproximar com alguma coisa, qualquer coisa, na cabeça. Pode ser chapéu, boné, filho novinho levado no cangote do pai, vendedor ambulante que carregue espelhos, cestos de vime, trouxas de artesanato.

Estes medos são coisas dele e eu respeito. Também respeito os faniquitos dos amigos humanos quando gritam diante de baratas ou ratos, que, a bem da verdade, são bichos que não me provocam nada – nem asco. Compreendo (sem esconder um certo risinho, é bom que se saiba) quem tem pavor a túneis, barcos em mar aberto, trovões e relâmpagos, assim como espero que compreendam o pânico primordial que se instala no meu corpo quando tenho que me sentar numa poltrona que, depois, levanta vôo e cruza os oceanos.

Mas, às vezes, acontece que o meu Negão não mostra medo. Mostra, pelo contrário, desagrado e certa revolta. Sei disso porque os pêlos da nuca se arrepiam, ele dá dois passos para trás e se coloca em posição de ataque. Já tentei convencer o meu cachorro de que não gostar de uma ou outra pessoa é contingência da vida em sociedade, mas que, por isso mesmo, é preciso uma certa diplomacia e um bom fingimento sobre estar tudo bem. Ele discorda. É sincero e espontâneo demais.

Na padaria onde gosto de tomar o café da manhã nos domingos, depois de uma longa caminhada a dois, veio, uma vez, uma moça loira fazer afagos no Negão. Chamego é coisa que ele nunca recusa, mas, desta vez, notei, logo na primeira aproximação, que os arrepios do pêlo da nuca tinham começado.

A moça bonita e loira falou:

-Mas que cachorro bonitão, meu Deus do céu.

Que ele é bonito, eu sei. Todo mundo sabe e quem não percebe isso é insensível e insensato. Ou incapaz de se enternecer com as belezas que a vida oferece. Pelo tom de voz da moça bonita, vi que era um travesti: uma voz que nasceu para ser rouca e que, a custa de alguma esforço, se afinou com falsidade e, por isso, ficou mais bamba na boca do que dentadura de dentista ruim.

Ele latiu. Achei estranha a reação porque, com toda a sinceridade, não criei um cachorro para ter rejeição à vida íntima das pessoas. A moça ainda insistiu um pouco e quis se aproximar mais. O meu Negão se levantou, mostrou que era alto, e latiu de jeito bem grosso, que é um latido que ele reserva para situações extremas.

A moça então, com um sorriso gentil, doce e compreensivo, me contou:

-Não é culpa dele, sabe? É que sou alcoólatra.

E me olhou. Eu olhei também e alguma coisa, tão frágil e imperceptível quanto o sereno do começo das noites, me convenceu que ela, apesar de bonita, já tinha se acostumado a ser evitada e pouco amada. A moça, então, ficou parada ali, em pé, na frente do Negão. Tudo nela queria fazer carinho nele e tudo nele queria evitar o que devia tresandar a bebidas. Ela pedia carinho, de quem fosse: meu, do meu cachorro, das outras pessoas na padaria. Sabia sorrir, mas era sorriso vazio, solitário, perdido.

Acariciei a nuca do meu Negão. Ele se acalmou. Pouco a pouco a moça bonita chegou mais perto. O meu cachorro ainda relutou um pouco, mudou de posição algumas vezes, lambeu o focinho, que é coisa que faz quando está ansioso. Mas, depois, de mansinho, deixou que a mão dela tocasse o pêlo branco dele.

E foi bem ali, naquele momento quase banal em varanda de padaria, que compreendi mais ainda o que tenho tentado compreender há anos. Que é também com a sinceridade das nossas próprias mazelas, amarguras, infelicidades, azares, que a gente ganha e merece afeto, carinho e doçura.

Ele não desejou nem quis que ela deixasse de ter o cheiro das bebidas. Fechou os olhos cor de mel e aceitou o afago. Esta capacidade de ser bom e de amar a pessoa exatamente como ela se apresenta é o que estou aprendendo com o meu Negão.

