10.31.2005

Cachorrada




O avô da Marizete, que era homem dos mais importantes e ricos da cidade do interior goiano, morreu. De uma vez. Cambaleou, levou a mão ao peito, disse “Nossa Senhora” e caiu no chão.

Marizete, quando recebeu a notícia dentro da redação do jornal onde trabalhávamos, parou tudo. Fechou os olhos, ainda sentada em frente da máquina de escrever, cobriu o rosto com as mãos e chorou pelo avô. Para ela, a importância dele era só familiar.

Mas não para os outros. Durante o velório, poucas pessoas choravam lágrimas sentidas: a Marizete e a família, alguns amigos verdadeiros, uma mulher desconhecida que ninguém sabia por que chorava. O resto, vestido como para recepção no Palácio das Esmeraldas, em Goiânia, estava ali para aproveitar a última oportunidade de bajular o poderoso da cidade de interior de onde, feito trampolim, se pulava para a capital do estado e, depois, para o grande mar da política federal.

O calor abrasava. Na sala, perto do corpo em cima da mesa, as flores se ressentiam da temperatura e reagiam com cheiros fortes, nauseabundos, como se gritassem. As moscas, impacientes, pousavam onde podiam: rostos, mãos, ombros, lábios, flores, paninhos da cômoda, jarros embelezados por rosas de plástico.

O cortejo ia começar, rumo ao cemitério. Três da tarde, as flores verdadeiras se curvavam com o peso do sol quente sobre os ombros. A viúva, acalorada, sentia as ondas do desmaio. A família decidiu que ela ficaria em casa, acompanhada. Um grupo de terno preto discutia quem teria a grande, incomparável honra de segurar o caixão durante o percurso de quase meia hora.

O burburinho acabou por escolher quatro deles. O caixão saiu da sala, passou por toda a rua onde havia morado o falecido, cruzou a rua da farmácia, atravessou a praça, com poucas árvores para cidade de tanto brilho solar, passou em frente à prefeitura e à câmara dos vereadores, ambas com bandeira a meio-mastro, e tomou o rumo da rua íngreme, sem calçamento, que ia dar no cemitério.

Algumas pessoas da rua sem calçamento saíram até as varandas e portões, em silêncio diante de enterro tão distinto. Os cachorros, que dormiam debaixo de roseiras, pés de jabuticaba, jasminzeiros e pés de goiaba, abriram os olhos.

Um deles, miudinho e enfezado, saiu do conforto e do frescor do chão da cozinha e veio ver. Latiu. Chegou perto do caixão e latiu com mais força. Um outro, que estava aproveitando a terra úmida debaixo da roseira, levantou a cabeça e se interessou pelo assunto.

Um grandão, que morava no fundo de um quintal de muro alto, rosnou. Uma cadelinha recém-parida, ainda com as tetas bem penduradas, saiu do ninho, por pura curiosidade.

E todos os cães começaram a latir. Juntos, tomaram coragem e foram chegando. Misturaram-se a todos os pés de sapatos pretos que desfilavam atrás do caixão. Latiam e rosnavam.

O miudinho invocado foi o primeiro a atacar. Agarrou-se à barra da calça de um dos oportunistas que seguravam a alça do caixão e puxou. Balançava a cabeça de um lado para o outro. O dono da calça tentou se livrar, dando safanões. O cão era renitente, insistiu. O homem, sério, ridiculamente pungido, enxotou entre dentes:

-Sai, porra, sai daí.

O cortejo não ouviu, mas os cães, com audição assombrosa, entenderam perfeitamente. E não gostaram da ofensa. Atacaram.

Cada um escolheu a melhor barra de calça e segurou firme. Com o focinho baixo e o rabo apontado pra cima, fincaram os pés no chão de terra e prenderam os carregadores de caixão.

Um homem aproveitou uma das pernas livres e chutou o cachorro que rasgava a calça dele. O cão revidou com força: uma mordida bem dada, generosa, na canela. Ele tentou gritar, mas os enterros são ambientes silenciosos, por definição. Acontece que a dor foi grande e ele, em pânico, largou a alça do caixão.

Desabou tudo. O caixão fez um barulho forte, duro, oco. No alvoroço que se seguiu, tinha cadela latindo, tinha criança gritando em cima de muro, tinha gente correndo para dentro da casa dos outros, tinha dono de cachorro chamando:

-Totó, já para dentro!

E tinha homens de terno que mantinham um certo ar impávido. O calor absurdo reluzia sobre a cidade. O caixão ficou parado, no chão, à espera de socorro. Um cachorro preto aproveitou e fez xixi ali mesmo, na madeira nova.

Um homem gritou, impôs respeito. Um outro cachorro, o grande, que morava no fundo do quintal e que tinha pulado o muro no afã de participar, fez a mesma coisa. Para impor o seu devido respeito, mordeu o homem. Com muita força. Mordida definitiva. Aí, espalhou todo mundo.

Das janelas, as pessoas e o cortejo observavam. Cães que, acalorados pela discussão, andavam em círculos pela rua e cheiravam tudo. Cadelas que rosnavam e tentavam morder macho que, confundindo as coisas, achava que a reunião era para fins de acasalamento. E, ali, no meio de tudo, largado no chão, o caixão com um morto dentro.

Demorou muito até que tudo se acalmasse e as pessoas tivessem coragem de voltar ao cortejo. Foi até bom porque, aí, o sol já tinha diminuído de força. Marizete, quando retomou a rua, não conseguia controlar a gargalhada, diante do espetáculo dos bajuladores do avô.

Mas havia quem entendesse:

-Coitada, é reação nervosa. Era muito apegada ao falecido.

10.29.2005

O pai, o filho e o Espírito Santo




Nasci, abri os olhos e vi um mundo feito de pedras, montanhas, morros, orquídeas, jequitibás, jacarandás, lírios, copos-de-leite, marias-sem-vergonha, borboletas, pacas, palmeiras, tinhorões, jacas e carambolas, preguiças, palmitos, mexericas, laranjas-seletas, arapongas e onças. E, no meio da Mata Atlântica, aprendi a reconhecer meu pai, minha mãe e meus dois irmãos mais velhos ao lado de bananas-da-terra, cobras, aipins, taruíras, moquecas de cascudos, tanajuras, bromélias, beija-flores, taboas, e cabritos das montanhas.

