■ A mulher que caiu do céu
Tinha
ficado combinado que, no dia seguinte, ia me encontrar com Carlos e Clara na
praia de Miramar, para ver a apresentação dos alunos do curso de paraquedismo. Como eu tinha a experiência de conversar
sobre cuecas, achei que ir ver gente pulando de paraquedas não ia ser nada
surpreendente e fui, conforme o acertado, me encontrar com eles no ponto da
praia em frente à casa de portão amarelo.
Algumas
praias do norte de Portugal são, a bem da verdade, mais literárias do que
praianas. Tem a areia, tem as rochas e tem as ondas que batem contra as rochas.
Mas tem a água muito fria, gelada, que, se para as mulheres faz com que os
biquinhos dos peitos fiquem hirtos e radiantes, tem a propriedade de, nos
homens, lançar os ovos virilha acima. A gente entra na água, é atravessado por
uma rajada cortante de arrepios, e, pronto, o saco, antes todo pomposo, encolhe
e fica vazio.
Quando
o avião começou a fazer rodeios no céu em cima da praia de Miramar, Carlos e
Clara ainda não tinham chegado. Mas havia uma pequena multidão, na areia.
Juntei-me a ela. Lá em cima, os primeiros alunos começaram a saltar. Na areia,
um alvo marcava o ponto exato onde deveriam pousar. Mas foi aí, justamente aí
nesse momento, que o vento (o mesmo vento que sempre existiu em Portugal e que
empurrou as caravelas em direção ao resto do mundo por descobrir) deu o ar de
sua graça. Embaixo, onde nós estávamos, era só pôr as mãos nos bolsos dos
casacos e diminuir o comprimento do pescoço para dentro da gola. Lá em cima,
parece que a situação ficava mais drástica.
Os
seis paraquedistas passaram, então, empurrados pelo poder do vento, a fazer uma
espécie de nado sincronizado nas alturas. As pernas se abriam, os corpos se
cruzavam contra o azul do céu. As cordas dos paraquedas se esticavam. A coisa começou a ficar bem mais emocionante.
Eles se aproximavam da areia. O alvo continuava no mesmo lugar, eles é que não
se decidiam para onde ir. O vento soprava para o oeste. E lá iam eles na mesma
direção.
-Ohhhhhhhh - delirava a platéia plantada na areia.
O
vento, muito inconstante, se empinava para o leste. Os paraquedistas seguiam
atrás, sem, nem por isso, perder a força da descida. Chegavam cada vez mais
perto da areia, mas já sem garantia alguma de que acertariam o alvo. Foi aí que
alguém resolveu raciocinar: tem alvo, tem gente descendo, tem vento forte e tem
nós aqui, debaixo deles. E deu o alarme:
-Saiam, saiam todos! Cuidado!
O nado
sincronizado começou, então, também na areia. No início, era uma coisa tímida,
de poucos passos, apenas o suficiente para arredar e deixar sobrar espaço para
paraquedista e paraquedas. Mas eles se aproximavam demais, em velocidade cada
vez mais acelerada. As pessoas começaram a correr. Talvez a corrida dos corpos
na areia formasse um canal magnético porque sempre havia um paraquedista atrás
de alguém. Virou pânico. As botas dos alunos estavam sistematicamente apontadas
para nós, em rodopios, em vaivéns, em grand-jetés desajeitados. O vento cantava
Miramar afora.
Nesse
momento, um corpo celestial me escolheu como ponto de pouso. Fui para todos os
lados, aos pulos. Tentei escalar a pequena duna coberta de vegetação baixa e
escorreguei de volta. Fiquei deitado, com a barriga para baixo. Dois pés
armados com botas bateram nas minhas coxas para escorregar em seguida, um peso
de corpo humano acrescido de paraquedas se esparramou em cima de mim, agitado
como um polvo embaralhado nos tentáculos. Era a Adélia, a mulher que caiu do
céu direto pra dentro da minha vida. Senti, ali, que tinha me tornado o seu
alvo.
Um comentário:
"a mulher que caiu do céu direto pra dentro da minha vida. Senti, ali, que tinha me tornado o seu alvo." Lindo isso.
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