5.26.2013

Portugal - Um País Agridoce



E se Jorge Amado não fosse brasileiro?

         Depois de atravessar um Oceano Atlântico inteiro, com água, céu e nuvens manchadas pelo breu da noite, que só assusta a mim, mas que não afugenta nem pássaros nem aviões, surgiu a terra à vista, a linha fina do sul de Portugal, a margem oeste da Europa, e o dia nasceu. O país, visto assim de cima, brilhou com raios cor-de-abóbora, cor que parece não acontecer em nenhuma outra terra e que também é, dizem ser, a primeira que os olhos de um recém-nascido conseguem enxergar. As auroras deviam ser a hora dos partos, e Portugal, o berçário do mundo, porque só lá o dia chega com tanto cor-de-abóbora.

         O avião entrou no céu lusitano. Era espichar o olho e ver a Espanha, logo ali do lado direito de quem chega pelo sul, eternamente abraçada a Portugal, como se não quisesse largar a terra perdida há mil anos. O país é miúdo, tem escassez de território e, mesmo que o pouso estivesse previsto (se,  pela graça do bom Pai, nada acontecesse) para o Porto, bem lá no norte, os pilotos pareciam estar cientes de que, mal entrassem em Portugal, já era hora de começar a puxar os freios. E foi nesse ritmo de freada que passamos por cima de Albufeira, Lagos, Faro, Olhão, os tetos rosados de Lisboa, e seguimos em frente, perto do litoral, com sobrevôos relativamente dramáticos (mas nada acontecia, porque os anjos da guarda entendem de decolagens e pousos como ninguém) sobre Espinho, Granja, Aguda, Miramar, Madalena. Logo depois era a vez de surgir o rio Douro, mas umas nuvens duras, carregadas de chuva, dificultavam a manobra.  As nuvens do céu do norte de Portugal são sempre densas, ao contrário do mar, que é mais dado a calmarias, o que explica, em parte, porque os portugueses descobriram e inauguraram o mundo moderno em barcos, e não em objetos voadores. Calcularam as ondas e os ventos e decidiram que por via marítima a coisa prometia ser um sucesso. 

         Eu também devia ter feito os mesmos cálculos, mas estava ali, a bordo de um avião que gemia entre nuvens choronas, à procura de uma saída para o Porto, a cidade brotada exatamente na curva onde o rio Douro se joga para dentro do mar gelado. Os pingos da chuva portuense respingavam nos plásticos duplos das janelas. Eu cravava as unhas em qualquer coisa que estivesse ao meu alcance. Jurava que nunca mais atravessaria o Atlântico, que nunca mais iria querer viver na Europa, que nunca mais acreditaria na tecnologia.

         A portuguesa, nova, bem moderna, sentada ao meu lado, quis me acalmar:
-Sem crise.

       A hospedeira do ar (não riam. Eles também riem de aeromoça), que passava para verificar se tudo estava como o planejado, deu um sorriso profissional:
- Já estamos a aterrar no Aeroporto Francisco Sá Carneiro.

Primeiro, achei indevido da parte da portuguesa moderna me pedir que encarasse sem crise o sacolejo embrutecido do avião sobre o Porto. Depois, as palavras da hospedeira ricochetearam nas paredes internas da minha cabeça. Aterrar? Não seria uma palavra drástica demais? Mas as considerações sobre a aterragem cessaram quando me lembrei do nome do aeroporto. Futuquei o braço da moça ao meu lado, a moderninha:
-O aeroporto daqui se chama Francisco Sá Carneiro?