Tudo fazia frio, tudo cheirava, e, tirando uma ou duas cidades feias e desalmadas, tudo era bonito e forte, no que se parecia muito com o meu pai, bonito e forte, ele também. Sabia que ele era forte porque eu me abraçava ao corpo dele quando a gente, no lombo do cavalo, subia um pedaço puxado de montanha. A trilha era estreita e acompanhava, em volteios e largura, o córrego de voz baixa e jeito cristalino, até chegar no nosso sítio. Era lá que morava uma onça.

Mas antes da onça, tinha o portão do sítio e, em seguida, a casa onde morava minha avó Virgínia, magra, muito bonita e tão séria e grave que era impossível chegar perto dela e dar um beijo. Sempre falou uma tentativa de português misturado com o vêneto da terra de onde era. Com ela, moravam também o meu tio Ovídio, a mulher dele e os dois filhos.

O chuveiro da casa ficava no terreiro, perto do paiol, da pedra-mó e do enorme pilão de socar arroz. No alto de uma pedra grande, uma canaleta feita de bambu trazia a água, pesada, macia, barulhenta, para cair de uma vez só no chão cercado de imensas e altas folhas de tinhorão, que serviam de cortina para o banheiro ao ar livre. Era lá que eu me agachava, brincando com sabugos de milho, para ouvir as histórias do meu pai, enquanto ele tomava banho, com o corpo protegido pelas folhas graúdas e muito verdes dos tinhorões capixabas que transformavam os respingos d’água em pérolas bem feitas e escorregadias.

Era em cima desse banheiro de água fria que chegavam, nas horas de sol, as borboletas, todas elas, todas as que existissem no mundo, para rodopiar como uma espiral de asas amarelas, brancas, avermelhadas, azuis, furta-cores.

Uma fileira de orquídeas, plantadas e cuidadas por meu pai, enfeitava a varanda, as janelas e os corredores da casa de madeira.

E depois do curral, onde as vacas mugiam antes do sol aparecer, como se fossem despertadores exigentes; depois do pasto, onde os cavalos desfilavam com os rabos arrebitados e elegantes; depois do morro inclinado coberto por capim e grama, surgia, no alto, o nosso pedaço da Mata Atlântica, o lugar proibido, a caverna das coisas nunca vistas, o esconderijo do mistério.

Era de lá, a qualquer hora, em dia de sol, em dia de chuva, na boca da noite, ao meio-dia, de manhã cedinho, que vinha o urro. O urro imenso, bravo, bonito, espichado, feliz, valente e nobre da onça.

E no meio da mata, os micos, afobados, gritavam fino. As arapongas, martelos com plumas, abriam o bico para estalar o berro. Os cavalos esticavam as orelhas e o rabo para correr pasto abaixo. Meu tio parava, em silêncio, com a corda na mão. Minha avó, dentro de casa, colocava o dedo indicador sobre os lábios e pedia silêncio.

-É ela.

Nessas horas, eu, sentado no parapeito da janela, e meu pai, abraçado a mim, não tínhamos mais nada para fazer, além de ouvir o canto terno e solitário da onça, que acalmava a roça e trazia silêncio até para as águas.

Depois, exatamente como pintura a óleo deixada na chuva, as coisas se desmancharam.

Primeiro foram os palmitos, que, antes, chegavam na minha casa, para o preparo da torta capixaba, em troncos grandes e honrosos, e, depois, passaram a aparecer em vidros. Na mesma época, os palmitais, com suas palmeiras perdulárias, derrubadas e mortas a cada colheita, começaram a ocupar os lugares dos jequitibás e das preguiças.

Em seguida, os eucaliptos, magros e secos, avançaram desde o norte do Espírito Santo. O cheiro fétido da celulose cobriu o cheiro macio das jacas e das carambolas. As onças e os beija-flores, todos muito delicados, correram para longe.

Minha avó morreu, meu tio foi embora. O sítio se perdeu e a Mata Atlântica, cheia, cheirosa, sombreada, úmida, capaz de produzir névoa que cobrisse o Espírito Santo todo, começou a cair, tronco a tronco, até caírem todas as árvores. Foi nessa época também que os madeireiros capixabas passaram a ser conhecidos como cupins.

E, então, meu pai. O homem das mãos grandes e gentis, dos olhos escondidos de quem vê e não fala, que amava todas as flores e todos os bichos, que sabia alisar pêlo de preguiça e colocar araponga entre os braços, o homem que cheirava a madeira e a vinagre, ele também achou por bem morrer.

Encarei bem o homem deitado, e desisti do Espírito Santo. Só voltei muitos anos depois, para descobrir uma coisa que eu devia saber desde sempre, mas que não contava nem para mim. Que Espírito Santo, tem muitos. Tem para quem quiser ficar mais rico que os ricos. Tem para quem acha bom se amontoar nas praias. Tem também para quem rouba tudo o que encontra.

Mas tem um outro, que ainda é cheio de borboletas e tinhorões, que continua coberto de neblina e de montanhas verdes, com gente reservada e envergonhada de falar. É nesse Espírito Santo que eu ouço, até hoje, o urro doce e manso da onça.

Porque esse Espírito Santo fica lá, na Mata Atlântica capixaba, que é o esconderijo do mistério.

10.28.2005

Catherine em Paris




Catherine se transformava em um gato. Aos poucos, ela pegava o jeito, a maneira de andar, o olhar. Isto a gente, Chris, Jean-Paul e eu, ia percebendo dia após dia.

Ela chegava. Com os cabelos pretos e muito lisos, cortados rente na altura das orelhas, como se fosse um capacete de fios macios, que se moviam quando ela olhava pela janela, ou quando virava a cabeça para soltar a fumaça do cigarro. Entrava, não falava, se sentava e ficava ali, com os olhos grandes e abertos. Ou então se encostava no sofá e dormia, com calma, sem ruídos.

Havia quem dissesse que Catherine não tinha o que falar. Até diziam que não era uma mulher brilhante e que, por isso, se calava. Mas, na verdade, ela se tornava um gato, não qualquer um, mas o gato que vivia com ela e que ia junto para todos os lugares, dentro de um cesto de palha onde também estavam guardados o maço de cigarros, a caixa de fósforos, as imensas agulhas de madeira para tricotar, o novelo de lã, o batom, o lápis para sobrancelhas e os cartões-postais que, em momento de tédio, ou de inspiração súbita, ela mandava para os amigos com alguma mensagem curta escrita no verso.

