11.07.2005

A descoberta da América





Nunca consegui fazer a diferença entre as penas dos condores e os cabelos dos índios. Eu passava de ônibus, trem, na carroceria de caminhão, camionete, ou até a pé, nas estradas empoeiradas e tortas dos Andes, e olhava para o céu. Lá em cima, na ponta estreita e fina de alguma montanha, sempre estava um ou outro.

Que fosse um condor, era belo e fácil de entender. Mas se fosse um índio, era belo e difícil de entender. Se tem tantos vales, tantas margens de rios, tantas lhanuras, por que escalar montanhas, procurar a ponta delas, e ficar lá, em pé, de cara para o vento, enfrentando o abismo? Talvez porque não haja mesmo diferença entre ele e o condor, sendo os dois habitantes dos lugares mais altos do mundo. Talvez para entender a paisagem. Talvez para procurar lhamas.

O rio Urabamba passava lá embaixo, pulando, com força, sobre pedras na garganta entre montanhas. A ponte, feita apenas de corda e madeira, era cá em cima, com as pontas amarradas em cada margem.

Passar pela ponte, com mochila nas costas, era como tentar se equilibrar em um colchão d’água. E era isso que o americano Andrew e eu fazíamos lentamente, passo a passo. O trem, que vinha de Cuzco, tinha parado no Km 88, que não era nada, nem cidade, nem vila, nem pueblito. Apenas uma estação sem plataforma, sem guichê, sem quem trabalhasse nela. Só uma casa pequena e uma ponte de madeira e corda do lado, sobre o Urabamba.

Descemos, cruzamos o rio e chegamos ao começo do Camino del Inca, que, Andes acima, ia até as ruínas da antiga cidade de Macchu-Pichu. Era por caminhos assim, a pé, que eu tentava entender coisas estranhas, exóticas, desconhecidas, como a América do Sul, de quem o Brasil é irmão desgarrado.

Fomos. Sol e frio. Um verdor intenso, quase insuportável. Cheiro inca de folhas de coca, estrume, lã, pão, batatas. Paramos no fim da tarde e comemoramos o primeiro dia com uma garrafa de vinho. Deixei o Andrew sentado em uma pedra e saí para conhecer as vizinhanças.

No alto da montanha, na ponta estreita onde o mundo acaba para se tornar vento, um condor. Ou um índio. Olhei para frente e vi três animais, dois adultos e uma cria nova. Eram bichos vesgos, altaneiros no equilíbrio sobre um pescoço grande. Os donos enfeitam as orelhas deles com penduricalhos de lã colorida, com sinos. Mascam como se não tivessem mais nada para fazer na vida. Quando me viram, levantaram os rabos curtos e deram um passo à frente.

Não notei que interrompia uma reunião familiar. Eles deram mais passos à frente, como quem vai e fecha a porta. Avancei. Mas um deles avançou mais que eu, já irritado.

Foi aí que desconfiei que o clima tinha uma certa tensão, como no círculo de uma arena. Um dos bichos adultos se preparou. Deu uma corridinha para ver se me impressionava. Mas fiquei no mesmo lugar, impedido de fugir pela curiosidade de ver o que iriam fazer.

E fizeram. Correram em minha direção. Corri deles. Desci o morro e quis dizer ao Andrew, aos berros, que o perigo se aproximava. Mas, por algum motivo que me escapa até hoje, por algum processo que tem o nome genérico de pânico, ou excesso de vinho no organismo, acrescentado ao efeito das alturas, me esqueci como se diziam algumas palavras. Entre elas, justamente, o nome dos animas vesgos e altaneiros.

Mesmo assim corri. Corri morro abaixo. Gritava “atención, atención”. Várias vezes. E por falta de palavra mais correta, mais definitiva, quando passei a correr muito, gritei, de maneira bem comprida, assustadora mesmo, o nome do único outro animal que, eu achava, se assemelhava à família que, aos pulos e passos rápidos, me expulsava do território. Assim, por eles serem de bom porte, donos de línguas grandes e grossas, por terem rabos, quatro patas e a fêmea apresentar tetas cheias, berrei:

-Atencióóón, vaca! Vaaaaaaaaaaaca!