Não era pânico nem estertor, era uma consideração. O Francisco em questão tinha sido um liberal de grande importância na saída de Portugal da ditadura salazarista, derrubada com a Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974. Também tinha chegado a ocupar o cargo de primeiro-ministro do país. E tinha morrido em um desastre de avião, quando o Cessninha em que ele viajava, de Lisboa para, justamente, o Porto, despencou rumo ao chão daquele mesmo aeroporto que agora tinha o seu nome. A gente sabe que as autoridades, uma vez mortas, merecem e apreciam essas homenagens, com placas e faixas cortadas por bispos e familiares enlutados. Mas por que o aeroporto? Não podia ser um teatro? Ministros adoram isso. Ou uma auto-estrada, daquelas bonitonas, que ligam grandes centros, para não parecer que a figura era de pouca monta.
-Minha nossa Senhora, que mau agouro uma coisa dessas –falei baixinho.

A moça do meu lado não comentou nada. Mas e se o rifle de longo alcance, com mira automática, usada por Oswald Lee para matar o presidente americano em Dallas fosse rebatizado, por seus fabricantes, de rifle John Fitzgerald Kennedy?  Por isso é que, hoje, com as devidas homenagens, ele é nome de aeroporto em Nova Iorque, e não de arma, o que, seguindo o mesmo raciocínio, faz com que Francisco Sá Carneiro devesse ser nome de revólver e não de aeroporto, se é que me entendem.

O avião, já quase desparafusado de tanto tremer e espernear, como se nós fôssemos o touro e as nuvens, os toureiros, apontou o nariz e entrou de cheio na chuva que caía pesada sobre Pedras Rubras, a zona residencial onde fica o tal aeroporto, cujo nome é melhor não ficar dizendo. Aterramos.  Só eu transpirava. Alguns passageiros olhavam distraídos para a pista através daqueles buraquinhos plastificados que, por pura demagogia, costumam chamar de janelas. Outros se espreguiçavam e procuravam os sapatos. Senhoras mais zelosas dobravam caprichosamente as mantas da companhia aérea. Se deixassem, elas, com desvelo doméstico, recolheriam também todos os copos, xícaras e guardanapos do pequeno-almoço (não riam. E nós, que nos contentamos com dizer uma coisa óbvia, feito café-da-manhã?) e entregariam na cozinha do aeroporto.

É na alfândega que a gente, os brasileiros, se dá conta de que Portugal se virou para a Europa e esqueceu o destino Atlântico – mesmo que “destino Atlântico” tivesse sido, um dia, mote de políticos, entre eles o ex-presidente Mário Soares, que volta e meia está no Brasil para nos elogiar e mostrar o seu apreço pelo filho dileto de Portugal, que somos nós. Mas foi o primeiro-ministro Cavaco Silva quem empurrou o país para dentro do continente e deu as costas para a África e a América de língua portuguesa, por motivos que vão desde as manobras econômicas até o fato de ele ser do Algarve, um das poucas regiões portuguesas que não mandaram muitos filhos para melhorar de vida no Brasil. A política sempre tem que ser considerada por esses sintomas afetivos. Dizem que o amor move tudo e talvez seja por isso que nenhuma autoridade, por mais canalha que seja, seja capaz de sancionar uma lei que prejudique, por exemplo, a própria mãe. É preciso considerar essas coisas na hora das análises mais frias e por causa disso, desse desapego pelo Brasil, criado na época do Cavaco Silva, é que os agentes alfandegários olharam para o meu passaporte com ar detetivesco, como se tivessem barrado na malha fina uma ameaça para a nação renascida das cinzas, rumo ao novo-riquismo europeu.

Eles me encararam. Eu, por falta de opção, encarei de volta. Me perguntaram de onde eu vinha. Eu disse. Quiseram saber quanto tempo ia ficar por aqui. Disse que um mês, o que era mentira, porque tinha vindo para ficar. Depois, perguntaram a minha profissão. Sempre é meio constrangedor dizer “jornalista” quando fazem uma pergunta dessas, porque não parece ser profissão, parece oportunismo ou desocupação, mas foi o que respondi.