O gato da Catherine saía pouco do cesto. Dele, a gente conhecia os olhos, as orelhas e os pêlos retos do focinho, que eram as partes que ele exibia, quando queria acompanhar as conversas. Tinha seus motivos: um dia, meses antes, estava investigando o apartamento de terceiro andar, numa rua estreita perto de La Bastille, onde vivia, quando se encantou com o pedaço bem recortado do céu grudado na janela e foi lá para ver.

Sentou-se no parapeito, olhou, cheirou, enrijeceu os pêlos do focinho, estendeu as unhas afiadas e tentou rasgar o céu. As patas escorregaram e ele caiu, em vôo livre, até o chão cimentado do pátio interno. A partir daí, manco de uma perna, e com o rabo torto, passou a ter pavor de alturas e de espaços abertos. Preferia o cesto.

O silêncio de Catherine também vinha da solidão. Não era solidão escolhida. Catherine e a mãe tomaram rumos diferentes no primeiro dia: uma nasceu e a outra, exausta, morreu. O pai foi interrompido por uma aneurisma e ela, com 15 anos, herdeira do apartamento no terceiro andar da rua estreita, sem avós, sem tios, aprendeu a viver sozinha.

Catherine era um gato lindo. Quando sentia fome de carinho, de amor, de afagos, ela se enroscava nos nossos corpos, com doçura, suavidade. E ficava ali, de olhos grandes, com um sorriso feito faca afiada que cortava seus lábios em dois. Seu jeito descaradamente abusado de pedir carinho, amor e afagos era uma maneira de sobreviver.

Passamos, uma noite, Chris e eu, na casa dela para, depois, irmos os três ao cinema. Ela não estava. Deixamos um bilhete na porta e, duas horas depois, voltamos lá. Como ela ainda não tinha voltado, esperamos sentados na escada. Tarde da noite, desistimos, mas, quando íamos pela rua, a Chris resolveu voltar. Eu fui para casa.

Chris esperou até as seis da manhã. Saiu, comeu no café em frente, e voltou. Eram oito e meia. Chamou a polícia que veio e, com um soco só, abriu a porta.

O gato estava sentado no centro da sala, como uma esfinge do rabo torto. Os olhos imensos, absolutamente redondos, encaravam. As unhas estavam apontadas, ameaçadoras. Os miados, ritmados, longos, eram doloridos, como se falassem dos infernos da alma. E, debaixo do gato, estava o corpo estirado, frio, inerte, pálido, lindo, de Catherine.

Ela não tinha herdado apenas o apartamento do pai. Ele também tinha deixado o aneurisma para a filha, que, com 22 anos, caiu no chão com o cérebro explodido.

Ninguém se aproximava. O gato, sem se mover de onde estava, sobre o corpo, não permitia que incomodassem a Catherine. Apenas girava a cabeça para acompanhar os passos que circulavam pelo apartamento. Depois, lambia as patas e encostava a cabeça no peito da morta.

Um dos policiais conseguiu pegar o gato. Ele se contorceu, unhou, miou, usou as patas da frente e as patas de trás para se livrar. Mordeu, escapou e se escondeu debaixo da cômoda da sala. Com os olhos grandes e desesperados, viu o corpo ser examinado, tocado e, finalmente, retirado.

Quando a polícia tentava passar pela porta do apartamento e começar a descer as escadas, o gato pulou. Quis se abraçar ao corpo da Catherine ou quis pedir que ela não se fosse. Mas foi afastado e voltou para dentro de casa. Da janela viu quando passaram pelo pátio.

E, então, invadido por um amor incontrolável, por uma ameaça de saudade que ele não ia nunca poder suportar, esqueceu-se da morna segurança do cesto de palha, perdeu o medo dos espaços abertos, desconheceu os perigos do ar, e pulou de uma vez: o vôo de encontro a Catherine, em outra Paris.

Bateu no cimento e ficou lá. Depois, Chris pegou o gato e saiu, para tratar dos dois enterros.

O dente perdido



Mimosa, a minha cachorra quase bassê, perdeu um dente. Em acidente doméstico relativamente grave, mas, de acidentes, a minha casa vivia cheia.

Ás vezes, era uma aranha, encontrada na copa, com as pernas cabeludas à mostra – e uma delas eu quis pegar. Acelerei o engatinhamento e estendi a mão, até que alguém, mais alto, mais ágil e mais conhecedor dos perigos que eu, me levantou no ar e me pôs no colo. Outras vezes, era um rato, que passava em disparada perseguido por cães e gatos e iam todos parar embaixo da cama dos meus pais, quando os dois descasavam depois do almoço. Ou, então, era eu, o acordeonista da família. Não achava nenhuma graça naquilo, estudava no Conservatório da Irmã Celeste porque era levado aos empurrões por minha mãe. Mas, uma noite, com a sala cheia de visitas, recebi a ordem:

-Pega lá e toca.

E eu fui e voltei com o acordeão vermelho, feito de madrepérola. Como sempre, abotoei bem a camisa porque me irritava, sempre, com os beliscões que o fole do instrumento dava em minha barriga. E abri a cintura da calça curta, para poder me sentar melhor. E, aí, toquei o que minha mãe e as visitas achavam encantador: Besame Mucho, Danúbio Azul e Tico-tico no Fubá.

Fiquei empolgado com a atenção de todo o mundo e quis ser mais profissional. Decidi me levantar para anunciar a interpretação seguinte. Foi aí que a calça, desabotoada, caiu e escorregou até o meio da canelas.

Em pé, imobilizado pela calça, no centro dos risos e gargalhadas, tirei o acordeão do peito. Joguei no chão, e prometi, aos berros:

-Nunca mais toco isso, nunca mais!

E nunca mais toquei mesmo. Até hoje.

Mas, o acidente da Mimosa: nos fundos da minha casa, tinha um barranco. Que ia paralelo ao parapeito da varanda comprida, com um tanque onde minha mãe lavava a louça dos almoços, para não sujar a pia da cozinha. Entre o muro e o barranco, sobrava um beco estreito, onde cabiam somente as galinhas, os gatos, as taruíras e, às vezes, eu.

Mimosa tinha arranjado a mania de caminhar pelo barranco e, com um salto, ir se sentar em cima do parapeito da varanda que, se era baixo perto do portão, era alto, quase um muro, nas proximidades do tanque.

E, um dia, chovia. Chuva fina, mole, sem pressa para passar. Minha mãe lavava uma quantidade especial de panelas, caldeirões e baldes. Na borda do tanque, punha um pano. Apoiava as panelas cuidadosamente sobre o pano, enquanto esfregava uma bucha com sabão e areia, para tirar a sujeira grossa.