28 comentários:

Anônimo disse...

Que bom que você voltou, e como sempre de uma maneira magnífica.
Linda história.
Aceitar as pessoas como elas são!

Anônimo disse...

Fiz besteira!!!
Essa aí embaixo sou eu.

Anônimo disse...

O Negão é sábio, além de lindo.
Amar a pessoa exatamente como ela se apresenta é tudo.
E o Trambolho está aqui dizendo que nem late irritantemente fino nem leva a vida como bibêlo e muito menos usa laços no alto da cabeça.
Posto isso, medos existem e o grande desafio é tentar supera-los.
Eu mesmo tenho medo de cachorros grandes, Negão.
1,75m é muito para uma baixinha como eu.

Anônimo disse...

Ribs,
.......quis botar meu coracao nas palavras,nao consegui.Eu visito ha´um ano um encontro brasileiros de cristaos biblicos.Acho q Jesus se entristece conosco e q as xs um cachorro e´mais sabio do q muita gente humana.
obrigada por nos contar isso.
qdo vc viajar,vc vem me visitar?

VanOr disse...

Jan-janzinho, que lindo relato e que bela lição! Não adianta ter o melhor professor do mundo se o sujeito não for um bom aluno. Você, meu querido, é um dos melhores aprendizes que eu conheço. Saudade de você! Queria muito te ver no Rio no pré-reveillon...

Jussara disse...

Ribondi, eu passo sempre por aqui. Nem sempre comento porque não há muito o que acrescentar. As pessoas comentam quase tão bem quanto você escreve. É isso. Adoraria conhecer o Negão pessoalmente. Acho que ele ia deixar eu fazer carinho nele...

Anônimo disse...

O Negão poderia representar pelo
Jack Nicholson, fazendo o papel de Melvin Udall em Melhor Impossível.
:-))

Anônimo disse...

Van, esse 'jan' que vc fala é do farsi?
Que nem o Amir jan do livro Caçador de pipas?

Anônimo disse...

Lindo...

Btw, vcs leram O Caçador de pipas?
Impressionantemente triste e lindo.
Ainda não me recuperei dessa leitura.

Cora disse...

Meu anjo, a história é linda, as usuasl, mas olha: nessa disciplina você é professor há muito, muito tempo.

Anônimo disse...

"Achei estranha a reação porque, com toda a sinceridade, não criei um cachorro para ter rejeição à vida íntima das pessoas."

"E foi bem ali, naquele momento quase banal em varanda de padaria, que compreendi mais ainda o que tenho tentado compreender há anos. Que é também com a sinceridade das nossas próprias mazelas, amarguras, infelicidades, azares, que a gente ganha e merece afeto, carinho e doçura."


Bom compreender o Negão.
Mestre Ribondi eu já compreendia.

Anônimo Sincero

Anônimo disse...

Ribs,
primeiro me deu vontade de virar cachorro,mas ai´lembrei q tem cachorro doido tb.agora to perdoando as pessoas,to perdoando a mim.Ha´tres semanas venho sendo testemunha de desamor e falta de respeito humano.Aquela historia de moralismo.Quis fugir dos seres.Quis virar uma coisa.Ai´eu vim te visitar e li o texto...eu agrdeco a deus por voce e pelo Negao.ele de quatro e´do meu tamanho???
Ah,sempre esqueco de te dizer q essas palavras la´embaixo sao de x em qdo muito engracadas.

Anônimo disse...

Vir aqui é certeza de encontrar ternura. Lindo.

Anônimo disse...

Se foi para escrever uma história tão linda, você está perdoado por ter sumido.Quanto à capacidade de amar dos cães sei bem como é com meus dois negões: Eddie e Filé.Cachorro é tudo de bom e o Negão é muito lindo.

Anônimo disse...

Ribondi, que lindo! A-d-o-r-e-i. Com certeza os animais nos ensinam mto, basta termos sensibilidade de entender, e isso vc tem de sobra. Bjs,

Anônimo disse...

