11.01.2005

A coisa maternal




Tinha prova final de educação física. Questão única: salto de vara. Meu pai, com a agilidade dos facões e canivetes afiadíssimos, fez a vara com madeira branca, cheirosa. E treinei em casa, no fundo do quintal, porque, sendo o pior aluno da matéria, precisava de nota muito boa, daquelas que a gente não tira nunca.

E, no dia mais importante do ano, abri os olhos cedo. Lá fora, tudo escuro, sem som. Ouvi o barulho lerdo da geladeira na cozinha e combinei, comigo mesmo, que ia contar até 20 e se, nesse espaço de tempo, a geladeira não se arrepiasse e não se sacudisse nem uma vez para mudar a marcha, eu não ia fazer a prova.

Contei depressa, mas, mesmo assim, fui derrotado na aposta ali pelo número 12. Vesti o calção azul-marinho, a camiseta branca de alças, calcei os congas brancos e limpos, apanhei a vara reluzente e ainda cheirosa e, como um condenado no corredor da morte, fui.

Abri a porta de casa. Nem o céu tinha acordado ainda. Os trilhos da estrada de ferro estavam quietos, a rua parecia nunca ter sido usada, o ar gelado tinha jeito de novo. Sozinho, abri o portão de casa e andei em linha reta para a escola, me lembrando de tudo o que tinha que fazer. Não para aprender a saltar com a vara, mas para passar de ano.

A cidade estava sendo calçada e, ao longo da rua, tinham deixado montes de areia e pequenas paredes feitas de paralelepípedos empilhados. Decidi que, então, ia treinar ali mesmo, para chegar na escola com grau de excelência.

Vi o monte de areia e os paralelepípedos empilhados. Os únicos espectadores eram as janelas fechadas e as luzes dos postes, ainda acesos no escuro da madrugada. Dei alguns passos para trás, segurei a vara com firmeza, raspei os pés no chão. Cheguei até a cuspir nas mãos para segurar com mais firmeza. Era assim que se fazia.

Corri, apoiei a vara no chão de terra, subi, firmei os braços, estiquei as pernas, voei por cima dos paralelepípedos e me preparei para terminar o vôo em cima do monte de areia. E, veloz, sentindo o vento gelado bater no rosto, desci.

Aí, foi um berro só. Depois da beleza do vôo curto, bati sentado, quase retumbante, em cima de coisa esponjosa. Grande e gorda. E, sobretudo, coisa viva.

O arrepio nasceu na minha nuca e deslizou às pressas pelo corpo todo. Minha reação de emergência foi fechar os olhos com a promessa de nunca mais voltar a olhar ou ver ou enxergar. Por isso, a outra reação foi me agarrar ao que pudesse, para não cair mais. E só pude agarrar a coisa.

Ela grunhiu. Era grunhido de mula-sem-cabeça desesperada, de monstro das profundezas dos mares, perdido no alto da serra. Era gemido saído do fundo do mundo. Era coisa que babava e se sacudia, esponjosa, quente, macia.

Berrei com força, ainda com os olhos fechados. A coisa se multiplicou, eram várias. Uma grande, outras menores, que se esbarravam umas contra as outras e em mim. Segurei com mais força ainda. Os meus músculos estavam duros demais para relaxar e deixar ir. E, no meio da areia e dos paralelepípedos, a movimentação se tornou um luta entre corpos, um vale-tudo coletivo, escorregadio e sem regras.

Mas, de repente, os grunhidos se tornaram inteligíveis, familiares, domésticos:

-Oinc... oiiiiinc!

Abri os olhos e vi a porca imensa, bonita, branca, cheia de gordura e toucinhos, rodeada de leitõezinhos. Ela me encararava raivosa, postada como uma parede entre os filhos e eu. O olhar era de desespero puro, de pânico com taquicardia por ter sido acordada por alguma coisa que tinha caído do céu justo na barriga e nas tetas, a ponto de quase matar as crias.

Ela e os filhos correram para um lado e eu, para outro. Eles em direção à praça. Eu, de volta para minha casa, sem a vara. Deixei o portão aberto, empurrei a porta da cozinha e me escondi na cama, com tremores que sacudiam o lençol, a coberta, o cobertor, o travesseiro e a fronha. Só saí de lá depois que as luzes do dia tinham entrado na casa toda e que a família inteira já estava em plena atividade.