Mimosa escalou o barranco, com passos miudinhos. Chegou no ponto que mais gostava. Mirou. Afastou-se um pouco. Mirou bem, para não errar. Enquanto isso, minha mãe, de costas para barranco, muro e cachorra, areava as panelas empilhadas no tanque.

Mimosa pulou. De uma vez. Estava acostumada com o salto e sabia onde ia pousar. Pousou. Mas era dia de chuva e o muro estava molhado. As patas deslizaram. Ela tentou se equilibrar, as unhas rangeram. Buscou equilíbrio. Não conseguiu. Ganiu e levantou vôo novamente, varanda adentro, até que, como um manga madura que despenca de árvore alta, pousou de uma vez só, pah!, na nuca da minha mãe.

Foram bater as duas dentro do tanque, no meio das panelas e caldeirões. O estardalhaço ecoou pela casa: o som metálico das latas e ferros, o grito de pavor de uma e o latido de outra. Quando cheguei na varanda, minha mãe tentava sair do meio do desencontro e Mimosa tentava entender, sem conseguir, o que tinha acontecido.

Minha mãe foi beber água com açúcar. Eu saí às pressas com Mimosa para tratar do sangue que escorria da boca. Era o dente. Perdido para sempre. Meu medo era que o dente fosse encontrado enfiado na nuca da minha mãe, ou nos cabelos dela, mas foi achado, depois, dentro de uma das panelas.

Com o copo de água com açúcar na mão, minha mãe foi triunfante até o portão da varanda.

-Essa cachorra podia ter me matado! Podia ter quebrado o meu pescoço e, aí, você ia ver a falta que faz uma mãe.

Jurou, com voz que ecoava entre as árvores, que ia dar cabo de todos os cachorros e gatos, um a um. Que esperassem.

Mimosa e eu ficamos um bom tempo escondidos no fundo do quintal. Depois, as coisas se acalmaram, porque não há nervosismo que dure para sempre nem mãe que, um hora, não se lembre que também gosta daquilo tudo.

Além do quê, minha mãe quase nunca cumpriu as barbaridades que prometeu.

10.27.2005

A visita

-Então, conta outra vez.

Do que ela contou, várias vezes, ao longo dos anos, ficou a lembrança. As imagens surgiram aos poucos, sem convicção, sem cores fortes. Mas, agora, são completas, visíveis:

A gata estava ali parada na porta dos fundos, que dava para o quintal. Viu e deu o sinal. Estava sentada, apreciando a vida, quando se espremeu toda e ficou arrepiada da nuca até a ponta do rabo.

O bebê estava no meu colo. Vi o susto da gata, mas ela estava calma, achei que não era de ser nada. Prestei atenção e, lá de fora, não vinha barulho, só aquelas coisas de quintal mesmo. Fiquei de olho porque gato é gato, não se arrepia por nada. Os outros dois meninos estavam brincando no quarto. Coisa de criança. Pulavam de uma cama para outra, para ver quem caía primeiro e se espatifava no chão.

A gata veio para trás, sem tirar os olhos e sem desmanchar o arrepio. Ficou naquela posição de ataque e eu achei curioso, esquisito mesmo:

-Iá, que coisa. Que será que foi?

Tentei me levantar da espreguiçadeira, uma de pano branco com listras. Não achei apoio, não tinha onde. Tentei de novo e desisti. Com um bebê nos braços, não tinha como. Esperei. A gata parou, o rabo em pé.

-E o que era?

-Entrou pela porta da cozinha. Vinha em tique-taque.

-Em quê?

-Sem ser em linha reta.

-E o que é que vinha em ziguezague?

-A cobra.

Lenta, toda mole, se esfregando, com a língua de fora, porque cobra é cega, não vê, acho que nem olho tem. Parou ali mesmo, ainda com metade do corpo na escada. Era precavida. O único som, no quintal, na casa toda, até na rua, era bem fininho, de criança. Os dois meninos que gritavam para dizer que iam pular. Nem sabiam de nada.

Um calor. Mimoso do Sul fica muito quente mais para o fim do ano. É que Mimoso é no meio das pedras, acharam um buraco no meio delas e fizeram uma cidade. E o sol vem, bate nas pedras e espalha o mormaço. Entra por debaixo da saia, vai até no coração. A gente fica com um jeito de ser de calor.

-Deu medo quando viu a cobra?

-Medo, medo, não. Mas sei que é perigoso, quem é que vai parado com o bicho daqueles chegando?

Nisso, joguei de novo o peito para frente, para me levantar da espreguiçadeira baixa, que estava na cozinha. A cada ida minha, o bebê abria a boca querendo o bico do peito. E a cobra ia entrando pela casa.

Lá dentro do quarto, os dois gritavam sem parar. Era assim um som que parecia espetada de agulha, fino, que incomodava, mas sem ser forte. Chamei um, o mais velho, o que tinha 11 anos:

-Paulinho...

-O mais velho é o Carlinhos.

-Isso. Carlinhos!

Mas era a hora do pulo mais importante, para cair sentado na cama que tinha encostada na outra parede, porque os dois dormiam no mesmo quarto. Chamei:

-Carlinhos...

Ele ouviu, sem sair do lugar. Eu estava arrepiada feito a gata e, aí, tive a idéia de dizer para trancar a porta que a brincadeira ia ficar melhor.

-Ele trancou?

Quem dera. Ele fez foi não entender por que ia ficar melhor. Por isso desceu da cama e foi na cozinha, perguntar. Só não gritei por causa da bicha que estava ali. Falei baixo porque quando a gente tem filho novo não dá para sair gritando feito louca:

-Volte pro quarto, agora. Tranque a porta!

Ele ficou lá me olhando na espreguiçadeira, o irmão mais novo no meu colo. Olhou a gata, e só aí viu a danada que estava inteira dentro de casa. Deu um grito só. Quis correr na cozinha.

Quase consegui me levantar, mas a espreguiçadeira se fechou e eu fiquei dentro, apertada. O bebê procurou novamente o bico do peito que roçava na carinha dele. Dei uma ordem e bastou:

-Volte para o quarto! Fecha a porta!

Ele voltou e se trancou com o irmão. Os dois ficaram encolhidos na cama, atrás dos travesseiros. Os gritos iam ficando cada vez mais finos. Dei outro solavanco com o corpo. Só que desisti. Fiquei ali, parada. E a gata dando aqueles miados compridos.

