11.12.2005

A estratégia dos tomates

A Turca morava, ela e um cachorro, num casarão antigo, amplo, estranhamente vazio. Ela era bonita, e os cabelos dela, pretos, crespos e alvoroçados, quando estavam presos por uma fita, lembravam um ramalhete de flores, ramos e capins prontos para serem dados de presente.

Mas o casarão era estranho. A porta de entrada era grande, tinha duas bandas, que sempre se abriam juntas, como se fosse uma solenidade ir visitar a Turca e entrar na sala onde, perdida no meio de um espaço imenso e silencioso, tinha apenas uma mesa simples, de madeira, e seis cadeiras que combinavam.

E era lá que minha mãe, a costureira da cidade, ia quando queria comprar lingerie, malhas, lenços finos e exemplares da revista alemã Burda. Os produtos da Turca estavam sempre empilhados em cima da mesa, como se a casa dela fosse uma loja em permanente liquidação. Zelosamente, minha mãe enfiava a mão no monte de panos e puxava, pela cor, o que achava mais bonito.

Eu não gostava do casarão da Turca. Tudo parecia triste, solitário, encardido. E a imensidão do espaço me deixava desorientado. Por isso, eu me sentava numa cadeira e ficava ali, sem dizer nada, à espera do fim das compras.

Mas a Turca sabia tratar bem os fregueses dela. Então, olhou para mim e me perguntou se eu queria comer alguma coisa. Em situações assim, estando na casa dos outros e recebendo uma oferta, um ritual sagrado tinha que ser comprido à risca. Antes de responder, era obrigatório, para mim ou para qualquer um dos meus dois irmãos, olhar, com discrição, para a minha mãe e esperar pelo consentimento ou pela proibição, que vinham em forma de um leve, imperceptível para olhos não acostumados, meneio da cabeça.

Eu fiquei calado, sem olhar para os lados. A Turca insistiu:

-Um doce de tomate. Delicioso. Quer?

Senti um fio fino, gelado, percorrer todo o meu corpo. Não conseguia supor o que poderia ser mais tenebroso do que um doce feito de tomates. Mas a minha mãe, em pé perto da mesa, dirigiu os olhos para mim e balançou a cabeça, suavemente, de cima para baixo. Isso não era apenas um conselho, uma sugestão para aceitar. Era uma ordem. Com a garganta seca, com um fiapo de voz, temendo pelo futuro, respondi:

-Sim, senhora.

-E você, Irene, aceita também?

-Não, obrigada.

Odiei minha mãe.

Alguns minutos depois, a Turca voltou da cozinha. Atravessou a sala com passos solenes, fatais, em minha direção. Eu estava sentado, numa cadeira de espaldar reto, perto da janela. Na mão, ela trazia um prato pequeno onde estava deitada uma colher inocente ao lado de uma pasta assassina, cruel, vermelha, como se fossem lavas do inferno. Era o doce de tomate.

As duas voltaram a se entreter com as malhas. Dei a primeira colherada. Um sabor de gororoba tocou a ponta da minha língua. Fechei os olhos, deixei o doce se desmanchar na minha boca, parei de respirar e, só então, engoli. Eu não ia resistir e não sairia vivo da experiência.

Olhei para a imensa vermelhidão no prato de sobremesa. Cheguei mais perto ainda da janela, encarei o quintal, fiquei de costas para as duas e, de uma vez só, como se tivesse ouvido um disparo que anunciasse o começo da corrida, joguei o doce fora. Todo. E, quando me virei para encarar minha mãe, tive o cuidado extremado de lamber a colher.

-Aceita mais?

Fui mais rápido que o olhar da minha mãe:

-Não, senhora. Obrigado.

E me sentei novamente, aliviado, em paz comigo mesmo. Eu havia me livrado da morte por envenenamento e olhava, vitorioso, para as duas torturadoras que discutiam a qualidade da malha.

Foi aí então que ouvimos um pequeno barulho na cozinha. Eram passos miúdos, lentos. Com os olhos sorridentes, com o rabo que se movia lentamente, com um carinho insuportável, o cachorro da Turca entrou na sala e caminhou vagarosamente até a mesa. Os olhos das duas mulheres se dirigiram para o mesmo ponto e eram frios, calculistas, mortais. Das costas do cão escorria uma massa disforme e vermelha. Era o doce de tomate, o mesmo que eu havia jogado fora pela janela que, em vez de cair no chão e se perder na terra, tinha ido pousar nos pêlos do bicho.

