O meu amigo Marcelinho, também conhecido como Marcelo Bocão, por questões de características anatômicas marcantes, queria o passarinho. Era um canário capixaba, dos que têm canto delicado e penas muito amarelas. Ainda era novo, não tinha crescido tudo o que cresce um adulto. Mas já era gracioso na hora de pular de um poleiro a outro na gaiola da casa do vizinho.
Foram arquitetados planos. O roubo poderia ser realizado em horas de madrugada alta, quando todos dormiam. Mas esse expediente reservava um certo trauma porque Marcelo Bocão, eu e Marcelão, um trio razoavelmente imbatível nas serras do Espírito Santo, já conhecíamos, de cor e salteado, os perigos dos assaltos noturnos.
Isto porque, pouco tempo antes, tínhamos planejado, com riqueza de detalhes, o roubo do pato do quintal da mãe de Carlotinha, que arrastava as asas para o Marcelão. E foi ele que pulou a cerca, vasculhou o quintal e achou o pato.
Mas as noites capixabas sabem ser frias, quando se trata de inverno. Por isso, o pato, vivo, não podia ser levado na mão com o braço esticado porque o vento, ricocheteando nas montanhas, chegava gelado até nossos corpos. Desta forma, Marcelão guardou o pato dentro do casaco, o que seria um excelente plano se esses animais não tivessem a habilidade de fazer um cocô miudinho, escorrido, rápido e extremamente repetido. Assim, decidimos que o carregamento do pato seria revezado entre nós três para que cada um recebesse, na camisa debaixo do casaco, o seu quinhão de cocô.
Foi por isso que o Marcelo Bocão resolveu que ia ser na marra. De tarde. Entrava no quintal e, pronto, pegava o canário. E fez isso mesmo. Pulou o muro, andou cuidadosamente nas proximidades das paredes, portas e janelas, abriu a gaiola, enfiou a mão e segurou o passarinho de uma vez só.
Ia saindo quando a porta se abriu. Era o homem que, além de ser dono da casa, também atendia pela propriedade do canário. Marcelo, de costas, pensou rápido, elaborou novo plano de escape e, num piscar de olhos, sem refletir muito sobre coisas como conseqüências e acidentes, enfiou o canário na boca. Fechou os lábios e, só aí, se virou para encarar o homem parado na porta.
Marcelinho não dizia uma palavra, mas piava miudinho, como se fosse pássaro novo. Tentava não respirar para que o vendaval não assustasse o bicho que levava na boca. Manteve o controle absoluto dos músculos e dos olhos enquanto o homem descia lentamente as escadas para chegar perto e exigir as devidas satisfações.
E foi aí que Marcelo começou a se contorcer.
O canário, lá dentro, tentou fugir. Ou vasculhar o terreno. Pisava com unhas finas e delicadas. Depois, mais confiante, passou a bicar com força, na tentativa de abrir um buraco por onde pudesse fugir. Marcelo se apertava, se avermelhava, gemia para dentro, como uma pessoa atacada de súbita disenteria.
O homem olhou assustado. Pensou até mesmo em ataque epilético. Marcelo não se controlava mais. Quis fugir, mas, em vez disso, diante de tanta vida guardada dentro do corpo, apenas abriu a boca, sem dizer nada.
Como em momentos de milagres, de dentro da boca de Marcelo, bem em cima da língua picada e arranhada, surgiu um passarinho miúdo, amarelo, bonito. Ele se apoiou bem com as unhas afiadas, bateu asas e, então, voou céu afora até parar, logo em seguida, num galho de pé de carambola.
O homem e Marcelo Bocão se olharam. Já ninguém precisava dizer nada porque da boca de um deles havia saído tudo o que era para ser dito. O dono da casa se preparou para correr. Marcelo correu em alta velocidade, atravessou o quintal, pulou o muro.
Livre das ameaças do homem e do canário, foi, então, para casa, à procura de mercúrio-cromo e algodão.
3 comentários:
Criança faz cada coisa, que aflição!
Nossa!
Adorei o quase seqüestro do canário.O Bocão não poderia ter idéia "melhor".
Ai,q dessa eu nao me esqueco tao cedo!
Espero q esse livro venha sair so´daqui uns tantos anos.Lembra mais,pq e´muito bom.
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