O mundo inteiro era da cobra. Comprida, forte, ela se esfregava em tique-taque no chão fresco da cozinha, porque era dia de calor abafado. A gata pulou em cima do rabo do fogão. A cobra parou, elas param quando sentem movimento, para saber onde é. Depois, passou outra vez a deslizar no assoalho fresco, quase gelado. Ai, que horror. Fui ficando muito nervosa. Era um silêncio impressionante. Eu ouvia ela pondo a língua de fora.

Mas os gritos dos outros dois guiavam a cobra. Ela se espichava, se encolhia, escorria pela casa. Esbarrou na minha sandália e parou. Devagarinho foi mudando de direção, indo mais para lá, mais para cá, até esbarrar no meu pé. Deu uma parada. Ela se preparava e eu também. Ela começou a se mexer, eu de olho, mas sem me mexer. Pensei no que fazer.

-E fez o quê?

-Nada.

E a cobra escorregava, sem pressa, por cima dos meus pés.
Demorou muito até todo o corpo da cobra passar e eu, ali, sem dizer nada, sem respirar alto, sem mostrar que estava a ponto de perder as forças. Não podia fazer nada, fiquei dura, de boca fechada. De repente, veio um grito do quarto:

-Já dá pra sair?

A cobra também sentiu que a voz vinha de lá. Encolheu o corpo comprido e se espichou no assoalho da cozinha. Foi aí que vi e notei a fresta por debaixo da porta do quarto. Era casa velha. Em dois tempos, medi largura da fresta, medi a cobra. Dava para ela passar por debaixo.

Dentro de mim, eu só pensava nos meus dois filhos, lá no quarto, em cima da cama. Pensava que o Carlinhos não ia saber nem como agir numa hora destas, ele era mais velho e tinha que ajudar o Xandinho.

-Paulinho...

-É, ajudar o Paulinho, o do meio. Que naquele dia mesmo tinha ido no barbeiro, cortar os cachos loiros.

Mas se eles não iam saber o que fazer, foi um berro só:

-Sai pela janela, leva seu irmão.

A cobra foi se aproximando da porta do quarto. A gata se mexeu em cima do fogão, não se agüentava mais. Aflita. Abria a boca, mostrava os dentes bem finos e chiava pronta para se defender se fosse atacada. Acho que meu grito confundiu a cobra:

-Pula! Pula agora!

Ouvi o barulho da janela, quando eles abriram. Ouvi os pulos, os gritos, a corrida pelo quintal. Quando entraram pela porta da cozinha, de mãos dadas, a cobra, lenta, até calma, se virou para trás. Espichava a língua para saber aonde ir.

-Depressa, aqui.

O mais velho veio, tirou o bebê do meu colo e só aí deu para me levantar. A espreguiçadeira se desmontou no chão. Acho que eu tremia toda, não conseguia enfiar os pés nas sandálias. Até tentava, mas, em vez de calçar, empurrava para longe com os dedos, me confundia toda. Saí descalça.

-Vamos embora. Vem, vem.

Mas tudo isso eu dizia baixinho, até para não assustar mais os meninos. E a gente foi para o quintal, com a cobra vindo também. Nisso, a gata pulou do fogão e parou na porta. Veio a cobra, e a gata se levantou, com as patas para frente. Miava como se estivesse doida. Carlinhos é que dizia:

-Sai daí, sai daí.

Mas a gata ficou lá, na porta. Até que a cobra mudou de rumo e foi embora, pela frente da casa. Só aí a gente voltou e, de noite, os meninos gritavam sem parar, contando para o pai. Ninguém quis dormir separado. Foi todo o mundo para a mesma cama. A gata ficou no quintal, de olho.

-E eu? Não gritei, não fiz nada?

-Nada, era como se você soubesse, o tempo todo. Não tinha nada mais silencioso lá em casa naquela hora do que você e a cobra.

10.26.2005

Onde se lê leia-se, leia-se lê

No texto "Tudo por você", onde se lê sarda, leia-se sarna.
Um dia ainda aprendo como corrigir esses textos sem ter que apagar tudo.
Alguém sabe me dizer como é que faz?

Tudo por você

O Zé e a Glória nem sabiam se eu gostava de cachorro, mas também não sabiam que eu gostava de roça. Ficaram surpresos quando disse para eles que aparecessem na Vila Mateus, a casa branca de Olhos d’Água, o lugarejo velho, dedicado a Santo Antônio, à direita de quem sai de Brasília para Goiânia, e, para isso, é preciso largar tudo, asfalto, cidades, sinalização e se embrenhar Goiás adentro, até parecer que não tem mais para onde ir, e, aí, é lá.

O Zé e a Glória chegaram de motocicleta, mas ela, em vez de na cabeça, levava o capacete pendurado no antebraço, como uma cesta, e, dentro, uma coisa pequena, redonda, felpuda, como duas bolas. Uma, a cabeça e a outra, o corpo. Quando pus as mãos dentro do capacete, ele me esperava com movimentos apressados do rabo, apreensivo e pronto para ser feliz. Já era o Lula, o meu Lula. Sendo eu, o Alexandre dele.

Foi pequeno por muito pouco tempo, porque parecia querer ser adulto. E quando cresceu, mostrou o que era. Porte médio, pêlos longos cor de caramelo e uma gola branca que se estendia, caprichosa, sobre o peito. O focinho era afilado, o que garantia um perfil esguio, com ares de alta velocidade. Ninguém sabia nada da família dele, porque tinha sido comprado num bar, às três horas da madrugada. Mas parecia de raça. Em algum galho alto da árvore genealógica, devia haver um collie elegante que observava o Lula.

Ele me ensinou coisas importantes. Foi ao lado dele que conheci o estado de Goiás, para entender que, ao contrário do que dizem as ciências, a terra não é redonda. É plana, reta, enfeitada por relevos suaves, córregos prateados, buritis espalmados, ipês amarelos, lilás, vermelhos.

Também foi ele que me ensinou a técnica de procurar poços escondidos no cerrado e ficar à espera do momento certo. Imóvel, em silêncio, é preciso aguardar até que o sol chegue no ponto certo, em temperatura e localização, para pular na água, de uma vez. Eu, com um grito, as pernas dobradas à altura do joelho. Ele, com um latido firme, um só, o rabo tenso, firme.

Aprendi a andar mato adentro, sem me preocupar com cobras ou arranhões graves. Era só mantermos o combinado: eu olhava o mundo. Lula cheirava a paisagem. Um completava o outro.