Ele se sentou, doce e bom, perto da Turca. A gosma então passou a escorrer das suas costas até o chão. O silêncio e a imensidão da sala aumentaram. Os olhos da minha mãe me procuraram, como se fossem holofotes de campo de concentração. Dentro de mim, três gerações de homens gritaram, impotentes diante do poder daquela mulher de pele branca, cabelos loiros, olhos castanhos, quase pretos, boca carnuda e 1,49m de altura poderosa.

Senti que meu fim estava próximo. Minha mãe dobrou caprichosamente as malhas e as lingeries, como se calculasse vinganças. Com um tom de voz perigosamente educado e controlado, disse que, desta vez, não ia comprar nada. Elas se despediram. Quando as duas bandas da porta se trancaram e nós ficamos sozinhos na calçada, a mão de minha se fechou em volta do meu braço e as unhas, pintadas de vermelho, entraram, lentamente, na minha carne.

Era uma dor fina, ardida, insuportável. Aquele apertão materno, sempre dado em ocasiões sumamente especiais, era um treinamento para todos os sofrimentos futuros que a vida pudesse me reservar. A voz dela veio firme, baixa, imponderável:

-Em casa a gente conversa, senhor Alexandre.

Ninguém, na rua, parecia se dar conta de que eu tinha acabado de ser jurado de morte.

10 comentários:

Anônimo disse...

"-Em casa a gente conversa, senhor Alexandre."
Mãe tem muito isso, não é?
E quase ninguém percebe quando a gente está jurada de morte, ás vezes nem a gente, :).
E que cachorrinho fofoqueiro, não? Está ótimo o conto.

Anônimo disse...

Yes, just in case people talk! What a wonderful morning to hear of Irene and tomatos again.

thank you!

Nelsinho disse...

Ri muito, Ribondi!
Veio à minha memória uma ocasião que o meu avô me obrigou a comer uma tijela de sopa de couve troncha com carne cozida dentro e eu a despejei num vaso com flores com tanta infelicidade que derramou tudo no assoalho! Já viu, né?

A última vez que a Arminda perguntou numa banquinha se tinha a Burda, deram-lhe uma revista de bundas...

Nelsinho

Anônimo disse...

Adorei, adorei.Quem da nossa geração (dos 50) não foi jurado de morte por uma mãe enfurecida.Bom ler sua história e poder lembrar das minhas.Obrigada.

Anônimo disse...

Estou me sentindo em casa,apanhando da mãe e comprando revista Burda.
Eu levava beliscão por debaixo da mesa, enquanto ela disfarçava falando entre dentes: você me paga!
Bom fim de semana,com muito público.

gik disse...

hehehehehe, tou rolando de rir!
Nossinhora :c)))

Incrível é que tive uma velha-amiga-turca, dona de um armarinho que era na casa dela, e que marcou pra caramba nossas vidas de pre-adolescente: íamos todo dia no armarinho, as moçoilas todas, comprar camisolas de seda e renda francesa além de outros quitutes femininos, raridades naquela época e inimagináveis nos dias de hoje! Não tem tanto tempo assim, calaro :C), mas ela tinha coisa do arco da véia!

Deu saudades dela, Dona Ivone...

Emerson disse...

Sinistro, como diz a rapaziada. Gostei muito e me lembrei de muita coisa, pois minha mãe também era costureira e, vira e mexe, me levava pra lojas de tecidos ou casas de freguesas. Tenebroso.

E tive uma vizinha, a Turquinha... Mas essa é uma boa recordação. Quando você descreveu os cabelos da Turca eu me lembrei, de imediato, da Turquinha.

:o)

Jussara disse...

Minha mãe também era costureira. E fui ocm ela várias vezes para comprar pano. Infelizmente nenhuma das vezes rendeu uma história dessas. Hilária. De novo. Você é ótimo, Ribondi.

E o espetáculo? Dê notícias dos outros dias depois da estréia.

Anônimo disse...

Seria trágico se não fosse cômico. :D

Já passei uma eternidade com um pedaço de pudim de leite Moça entalado na boca (a coisa era malfeita, tinha cheiro e gosto de ovo, um verdadeiro horror, não descia nem a pau!). Além de quase sufocada, ainda tive que fingir que continuava comendo o treco. A janela -- sempre ela! -- foi minha salvação. Felizmente, não tinha cachorro na casa. :)

Anônimo disse...

As mâes eram todas iguais?
Também não podia aceitar nada sem antes receber a aprovação de minha mãe, que também vinha com um aceno de cabeça, ou apenas um olhar.