-E como foi a prova de educação física?

Contei tudo, para ser salvo. Falei da porca parida que queria me atacar, por motivo nenhum. Falei, com detalhes, de como eu ia indo pela rua quando ela começou a correr atrás de mim. Expliquei que até tentar me morder, a porca tinha. Depois, me vesti para ir para a escola e, mal cheguei, fui informado que tinha ficado de segunda época. Além disso, como castigo pela insubordinação de não ter comparecido, fui obrigado a passar uma hora, no pátio do colégio, depois do horário de aula, com os braços abertos. Um tijolo em cada mão aumentava o suplício.

De repente, minha mãe entrou tensa na escola. Pisava firme, como um esquadrão inteiro. Gritava:

-É apenas uma criança! Onde já se viu absurdo destes? Ele vai embora para casa comigo. Agora!

O professor de educação física respondeu, com voz grossa, que, ali na disciplina dele, quem mandava era ele. Minha mãe reagiu com um argumento certeiro: deu um safanão no homem. Só que ele, por acaso, era quase autoridade, por ser primo do prefeito. Ainda bem que minha mãe gostava desses confrontos e era mestra em fazer valer os pontos de vista dela. Era assim lá em casa, era assim no mundo inteiro.

-Eu não tenho medo nem do senhor nem do seu irmão.

Ia saindo e voltou, avermelhada:

-E quer saber? Não tenho medo da sua mãe também, não. Ela devia ter criado melhor a família para agora não ser avó de menina sem pai. Diga isso a sua irmã!

Quando seguia para casa, aos tropeções, quase arrastado pela minha mãe que, furiosa, prometia que as coisas não iam ficar daquele jeito, vi a porca e os leitões outra vez, na rua. Ela dormia tranqüila, tranqüila.

Procurei a vara. Nunca mais achei.

6 comentários:

Anônimo disse...

Ribondi,
tua mae tb e´baixinha,ne´?
Teve qtos filhos?Esse tipo de atitude ...eu gosto muito dela.Quer dizer,eu gosto de como vc fala sobre ela.Ela ainda ta´fortezinha assim?Naolembro mais direito daqueles coments sobre maes com nome de Hurricane.
Se fizer sentindo um dia,da´um abraco meu nela.Duma baixinha para outra.

Anônimo disse...

A coisa maternal é forte, brota assim mesmo, furiosamente, é instinto puro certas horas, como bem o senhor descreveu.
E vivam as baixinhas, como bem disse a monica r., mas as altas também defendem as crias assim, no grito!

Anônimo disse...

Além de adorar o que você escreve, acho linda a forma como você retrata sua mãe.Ela deve ser uma pessoa muito especial.Amei o conto suínocida.

Anônimo disse...

Ribs,eu tenho parente tb em Guarapari!
Poxa,tua mae conseguiu ser maior do q eu!!!Se ela e´cotoco de gigante oq q eu sou entao?Eu tenho 144 cm.Sou cotoco de nanico.
Um beijo,monica.

Nelsinho disse...

Mulher não se mede aos palmos...
A minha companheirinha também é pequenina, mas tem a alma grande e força descomunal!...Cutucá-la pode dar reação séria!

Enfim, Ribondi! Saltar à vara e cair numa vara de porcos seria para correr a jogar no Porco. Será que tem disso no jogo do bicho??

Uma pergunta que me faço e não espero resposta sua: "Esse ritmo alucinante na publicação de contos...Será que êle já tem muita coisa escrita, ou é mesmo a pena mais rápida deste reino?"

Uma pergunta à qual espero resposta: Teremos nós, leitores e tietes, um livro de contos publicado?

Nelsinho

Anônimo disse...

Oi Rib! Lembrei de quando fui expulsa de sala pq estourei um saco de pipoca (fez um barulhão!). Minha mãe ficou furiosa e mandou um bilhete desaforado pra escola.
Em compensação, quando "fingi" que passei de ano, não compareci para as aulas de recuperação de matemática e fui direto pra segunda época... levei uma bela surra e fiquei trancada no quarto até saber toda a matéria! Coitada da minha mãe. Eu não era mole não.