De noite, na varanda, quando os grilos pensavam em voz alta, os sapos arrotavam e os abacates explodiam ao bater no chão sem luz, ele me ensinava as coisas silenciosas. Lula era contemplativo. Nunca abanava o rabo em excesso, pulava e saltava apenas o suficiente para mostrar contentamento e, depois, se recolhia. De noite na varanda, mostrava a maneira correta de olhar para nada, e enfrentar uma hora, duas horas, três horas com a resignação da felicidade absoluta.

Pelo Lula, desejei ser cão. Invejei os pêlos dele, que brilhavam como seda pura. Quis ser apenas o essencial, que, sem nada, tem tudo. Sonhava me deitar na laje fresca ou debaixo da cama ou no meio da cozinha e estar satisfeito. Planejava ter fome até esperar pela comida com os olhos cheios de atenção e brilho, como se a fome fosse o único desejo sincero. E pretendi amar como se nada, fora do amor, fosse real, plausível ou sustentável.

Um dia, o Lula se coçou. Com a pata traseira, arranhou a orelha. No outro dia, a coceira estava lá. Uma semana depois, foi para o hospital em Brasília. A coceira já marcava as orelhas, a barriga, o peito, as coxas.

Levaram o Lula para uma mesa alta, de ferro. Ele esperou. Rasparam a pele, tiraram sangue, examinaram cocô e xixi. Não era alergia. Não era sarna. Não era zequizira. Não sabiam o que era. Ele voltou para casa, em Brasília. Sentou-se para se coçar.

Não demorou muito para voltar ao médico. Desta vez, já entrou no hospital com a cabeça baixa, um jeito lento e servil de andar. Ele, mais que os médicos, sabia que era grave. Outra vez, tiraram raspas da pele, sangue, xixi, cocô, temperatura.

Em casa, o pêlo começou a rarear. O rabo, sempre em pé e curvado na ponta, como uma pluma, se tornou apenas um fio de carne escura. O peito estava marcado pelas unhadas. Ele se sentava, se levantava, girava sobre si mesmo, se coçava, voltava a se sentar e, outra vez, muitas vezes, se levantava. Ia da cozinha para o corredor, de lá para o banheiro, entrava no quarto, buscava os cantos.

Uma manhã, ele cheirou mal. Dei banho. A água aliviava as coceiras. O cheiro apaziguava-se, mas, em seguida, voltava, intenso, ácido. Eu esfregava os cremes na pele dele. Ele me olhava com paciência.

Quando lindo, as pessoas chegavam perto, perguntavam nome, idade, raça, queriam saber se tinha filhos. Seis meses depois do primeiro sintoma, ele caminhava sozinho, como se sua passagem fosse uma ousadia de lepra.

Até que não quis mais sair de casa. Queria ficar sozinho. Às vezes, eu me abaixava perto dele e o abraçava. A felicidade destes momentos era quieta, imóvel. Depois, me lavava para tirar o cheiro insuportável do meu cachorro que se desmanchava vivo.

Passados nove meses de visitas a todos os médicos da cidade, ele me chamou. Não tinha pêlos. Os olhos eram ainda felizes, como uma gratidão a tudo. Ficamos nós dois sentados, um ao lado do outro. Não chorei nem nada. Mas ele me lembrou os momentos mais bonitos de nós dois, cada um deles. Levantou a pata e me tocou. Depois, se coçou. Aí, eu me afastei. Pensei que fazer tudo, tudo por você, não era só buscar a salvação. Era perceber a total ausência de crueldade, a absoluta inocência que há nas coisas de morrer.

Lula tinha 11 anos e três meses. Foi uma boa vida. A minha, ao lado dele, foi.

10.24.2005

Mensagens num iceberg




Aprendi muitas coisas ali, às margens do Mar Báltico. No Centro de Criatividade Alternative, em Heiligenhafen, onde eu trabalhava com adolescentes, conheci algumas novidades do início dos anos 70. Uma delas era uma mesa que, em vez de ser de madeira, era feita de uma enorme tela preta ligada na tomada, onde deslizavam imagens coloridas, que, como amebas ou bolhas de sabão, mudavam de forma e de cor, enquanto o café, o chá, o chocolate eram servidos sobre o caleidoscópio gigante.

As bebidas quentes eram extremamente úteis. O café servia para dar energia e trabalhar com os garotos e garotas, pouco mais novos que eu, que passavam o dia, e a noite, na Alternative, em um salão envidraçado virado para o mar, comandado por Rainer, um homem alto, de fala tranqüila, sorriso escondido, que, por circunstâncias do clero e da nacionalidade, parecia ter pedigree: era um pastor alemão.

O chá e o chocolate eram o refúgio contra o outono alemão, que brilhava sobre o porto de Heilengafen, e o sul da Dinamarca, com cores vivas, como se, em vez de estação do ano, fosse caixa de lápis de cor enlouquecida com vermelho, cor-de-abóbora, azul-claro, azul-escuro, roxo, amarelo, lilás.

Mas a grande novidade era outra: um aparelho do tamanho e peso de uma câmara de cinema. Com uma diferença suprema, que era a de mostrar, em seguida, o que tinha acabado de ser filmado, sem precisar mandar revelar no laboratório. Bastava, para isso, colocar a fita recém-gravada em um aparelho especial, acoplado ao aparelho de televisão, e lá estavam as imagens de um minuto atrás. Cheguei a escrever uma carta ao meu pai sobre as maravilhas que eu via na Alemanha moderna, rica, silenciosa e plana.

E foram as duas cartas do meu pai, como paisagens de nanquim; com riscos curvos, longos, ondeados, como se o alfabeto fosse um lago de cisnes; com o H sempre altaneiro entre o A e o I, para me perguntar “como está o frio ahi?”; foram essas duas cartas, mandadas com demora entre elas, que faziam com que eu me sentisse um navegante perdido nas águas azul-chumbo do Mar Báltico.

Mas era a letra dele que desenhava o mapa da volta. Meu pai transformava tudo, telefonemas, abraços, passeios de mãos dadas, saladas de agrião, bilhetes, melancias vermelhas abertas em cima da mesa, tudo o que tocava, em cartas de amor.

Peguei a câmara nova e fui para a praia, a cinco passos da minha casa com varanda para o mar. O mar fica esquecido quando chega o outono. Entre minha casa e o mar, havia um lago fino, comprido, como uma pista de pouso e de decolagem. Lá, as águas frias, arrepiadas pelo vento rasteiro, estavam cobertas por patos que, com sons mais ou menos estridentes, discutiam o trajeto para o sul.