Subi numa árvore, enquanto o Andrew permanecia sentado exatamente na mesma pedra, com olhos calmos. Talvez risse por dentro, coisa que, provavelmente, também faziam os animais que, agora, pastavam.

A mesma surpresa, o mesmo susto voltaram, quando cheguei à casa do Andrew, no sul dos Estados Unidos. Haviam se passado 30 anos sem que um tivesse notícia do outro até aquele dia do reencontro. Entrei num avião em Brasília e pousei lá, em Albuquerque, a cidade no meio do deserto.

A casa era de tijolo cru, como nos Andes. A grama do quintal grande, imenso, tinha o mesmo verde andino. O silêncio embalado pelo Rio Grande, que corria nos fundos, também era peruano. E lá, no meio do verde, perto do rio, no pasto debaixo das árvores, dois animais, como se fossem duas vacas domésticas.

Eram as lhamas de Andrew, que explicou:

-Para que eu não esqueça nunca a América do Sul.

Cheguei perto de Sarah e Ruby. O mesmo olhar vesgo. O mesmo jeito altaneiro e desdenhoso. Os passos miudinhos e certeiros, exatamente como as outras. Os rabos curtos e ágeis. Cheguei mais perto. Aí, pela primeira vez, conseguir tocar o pêlo. Alisei. Fiz carinho no pescoço de Sarah. Chamei Ruby, com voz baixa. As duas se aproximaram.

Três décadas antes, eu estava nos Andes, à procura da América do Sul. Achei, então, sensações dela na América do Norte. E, salvo engano, entendi que, de maneira pessoal, íntima, sincera, tão viva e quente quanto o meu sangue, a América começa nos fiapos da Patagônia e termina onde o Canadá vira gelo. Tudo passa por lhamas, geleiras, florestas, gramas verdes e rios bravos.

Sarah, Andrew, Ruby e eu. Um continente só. O único que vai de um pólo ao outro. América.

7 comentários:

Anônimo disse...

Pois é, Senhor Ribondi, a América é isso, tudo isso junto, lhamas, geleiras, florestas, gramas verdes e rios bravos.
E carreira de lhama brava é ótimo, está certo que na hora deve ter sido aflitivo, mas que eu aqui ri, ri sim.
Beijos, :).

maria alice disse...

Ah, as voltas do mundo.. a gente nunca sabe onde nem quando as pontas dos fios vão se encontrar.Muito linda a sua redescoberta da América.
Agora, lembrar de gritar "atencíon" é hilário. Não combina com pânico e deixou a situação mais ridícula do que deve ter sido...
Sucesso na peça!

Anônimo disse...

Desculpa, mas até agora estou rindo da carreira que vc levou...! É que vc contou com tanto "entusiasmo" que me pareceu vislumbrar um vulto descendo o morro...rs! Adorei esse relato!
...E por falar em homem!!Sucesso...muito mesmo!
Bjos...muitas alegrias!

maria alice disse...

Esta foto é da Sarah ou da Ruby? O pelo parece tão macio que dá vontade de passar a mão...

Anônimo disse...

Eu lhamo Ribondi! :-))

Anônimo disse...

Descuple que eu no falo portugues - pero si hablo Español!

Sarah y Ruby LLama!

Ahora, la cuenta de como se llama La LLama:

Un dia antes, un conquistador pregunté al un Indio de los Andes:
"Hoy Ché!, como se llama esta animal tan curioso? Como se llama?"

El indio, que no hablaba ni una palabra de Espanol, repetio "Llama? Llama?"...

Anônimo disse...

Andrew,
Eu ´lhamo`, means, I love you, Yo te amo...