Ribs,eu acho q todos nos vivenciamos momentos assim banais,todos os dias ate´.So´q nao tomamos tempo pra observar o q acontece a nossa volta.O tempo todo trocamos infos,energias,nos tocamos e incrivelmente nao percebemos o outro.O gostoso desse encontro de padaria foi vc olhar pro fundo,mudar o tempo.deve ter sido somente alguns minutos,mas com o seu olhar ,registramos uma vida inteira ou o resultado duma vida inteira.Me envolvi com pessoas com este proposito,de olharmos umas para as outras,nos conhecermos,nos aceitarmos.Nao deu tao certo a experiencia.Quer dizer,so´consegui fazer isso com algumas pessoas preciosas.Ninguem abusou do meu amor,ninguem ofendeu meu coracao.mas,fizeram isso com os outros.Como disse,eu perdoei tudo.Mas, me sinto privilegiada por ler teu blog.conhecer vc.
Ribs,oq eu acho mais louco e´q eu nunca te abracei,nunca te cheirei.Vc nao sabe absolutamente nada sobre mim.isso nao e´magica?A internet e´uma caixa da Pandora.´Porem,ate´agora ela foi meu bem.
Um Findi maravilhoso pra vc.
Ah,essa foto e´a que eu gosto mais contigo.E se um dia vc quiser um amor platonico feminino,alem da janjan...estou na fila.

Anônimo disse...

Anomymous não, sou eu, Heliana!

Nelsinho disse...

Tá ficando dificil encontrar adjetivos!...

Nelsinho

Anônimo disse...

É, tá difícil não repetir adjetivos, mesmo! De bom pra riba.

Quando vc. disse " É impressionante como um "momento banal em varanda de padaria" pode ser importante pra tanta gente..." eu só diria que é importante para quem tem olhos de ver e coração de ainda sentir, pq. nem todos têm tanta sensibilidade para com o outro não, Ribondi.

É reconfortante saber que tem gente boa assim, que nem vc.

Anônimo disse...

Ribondi, amo o Negão. Que cachorro maravilhoso!

Anônimo disse...

Obrigada por dividir sua sensibilidade com outras pessoas. Certos momentos têm tanta intensidade. estar aqui e poder ler isso é mais que um presente, um conforto...é como estar em casa, no bom sentido.

Mel disse...

Rib,

é a primeira vez que eu venho ao seu blog.
Logo de cara me deparo que esse seu texto MA-RA-VI-LHO-SO.
Obrigada por nos transmitir essa bela lição!

beijocas
Mel

Anônimo disse...

Fiquei emocianada com o texto.
Também tenho um companheiro canino, na verdade uma atêntica SRD com nome pomposo: Wica.
Sei q ela tem suas manias, q faz serem respeitadas da mesma maneira q respeita as minhas.
Mas o q são manias perto do amor incondicional q sentimos uma pela outra?
Bjs,
Dani

Anônimo disse...

linda a foto... salvei aqui no micrinho, claro. beijos da sua Gi.

Alessandra Ninis disse...

Querido Ribondi, que saudades sua!!! que saudades do Negão!! Vida está por aqui ainda ... velhinha e também não gosta de muitas coisas: cachirrinhos fru- frus e moradores de rua. Ela está com 12 anos, cega, mas imagino que iria amar se encontrar com o Negão.
Onde achamos vocês ... vamos relembrar os velhos tempos com uma passei a quatro?
Beijos, alessandra

Cynthia disse...

Que lindo esse texto...me emocionei! Congratulações!

Ivaldo Cavalcante disse...

Salve, Ribondi, Coloquei no meu site http://www.jornalolhodeaguia.com.br
Vida Longa ao Negão e a vc!!

Anônimo disse...

Puxa, me emocionei ao ler sua história. Estava procurando como clarear o pelo branco encardido do meu Nick, e acabei caindo aqui.
Agora ficarei inquieta, pensando como estarão vcs dois. Já que o texto foi escrito em 2005.
Espero que estejam bem.
Abraços.
thamurdock@gmail.com