11.03.2005

O pingüim da Abissínia

Meu pai foi mordido sete vezes por cobra. A última vez, ele já era pai e grande. Uma dorminhoca, venenosa, esperta, enfiou os dentes na carne fina e esticada entre o dedão e o dedo indicador quando o meu pai, de mão aberta, se agarrava a uma raiz num barranco, para ter apoio e continuar a escalada da encosta barrenta.

Teve febre, os olhos lacrimejaram durante vários dias, sentia coceira insistente no braço, ficou impaciente, meio bravo pelos cantos, mas, depois, passou. Além disso, ser mordido sete vezes por cobra é remédio. Dá imunidade absoluta para todas as futuras mordidas – que, no caso do meu pai, nunca aconteceram. Não que eu me lembre.

O 7 é precioso. É a conta do mentiroso, porque se for contada uma mentira, mais seis terão que ser inventadas para encobrir e proteger a verdade escondida na primeira. No fim, surge uma história inteira, uma lenda genuína, ou uma ficção bem bordada e urdida, para que a primeira mentira fique de pé.

Mordidas de cobra também são curadas com o 7. O bicho vem e aperta os dentes. Em casa, a vítima deve pular sete vezes sobre um banco de cozinha, de lá para cá e de cá para lá. Com energia, para que os pés batam com vontade no chão e o corpo se estremeça a cada impacto. Foi assim, aparentemente, que o meu pai se curou das seis primeiras vezes, fato confirmado por minha avó Virgínia. Mas, lá em casa, todos contavam coisas admiráveis e fantásticas porque meu pai e os irmãos dele, Ovídio e Mercedes, parecem ter sido criados numa terra mais exótica e admirável que o Oriente, mais feérica que Alexandria, mais indefinível que a Abissínia.

Por isso, meu pai brincava com cobras, nos anos 20 do século XX. Não que não existissem outros brinquedos, que podiam ser feitos com sabugo de milho, melão-de-São-Caetano, pau, lata e corda. Mas quando uma pessoa vive e cresce exatamente na encruzilhada entre a Abissínia e Alexandria, lugar de que eu ouvia falar, mas que nunca soube onde fica nem jamais encontrei a estrada para lá, o divertimento também é de cabeça para baixo.

Em 1928, meu pai usava calças curtas. Saía da casa, rodopiava pelo quintal cheio de italianos e subia, em dias de calor, até o ponto mais alto das encostas, onde os pés de café estavam plantados em fileiras longas, bem feitas. Vasculhava tudo com cuidado, esmero, e, debaixo de uma das árvores do cafezal, encontrava a cobra, enrolada em si mesma, na dormência das tardes de sol.

Com uma vara, ele futucava a cobra que, desatenta, voltava a se enroscar. Futucava de novo. A cobra, então, acordava e prestava atenção. Nova futucada. Ela, que antes dormia, agora levantava a cabeça, já irritada. Na quarta vez, ela jurava meu pai de morte.

E, aí, cuidadosamente, brincando com o perigo absoluto, ele encostava a vara outra vez. A cobra se espichava, mostrava os dentes e se preparava para a grande vingança. Meu pai corria e ela ia atrás, disposta a eliminar, com veneno, o intruso no sono da tarde quente.

E era correria morro abaixo, aos gritos. Não gritos de pânico ou pavor. Muito menos de arrependimento por ter tirado o bicho do seu sossego. A descida aos galopes, com o vento na cara e o suor grudado no peito, nas mãos, nas coxas, na barriga, era felicidade pura. Era assim que eles eram felizes, lá.

A cobra se espalhava no chão com os músculos retesados, pronta para o bote na imensidão do cafezal. De repente, meu pai, com um berro vitorioso, se segurava na rama de um pé de café, girava o corpo como um atleta que se segura, rijo, à barra de ginástica. E de lá, via a cobra que, sem braços, sem mãos, sem pés, impossibilitada de qualquer ação, incapaz de frear, de interromper o deslizamento acelerado ou de se salvar, tinha um único destino. Desesperada, aos pulos e tropeções, escorregava, se esfregava no chão, se contorcia e não tinha jeito nem solução: sob o peso da fatalidade, parava só quando batia no fim da encosta, no meio do quintal.

E ficava lá embaixo, angustiada, irritada e cansada. A minha avó, mais irritada que ela, berrava o nome do filho, que já tinha sumido, à procura de novos bichos do Oriente onde ele foi criado para depois enfrentar o mundo.

Isto foi ele que me contou no dia em que, para me convencer a sair da banheira feita de ágata velha, com pés estranhos que imitavam garras de leão, me contou também que eu corria o risco de virar pingüim, depois de tanto tempo imerso na água morna. Como prova, segurou minhas mãos e me mostrou os meus próprios dedos, já enrugados nas pontas. Era, segundo ele, o primeiro e definitivo sintoma da pingüinização.

Pulei fora d’água, mas, enquanto meu pai me enxugava com mãos fortes e firmes, eu imaginava o fascínio de ser um pingüim da Abissínia.

8 comentários:

Nelsinho disse...

Parece que essas banheiras eram muito comuns em todas as latitudes!

Havia duas no casarão do meu avô em Salzedas (Lamego)e eu vivia dentro de uma delas nas férias de verão..."pingüinizando"!

Nelsinho

leila disse...

oi! teu pai era aquário?

Anônimo disse...

Sete cobras é sina já, é coisa de pai de candidato a ser um pingüim da Abissínia o que, concordo, devia ser fascinante mesmo.

Anônimo disse...

Ribondi, agora é você que constrói o imaginário da gente, com essas coisas lindas. :)

Por falar em pinguim, lembra do que a gente dizia por aqui, que inverno durava 3 dias, os 3 dias de vento sul?! *risos* Minha mãe dizia que sabia que o tempo ia esfriar quando eu começava a reclamar do frio. *risos* Esse Ribondi pai é uma figuraça! Pinguim, tá certo! *risos*

Anônimo disse...

Já vi que a família toda é de figuraças.É ótimo, pois não vai faltar história prá contar.O dia só conta depois do conto do Ribondi

Anônimo disse...

Eu achava que ia virar vovózinha, por causa dos dedos enrugados.
Pinguim eu só enxergava no Teatro Municipal!
Adorei sua história, Ribondi.

leila disse...

o meu pai era aquariano. achei as brincadeiras do seu pai parecidas com as dele. só isso :)

Anônimo disse...

Sete e´na Biblia o numero da perfeicao,completamente divino e glorioso.