Quem olha e encara o Oceano Pacífico se apaixona por ele. No seu jeito azul-chumbo, é irresistível. É mais antigo, mais profundo, maior e mais fértil que o Atlântico, mas o mar que, com forma de S, separa as Américas da África e da Europa tem mais barcos e mais navios, tem mais velas e mais navegantes. O Pacífico é uma solidão imensa. É o sal do silêncio.
A corrente de Humboldt tem comida. Para todo o mundo: para os chilenos, para os peruanos, para os pelicanos, os tubarões. A corrente traz peixe, mas desfalca o céu. Em Lima, que fica nas margens do Pacífico, não chove. As casas, por isso, têm tetos planos, já que nada escorre deles. E os cachorros limenhos, em vez de latirem atrás dos portões, criaram a mania de subirem para os telhados. Vigiam a cidade como se fossem gatos empoleirados.
Em 1972, a corrente de Humboldt secou. Os jornais acusavam a França de fazer experiências atômicas no mar. Os peixes se tornaram coisa rara. Os peruanos, então, abandonaram temporariamente o ceviche e comiam animais da terra. Os pelicanos passaram fome.
Eu estava sentado no banco da praça e observava a barraca de peixes. Era pouco o que eles tinham para vender e era caro também. No muro do outro lado da rua, pousou um pelicano enorme, bonito, pesado. Os pássaros nunca olham diretamente para o alvo, eles dissimulam. O pelicano não parecia assustador.
Em seguida, veio outro e pousou ao lado, no mesmo muro. Poucos minutos depois, mais um. Mais tarde, eram seis, que não se moviam. Estavam inertes, pesados, elegantes. Para o telhado da casa ao lado, vieram outros. Pouco a pouco, já não era mais possível contar os pelicanos que se aproximavam, como se a notícia de peixe tivesse corrido em bico em bico.
E quando estavam todos juntos, começaram a se movimentar no muro e no telhado. Andavam com passos curtos, saltos pequenos, de um lado para o outro. Os pelicanos se esbarravam. Começaram a bater as asas.
E, finalmente, um deles deu o sinal. Levantaram vôo juntos, cobriram o céu de Lima e atacaram a barraca de peixe. O peixeiro foi empurrado por corpos imensos, bicos gigantescos. Caiu na calçada enquanto gritava. Bicos, penas, asas, pés fortes, tudo se alvoroçava em cima da barraca. O cheiro de peixe devorado corria solto pela rua limenha.
E depois, tão rápido quanto haviam chegado, veio o silêncio. O céu ficou limpo outra vez.
As ruas eram pastos estéreis de pelicanos. Na grande avenida central da cidade, parei o carro. Pelicanos lentos choravam a saudade da corrente de Humboldt. Outros carros pararam também e buzinaram. Os pássaros, todos enormes, de olhos mortiços e parados, apenas moviam os pés, sem sair do lugar. O engarrafamento se tornou uma imensa passeata de pelicanos famintos.
Alterei os meus hábitos. Passei a correr entre pássaros imensos, a enxotar aves pescoçudas da porta de casa, de escadarias de museus, de calçadas calmas. Ás vezes, eu parava, tão imóvel quanto eles, e esperava para ver quem perdia a paciência primeiro. Os cães latiam dos altos dos telhados. Lima era um viveiro de pelicanos à míngua. Em silêncio, eles abandonaram o mar e ocuparam a terra.
O Pacífico nunca se sentiu tão solitário quanto naquele ano.
4 comentários:
Ribondi, você transformou o caos num lindo conto. Um dom divino.
Parabéns e obrigada por dividir estas pérolas conosco!
"As ruas eram pastos estéreis de pelicanos."
Bonito isso...
A nanbiquara aí sou eu, Matilda.
Fiz de novo...
Limenho é uma palavra estranha de se ler. E ficou bem árida depois do seu conto, meio sufocante mesmo falando de mar.
Abraços,
Postar um comentário