Abriram a minha mala e, nessas horas, você só pensa: vai ter meia furada, vai ter cueca suja. Mas eles se surpreenderam foi com o xampu. Era um frasco desses de marca recente, que gosta de cores mais como o lilás, amarelo-ovo, azul-celeste. O meu, por acaso, era cor de tinta de caneta tinteiro. O homem ergueu e girou o frasco contra a luz, examinou com cuidado e me olhou com uma certa interrogação. Acho que entendi e, aí, respondi:
-Xampu, né?

Ele não acreditou:
-Xampô? Mandem examinar lá isso.

         E um deles foi embora, com o meu frasco sendo carregado com cuidado. Enquanto esperava pelo resultado do exame anti-doping, ele continuou a investigação:
-Então, você é jornalista. Lê muito...

         Achei simpática a constatação. Uma coisa delicada, pertinente. Respondi que sim. Ele foi esperto, bem matreiro:
 -Então, diga lá o nome de um escritor brasileiro.

         Provavelmente será, por toda minha vida, uma tarefa árdua entender por que a investigação dos agentes alfandegários abandonou os cosméticos e tomou rumo literário. Talvez se deva a uma estratégia investigatória extremamente elaborada, que eles aprendem em cursos de formação, e que funciona na base do, se tem cara de quem lê, pergunte sobre autores. Se é dentista, pergunte sobre amálgamas e porcelanas. Moça da vida? Pergunte sobre marcas de preservativos. Que coisa sofisticada, pensei, antes de responder:
 -Jorge Amado.

         Meu sorriso era amarelo, meio sem graça e com falta de jeito. Pensei: vai que o homem gosta de ler e pensa que eu só leio isso. Mas ele repetiu.
 -Não. Estou a perguntar um escritor que seja brasileiro.

         Senti que a coisa não ia ser muito fácil. E eu havia escolhido Jorge Amado exatamente para facilitar a compreensão, porque imaginem se eu tivesse dito Osman Lins ou Augusto dos Anjos e eles pedissem para eu dar uma breve explanação sobre o sentido da obra dos dois. Ia ser muito hermético e, aí, escolhi Jorge Amado, um escritor cujas linhas querem dizer o que está escrito mesmo, sem muita segunda intenção. 
-Jorge Amado - repeti.

         Ele alterou um pouco o tom da voz:
 -Brasileiro! Um escritor brasileiro!

         Pus o mesmo ponto de exclamação nervoso e contundente na minha resposta.
-Mas vocês querem o quê?! Que eu negue a nacionalidade de um escritor tão...tão (caramba, como é difícil achar um adjetivo que descreva uma literatura cheia de dendês e tabuleiros) tão...pitoresco?!

         Meu ataque surtiu efeito porque ele se reuniu com seus colegas de profissão, deliberou sobre o assunto com certa demora e voltou, já convencido de que a Bahia gerou Jorge Amado, que gerou o romance Gabriela Cravo e Canela, que gerou a novela Gabriela, que gerou Sonia Braga, que gerou uma revolução nas televisões portugueses. E lascou:
 -E Vergílio Ferreira, conhece?

         Meu Deus do céu, eu não sabia quem era. Pensei, pronto, agora me barram e me mandam de volta. Gaguejei uma resposta esfarrapada, que eles, de qualquer jeito, aceitaram. Mas me aconselharam a ler Vergílio Ferreira, um dos grandes escritores portugueses. Devolveram o meu xampu, liberaram o meu passaporte, permitiram que eu fechasse a mala e me deixaram passar.

         Atravessei a porta de vidro da ala internacional, caminhei apressado pelo saguão e saí do prédio para entrar no Porto. A cidade estava lá, bordada contra o céu molhado. Cá dentro do peito, uma emoção de Pedro Álvares Cabral às avessas.

  

Um comentário:

João Lucas disse...

Belíssimo texto, meu querido amigo. Para um português, uma gralha incontornável: o Sá Carneiro despenhou-se em Camarate, ali ao lado do aeorporto de Lisboa. Dirigia-se para o Porto mas não chegou lá. O nome do aeroporto fica ainda mais ironico!