A rua da mesma
Nestes
primeiros dias, o que mais tenho feito é ler as ofertas de emprego nos jornais.
Portugal pode estar saindo da grande depressão dos anos 80, quando até passaram
a chamar o de 25 de Abril de “ a revolução falhada”, mas emprego mesmo não tem
ainda. Então, o que faço é ler os jornais, de uma ponta à outra. Aproveito para
aprender o estilo local.
O
jornalismo tem vícios violentos, só que o estilo português é muito precioso.
Parece que foram os franceses que inventaram que escrever bem é atravessar um
texto inteiro sem repetir palavras, o que transforma o ofício da escrita numa
desesperada caça de sinônimos. Pois bem, os jornalistas portugueses fazem isso
com um rigor admirável. Bem que eu estranhei no início, quando li os primeiros
jornais sentado no Café Buraco Quentinho, ali perto da Batalha, praça no centro
da cidade do Porto. Tive que decifrar que, se no título da reportagem, já está
estampada a palavra França, ela se torna mais ou menos proibida no texto e passa
a ser “aquele país gaulês”. A Espanha, não dá outra - é sempre “aquele país
vizinho”, mas a Itália, que fica mais longe e tem até que atravessar montanhas
para chegar lá, é “aquele país transalpino”. Confesso que gosto quando eles
chamam o Brasil de “aquele gigante latino-americano” ou a Bahia de “aquela
terra de Jorge Amado” (viram? Eu não falei que ele era conhecido aqui? Não
entendo por que os policiais duvidaram que fosse brasileiro), mas tropecei e
até gaguejei quando encontrei um país apresentado como “aquela zona tórrida do
globo terrestre”. Acontece que eu estava lendo a notícia sem prestar muita
atenção e me perdi, o que me fez voltar todos os parágrafos, minuciosamente,
para entender que era a África do Sul. Sinceramente, acho que o jornalista exagerou.
Essa
ânsia de não repetir palavras, para manter o brilho acadêmico do texto, é tão
forte que um jornalista que conheci outro dia me contou que um certo jornal de
Coimbra, cidade a 100
quilômetros ao sul daqui, chegou a ter problemas quando
foi dar a notícia do corte de energia elétrica numa rua chamada Luz. Só
resolveu o grave impasse ao publicar “Faltou luz na rua da mesma”.
Mas
nem só com estilos franceses se espanta o leitor brasileiro. As palavras são levianas
e fúteis, e basta que atravessem o Oceano Atlântico para mudarem de significado. Por isso é que não me alarmei quando li
“Silveira bate Pinto em corrida de bicicleta”. Fui com cuidado, destrinchando a
coisa. Primeiro, senti um arrepio ao imaginar a dor que devia ter sentido o
Silveira na corrida de bicicleta e até me perguntei se tinha sido contra o
selim ou contra o guidon, mas depois
fiquei pensando que bater podia ser ganhar ou vencer e que, se fosse assim, a
coisa estava explicada: Silveira e Pinto correram, mas só o Silveira ganhou.
Não
que eu seja obcecado por certas partes da anatomia, mas foi dias depois que
também li: “Faltam rolas em Portugal”. Quer dizer, um sujeito bate a dele na
corrida de bicicleta e, depois, todas as outras somem do país. Uma desgraça.
Mas as rolas, que são animais importantes para a preservação da ecologia
portuguesa (as cegonhas e os lobos também) estão ameaçadas de extinção, e não
tinha outro jeito de dar a notícia a não ser criando todo esse alarme fálico,
que me fez pensar que “se está faltando, alugo a minha”. Mas era desvario de
desempregado, nada sério.
E isso
não é nada, em termos de bagunçamento lingüístico, se comparado com o que
aconteceu quando um jornal de Lisboa resolveu homenagear o primeiro século de
vida do funicular que vai da Avenida da Liberdade até o Bairro Alto. Como
funicular não parece nome de meio de transporte e lembra, isso sim, verbo de
ação íntima, como alguém que funicula outra, o bondinho, que
passa os dias subindo e descendo, recebeu o nome de Glória, assim mesmo, sem
cerimônia. Qualquer um pode pegar a Glória, subir na Glória, descer dela, tudo
à vontade, só tem que pagar alguns tostões. E esse à-vontade ficou tão grande
que o jornal não teve dúvida e pôs lá: “Glória trepa há 100 anos”. Fiquei
encantado com tamanha vitalidade e pensei “Ah, mas então não está faltando
rola, senão, como é que pode?” O Silveira, depois do impacto de bater o Pinto,
também deve ter frequentado Glória, a
trepadeira secular.
4 comentários:
Sempre divertido e inteligente!
Muito bom!
Adoro ler-te!!!
Adorei! Também sofro dessa neura de não querer repetir palavras nos meus textos jornalísticos ou do blog..
Beijos,
Lulupisces.blogspot.com
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