A arraia mora no fundo das partes mais fundas dos rios profundos porque, lá, a comida é boa e farta. Há quem prefira ter uma em casa porque, com o rabo comprido e a leveza no jeito de nadar, como se fosse uma pipa levada pelo vento, ela pode ser enfeite de aquário.
Mas tem ferrão violento, e foi assim que o meu pai, pescando no rio Guandu, no ponto em que ele deságua no rio Doce, sentiu uma ferroada quase mortal no dedo indicador. A dor começa imediatamente. São marteladas fortes quando o veneno entra e faz borbulhar o sangue.
Foi aí que Ronaldo, o companheiro das pescarias, lembrou do remédio mais efetivo contra ataques de arraia: xixi de mulher grávida.
O mundo é lugar de coisas eficientes, mas raras. Quando o rio Guandu encontra o rio Doce e faz um delta manso e barulhento, a paisagem, no extremo oeste do Espírito Santo, fica mais elegante, e o encontro das águas enfeita tudo – o pasto, as taboas, as pedras, o sol refletem os rios e brilham de maneira ofuscante.
E o caráter raro do mundo surge justamente quando, depois de uma dificílima picada de arraia, o acidentado tem que encontrar, ali mesmo, uma mulher que leve filho na barriga. E que esteja com vontade de fazer xixi. Mas, a bem da verdade, o mundo inteiro sempre foi salvo pela conjunção de raridades.
Por isso é que um dos homens que também pescavam no rio Guandu estava para ser pai e sua mulher, já avançada nas artes da gravidez, estava em casa, que não era longe dali.
Enquanto meu pai se contorcia e espremia o dedo ferido com a outra mão, para suportar a dor que insistia em se espalhar pelo braço todo, o Ronaldo pediu:
-Ela pode ajudar?
Ele relutou. Olhou para Ronaldo, olhou para o meu pai. Naquela época, eram todos homens novos, forte e bonitos. E, além disso, um dele estava com o dedo hirto, grosso e inchado. Parecia ser intimidade demais. Mas meu pai já estava sentado numa das pedras da beira do rio e mal conseguia falar.
Chamaram a grávida que veio em seguida perguntar o que era. Explicaram. Ela deu dois passos para trás. Olhou o marido, que também não sabia muito bem o que dizer. Meu pai se deitou sobre a pedra. Já não conseguia dizer mais nada. Os olhos dele, a pele, os cabelos, a boca avisavam que doía.
Ronaldo tentou ser razoável:
-É como todo o respeito, não é hora de abusar de ninguém.
A emergência, então, foi montada. O marido, cuidadoso, providenciou um pedaço de pano que foi usado para cobrir os olhos do meu pai. Foi ele também, o marido, que esticou o braço do meu pai sobre a pedra pra que mão e corpo ficassem na maior distância possível um do outro.
Os outros pescadores foram retirados do local, ficando apenas a vítima, a grávida e o pai da criança por nascer. Foi nesse momento que ele perguntou:
-Sua bexiga está cheia?
Não estava. Ele foi até a casa, apanhou uma moringa pequena e um copo. Ela bebeu. Voltou a beber. Bebeu mais. Esperou. Meu pai se contorcia. Ela, talvez até por dó, sentiu que estava na hora. O marido apertou mais ainda o pano sobre os olhos do meu pai e chamou a esposa:
-Vem.
Ela se aproximou, retirou a calcinha, levantou um pouco o vestido e, em silêncio, agachou-se sobre a mão do meu pai. Fez um pequeno esforço e, aí, o xixi, quente, vibrante, forte, tocou o dedo ferido. A vítima ficou imóvel, à espera do milagre.
E, depois, ela mesma, por saber, como esse jeito feminino de saber quase tudo, que era capaz de criar vida, alimentar, ensinar a falar, empurrar para crescer e ficar forte e, também, capaz de salvar, espalhou, com a própria mão, o xixi sobre o dedo ferido, como quem espalha ungüento em machucado de filho.
Vestiu a calcinha e avisou que o pano já podia ser retirado dos olhos do meu pai. Eles se olharam, com timidez, mas ele sabia que era devedor dela. E sabia também que o sexo feminino é muito mais do que um homem pode supor ou querer. Ele é a porta do mundo.
Meu pai agradeceu em voz baixa e ela, em voz baixa também, disse:
-De nada.
E voltou para casa. Os pescadores voltaram pouco a pouco. A dor se rendia, o dedo começava a relaxar. Meu pai continuou sentado sobre a pedra, ouvindo o barulho constante, ritmado, gentil das águas do rio Guandu entrando para sempre no grande rio Doce.
E viu, com os olhos dele, que tudo brilhava: as terras baixas do Espírito Santo, o pasto que ladeava os rios, as pedras roliças e lisas, o céu e as coxas da mulher, que também devem ser mencionadas quando se fala das belezas do mundo raro.
6 comentários:
Romário,
Quem que é dona Isaura?
Senhor Ribondi:
Quando o senhor quer ser lírico arrasa, não?
"E, depois, ela mesma, por saber, como esse jeito feminino de saber quase tudo, que era capaz de criar vida, alimentar, ensinar a falar, empurrar para crescer e ficar forte e, também, capaz de salvar,..."
"E sabia também que o sexo feminino é muito mais do que um homem pode supor ou querer. Ele é a porta do mundo."
"E viu, com os olhos dele, que tudo brilhava: as terras baixas do Espírito Santo, o pasto que ladeava os rios, as pedras roliças e lisas, o céu e as coxas da mulher, que também devem ser mencionadas quando se fala das belezas do mundo raro."
É...
Pira sorte minha sintonizar em sua entrevista na TV... saber de você, do espetáculo e do blog, claro.Vou repassar o link pra turma.Saudade...
Ok, é pura sorte e não pira, rs... Vou ler tudo e ir te ver no Goldoni agora que moro por aqui na asa norte, baby. Volto sempre. Beijos doces.
Fico nervosa querendo acreditar nessas histórias todas! Preciso saber quais causos são prosa e quais são verdade verdadeira. Uuuiii...
;-))
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