Arrepiavam as penas, batiam as asas, afiavam os bicos. Todos se preparavam para o grande vôo. Outros patos chegavam e abanavam o rabo para se ajeitarem na água. A algazarra tinha a ansiedade dos aeroportos.

E, no meio dos patos, colocado como um copo-de-leite em pé na superfície da água do lago comprido, como um bibelô branco e dourado em cima da mesa da casa da minha mãe, ele, o cisne.

Apontei a câmera. Esqueci o frio do outono, as cores do fim da tarde, e entrei no lago, com águas até os joelhos. Saboreava tudo: penas, asas, pescoço, bico. Eu era o paparazzo das aves alemãs.

O cisne me olhou. Girou o pescoço como uma grua e me encarou através da lente da câmara. Ergueu-se lentamente como um iceberg majestoso, imenso, branco. Pela lente, percebi que a maré não estava para peixe. O cisne esticou o pescoço, abriu o bico, enrugou o cenho.

Dei dois passos para trás, na água. Ele avançou. Segurei a câmera com firmeza e saí do lago até a faixa de areia estreita que, em seguida, acabava no mar. Ele veio atrás, como uma celebridade decidida a espancar paparazzo.

Saiu da água. Mas era imenso, gordo, pesado. Caminhava com dificuldade, como se fosse um elefante com o mais lindo pescoço do mundo. Corri. Ele voltou para a água e, aí, tornou-se leve e suave outra vez. Mostrava apenas a ponta do iceberg que, de tão branco, era quase azul, luzidio. Abaixo da superfície do lago, escondia o resto, um bloco imenso.

Voltei ao lago no dia em que descobri que o outono é, também, uma caixa de música. Os patos, os passarinhos, os cisnes cantavam para anunciar a partida. Corri para lá. Os patos aceleravam a velocidade dentro d’água, batiam as asas, moviam os bicos e, depois, levantavam vôo.

E, no meio deles, o cisne. Deslizou sobre as águas como um barco. Ondulou o pescoço como se fosse uma vela soprada pelo vento. Bateu as asas brancas. Correu no lago. Mais. Mais. Seu corpo imenso começou a vir à tona. Ergueu-se acima da água, mas ainda voou baixo até o fim do lago. E, então, empinou como um avião sobre a baía da Guanabara, encarou o céu, e foi.

Corri ao longo da praia como se levasse o fio de um papagaio. Não perdia o cisne de vista enquanto ele, pouco a pouco, diminuía de tamanho, se tornava asas serenas sobre o Báltico.

Corri mais, queria ir junto. Parei de uma vez. Todas as cores se misturavam no céu da Alemanha. Pus as mãos em forma de funil em volta da boca e gritei:

-Diz para o meu pai que estou bem. Que um dia volto.

Acenei e esperei o cisne desaparecer. Ele era o branco da caixa de lápis de cor.

10.23.2005

De como interromper



Nunca tinha ouvido falar da República de Trinidad-e-Tobago, as Índias Ocidentais, livre da Inglaterra desde 1964. Anos depois, fui trabalhar na embaixada deles, em Brasília. Era o bilingual secretary da representação diplomática do país das steel bands, do calipso, da angostura e do bacalhau com abacate.

Tudo moderno. Tinha telefone com PABX, máquina de escrever elétrica, cofre pesado com segredo onde eram guardados talões de cheque para pagar os funcionários, notas fiscais de compra de papel higiênico e sabonete, correspondências pessoais dos diplomatas.

Vez ou outra, alguma coisa acontecia na chancelaria enfiada dentro de uma casa de dois andares na avenida W3-Sul, cercada de árvores e gramado verde. A casa ao lado era uma pensão com serviço de almoço. A manhã começava a acabar e a embaixada era invadida, nos dois andares, por um aroma abusivo e penetrante de bife com pimenta-do-reino e mandioca cozida. De chuchu ensopadinho com arroz solto. De feijão com carne-seca.

O embaixador, que era o decano de fato do corpo diplomático estrangeiro em Brasília, um homem entrado nos 50 anos, moreno dos cabelos grisalhos, tinha, além da esposa - uma canadense loira e espigada -, uma amiga brasileira, novinha, capaz de entrar em calças compridas que não aceitariam sequer uma das minhas pernas. E eu era magro.

Então, o motorista da embaixada tinha a função de, em caso de visita da amiga, ficar na porta dos fundos para dar o sinal se surgisse a esposa do embaixador. Eu, como bilingual secretary, tinha que me ocupar da porta da frente, sobre a qual balouçava a bandeira trinitária.

A manobra, que consistia em 1) motorista pelos fundos e 2) eu pela frente, sempre deu certo. E a vida seguia calmamente na nossa Trinidad-e-Tobago, o país que não tinha grandes razões para manter escritório de representação no Brasil. Mas eu, no rigor da análise, não tinha nada a ver com isso.

Uma tarde, o salão da embaixada, que também era o meu escritório atrás do balcão de madeira escura, foi invadido por um casal de cachorros. Não entraram separados. Entraram juntos. A bem da verdade, apesar de unidos, olhavam em direções opostas. Um dava um passo à frente, o outro era levado junto, de costas. Os cães têm esse momento constrangedor, assim como nós, humanos, passamos pela mesma coisa quando, em seguida aos confrontos carnais, um olha para o outro e, sem nada para dizer, pergunta:

-Quer que eu te chame um táxi?

E ficam os dois, ali, aflitos, mais ou menos constrangidos, num silêncio de fazer dó, à espera do carro que levará um para longe do outro, definitivamente. Então, era assim: os dois cães que invadiram a embaixada estavam à espera do táxi.

Eles não se contentaram com o salão. Passaram pela segunda sala, onde trabalhava a contabilidade - e onde ficava o cofre pesado, com segredo – e marcharam, um puxado pelo outro, para a cozinha. O motorista viu e se escandalizou. Lembrou que água fria resolvia. Ou uma vassourada.

Abri os braços.

-Gostaria que fizessem isso com você numa hora destas?

Iniciou-se o bate-boca sobre sexologia. Eu numa posição extremada e ele, em outra. Nisso, a amiga do embaixador chegou, sorriu com o jeito meio acanhado que tinha, caminhou com as calças justas de amásia, e subiu as escadas.

