11.08.2005
Ama.da-Aman.te
Eles entravam no trem aos montes. Traziam caixas, embrulhos, pacotes, trouxas, bundas imensas, bebês seguros em mantas jogadas nas costas e atadas em nó à volta do pescoço. Traziam também engradados de galinhas, ovelhas na coleira, leitõezinhos orelhudos. E falavam em quêchua, a mais oriental de todas as línguas do continente americano, com uma enxurrada contínua de palavras de uma sílaba só, interrompidas por súbitos pontos finais. Para o estrangeiro, o quêchua é uma algazarra de sons agudos, uma ingrezia delicada.
Eu me sentei para esperar, a qualquer momento, o arranco do trem rumo a Huancayo, nos Andes peruanos. Em minha frente, se acomodaram a índia jovem de tranças negras e chapéu e o índio velho de olhos tristes. No colo dela, um galo com penas luzidias, cor de caramelo, e crista vermelha como sangue bom.
Ela era bela. Os olhos eram distantes, como olhar de princesa proibida. Não sorria, mas não era indiferente. O nariz, súbito, grande, brotava do rosto como uma montanha aquilina. Os cabelos pretos eram azuis, presos em tranças que terminavam amarradas por fitas coloridas, amarelo-vivo e vermelho-crista-de-galo. A manta nos ombros copiava, listra por listra, todas as cores do mundo, sem faltar uma. A saia, verde como uma esmeralda, era rodada e terminava nos joelhos, de onde se podiam ver todas as anáguas das mulheres incas.
O galo se acomodou no colo dela como quem tem o hábito de ficar ali, sempre. O colo era a casa dele. Os braços da mulher eram o amparo que ele tinha para sempre. Os lábios dela, carnudos, bonitos, com jeito macio, beijavam apenas a crista dele.
O trem sacudiu e foi. Primeiro, ia de frente. Depois, de marcha a ré. De frente, novamente. De marcha a ré outra vez. Até chegar lá em cima, onde a estrada de ferro era, finalmente, uma reta nas alturas geladas.
O soçobro do vagão pelas montanhas adormecia o índio velho, a índia linda e o galo dela. Encostei o cotovelo no braço do assento, apoiei o rosto na mão aberta e semi-fechei os olhos para observar melhor a mulher apaixonada pelo bicho de penas. Só eles dois se entendiam no alvoroço do trem que falava quêchua. Os olhos dela, mornos, mansos, secretos olhavam pela janela.
O vento frio entrou no vagão. A índia se ajeitou na manta colorida e o galo se escondeu no colo dela. Sem tirar os olhos secretos da janela, como se visse o que eu não via nem imaginava o que pudesse ser, começou a cantar. Tinha o timbre e a doçura das vozes que vêm de longe, que atravessam mares, sobem montanhas, sopram com os ventos, vibram como talo fino de bambu. Só a música era conhecida. De um jeito calmo, seguindo o ritmo do trem, ela cantou Roberto Carlos. Ama.da-Aman.te. Assim mesmo, com pontos e interrupções surpreendentes, como se fosse quêchua.
O homem passou a dormir com a cabeça apoiada na parede do vagão. E, num solavanco sobre a emenda dos trilhos, a cabeça dele caiu para frente. A partir daí, o balanço miúdo da viagem fazia os cabelos pretos e lisos do índio balançarem na testa.
A mulher nova parou de cantar. Falou alguma coisa para o homem. Ele não respondeu. Ela tocou no ombro dele e o peito todo caiu, em direção às coxas. Ela se levantou. Abri os olhos e me ajeitei na cadeira. De tudo o que ela dizia, eu entendia “pápi”, repetido várias vezes, como se fosse um ensaio para o desespero. Primeiro, em voz baixa. Depois, várias vezes, com velocidade. E, então, um grito só que se espalhou pelo vagão inteiro.
O funcionário da estrada de ferro chegou em seguida. Já todos estavam de pé e tudo se agitava dentro do vagão: mulheres, homens, crianças, ovelhas, porcos, embrulhos, trouxas e malas. O trem rangia com dor sobre o aço dos trilhos. A velocidade aumentava, as montanhas passavam ágeis pela janela.
Alguma coisa foi decidida e só eu não sabia o que era. A índia, linda e triste, se sentou novamente ao lado do homem já morto. Abraçou-se ao galo, que não se mexeu, não bateu as asas, não cacarejou. Os dois, mais do que nunca, tinham, agora, olhares de realeza. Somente uma princesa seria capaz de sofrer tanto, e com tanta ternura calma, diante de um defunto.
O trem parou, arranhando os trilhos. O ruído fino, capaz de arrepiar as peles, parecia um lamento espichado, agudo, mórbido. Lá fora, a paisagem andina, com árvores, picos, sol e frio. A índia esperou. Quatro homens puseram o corpo para fora do vagão, pela janela, enquanto dois outros esperavam do lado de fora. Ela, abraçada ao galo, não olhava para nada.
Foi então a hora da índia sair. Ficou de pé, ergueu suavemente a cabeça, protegeu o galo entre os braços e caminhou pelo corredor do vagão. Como uma princesa que caminha entre os bancos da catedral para chegar ao altar e ser coroada rainha, ainda de luto pela morte do pai. Nos braços, levava a mais importante jóia do seu reino inteiro.
Então, pela janela eu podia ver o corpo estirado no chão e ela, em pé, hirta e linda no meio das cores que cobriam o corpo todo. Tentava entender por que era ali, no meio das árvores, nas lonjuras andinas, que eles tinham que descer do trem. Ou, talvez, tinham sido colocados para fora, por questões de morte.
O trem deu novo arranco. Fiquei na janela e vi, cada vez mais longe, mais indefinido, as cores da índia, as penas do galo, o corpo do morto. Mas me tranqüilizei. Sozinha, no exílio, ela não estava. Tinha um corpo quente e querido entre os braços. O galo, a crista, as penas luzidias cor de caramelo, eram, agora, o amparo da amada amante.
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7 comentários:
Puxa, a Ama.da-Aman.te linda e triste e vestida de todo colorido do mundo me deixou nostálgica, mesmo com o amparo do galo, estava só, no meio do nada...
Linda...
Tocante, Ribondi...
Fiquei até com nó na garganta!
Nelsinho
Muito linda e triste a sua história. Espero que tudo tenha saído bem ontem.
Ribondi, pelo jeito, você é inesgotável. Onde é que você estava guardando tudo isso?
Vc é uma caixinha de surpresas! Uma história maravilhosa, sensível e triste, nos faz ficar com nó na garganta e tem um desfecho divino - o amparo do galo.
Que lindo! Obrigada. Nice
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