Mas, como a discussão continuava acalorada na cozinha, eu não pude ver que a esposa do embaixador, a canadense loira e espigada, tinha entrado pela porta da frente, poucos minutos depois. Fiquei sabendo mais tarde, mas, aí, já era tarde demais.

Os cães entrelaçados estavam voltando, sob minha escolta, para o salão principal, quando o primeiro pitaco teve lugar no de cima. Foi um som relativamente agudo, algo como um cinzeiro Kosta Boda que voasse rumo a uma testa e, num erro de mira, batesse contra a parede.

Depois, aconteceu novo estardalhaço, mas de outra ordem. Era som humano, destes que costumam ser emitidos para comunicar dor profunda. A amiga do embaixador bateu lá embaixo, de uma vez só, como uma jaca adúltera, desconhecendo a técnica de usar os degraus da escada. Os cães se agitaram, mas estavam tecnicamente impossibilitados de tomarem grandes atitudes, já que não se conheciam bem e tinham gostos totalmente diferentes. Eram dois estranhos, por assim dizer.

Outro grito veio do segundo andar. Também humano, mas, desta vez, masculino, Precedido de um som duro, pesado, como uma cadeira que se espatifa. Lá embaixo, a amiga do embaixador, numa tentativa diplomática de mostrar que tinha caído das escadas por puro acidente doméstico, limpou as calças apertadíssimas, e saiu correndo porta afora.

No segundo andar, no entanto, era o pandemônio. Os cães se assustaram e tentaram correr. Cada um para o seu lado. O macho, mais franzino, foi arrastado até o balcão. Ganiu. E quem não ganiria sendo puxado assim, de forma tão esmagadora?

O embaixador, lá em cima, ganiu também. Eram os machos sendo devorados por fêmeas enlouquecidas, tensas, nervosas. E começou a pancadaria propriamente dita. A cadela tentou morder o cão que não largava do seu pé. A embaixatriz desceu o braço. O resto do corpo diplomático tentou apaziguar. Mas era guerra mesmo.

Desceram as escadas aos trancos e barrancos. Eu, ainda jovem, nunca tinha visto uma autoridade apanhar de maneira tão impiedosa. O cão entrou em pânico. A embaixada ardia.

A cadela se soltou. O macho correu, enquanto ela, a fêmea, ali mesmo no salão, se sentava, esticava a perna traseira, como professora de ginástica aeróbica que mostra a posição certa, e se lambia. O embaixador saiu de cabeça baixa e, com passos rápidos, entrou no carro. Um mês mais tarde pediria remoção do cargo, de volta à sua ilha caribenha.

Depois, veio ela, a loira espigada. De cabeça erguida, sem que o nó do lenço no pescoço tivesse ao menos se contraído um pouco, como se nada tivesse acontecido, como se a embaixada estivesse na mesma pachorrenta e adormecida atividade de sempre, cumprimentou todo o mundo, no seu jeito canadense de ser:

-Hellooooooo.

E entrou no carro, para ir atrás do marido.

No fim da tarde, depois de retirarmos a bandeira do mastro, com uma falsa solenidade, fui embora para casa. Caminhava no gramado verde, coberto por árvores bem plantadas, em direção ao meu carro, quando reencontrei a cadela. Olhou para mim, sentada, com o corpo sendo sacudido pela língua pendurada boca afora.

Parecia estar se controlando para não cair na gargalhada.

10.22.2005

Indagações sobre o camelo




Chego, pelas 8 da noite, e o Aeroporto de Bagdá é uma grande feira. Mulheres cobertas de pano; homens que, pela altura da voz, parecem gritar pregões; crianças deitadas em malas, caixas, embrulhos; galinhas, cabras; ocidentais perdidos; melancias, tâmaras.

Caminho até a calçada e entro no carro que me espera. No vidro traseiro, o lado direito tem um furo redondo, bem marcado, de uma bala. Escolho, então, o lado esquerdo, mas o motorista, com fiapos de inglês, me avisa que, como já haviam acertado a direita, irão, agora, mirar a esquerda. Aceito a ponderação dele e mudo de lugar.

O carro sai rumo à cidade. Meu coração, acelerado. Minha boca anseia por sabores. Meu nariz, por cheiros. Meus olhos, loucos por paisagens e corpos. Entro em Bagdá, a cidade com nome que tem tradução: “presente de Deus”.

Na manhã seguinte, saio do hotel. 40 graus. Meus olhos giram, enlouquecidos. Sol. Areia. O rio Tigre ladeado por terras baixas. Tamareiras. Mais tamareiras. Milhares de tamareiras. Estou cercado delas. Muros. Chás. Laranjas. Uma loja de melancias. Risos. Gritos. Tiros. Casas derrubadas. Guerra do Golfo. Soldados. Sorrisos. O som doce da língua de Alá. Homens que andam de mãos dadas. Bagdá, linda.

Entro numa rua, decidido a me perder. O calor escorre por meu corpo. Cheiro de carne. Cheiro de urina. Ouro e prata na vitrine. Passo em frente a um prédio. Na varanda do terceiro andar, um camelo. Uma mulher coberta dos pés à cabeça dirige um carro. Homens se beijam no rosto. Crianças correm.

Um camelo no terceiro andar?

Volto.

Paro na calçada em frente ao prédio. Um camelo na varanda do terceiro andar. Os olhos vesgos e soberbos, os maxilares desencontrados. O pescoço longo se estica para lá e para cá. Vasculha a cidade.

Sento-me no bar em frente. Peço chá. Os homens de Bagdá sorriem. As mulheres, não sei. Estão escondidas como pássaros em gaiola coberta por pano preto.

O camelo continua na varanda. O calor aumenta. O chá refresca. Pergunto, a mim mesmo, o que o camelo faz ali. Subiu como? Empurrado escada acima pelos homens da casa? Para que serve um camelo no terceiro andar da cidade dada por Deus? Ele gira a cabeça para o rio Tigre. Acompanho o olhar dele: tamareiras.

A guerra arrebenta tudo. Penso no camelo. Desceu as escadas e se salvou? Caminhou lento, indiferente e elegante pelas ruas de Bagdá? Para ele, o que é o céu quando explode? Um camelo em pânico, nunca vi. Ninguém leva susto no deserto.

Chego em Copacabana. Do hotel, ligo para uma amiga e digo que venha. Pouco tempo depois, Cora, a amiga, chega com uma valise e se instala. Na varanda, vemos o prédio em frente, do outro lado da rua. No quinto andar, uma mulher sozinha, sentada no sofá folheia uma revista. Sobre sua cabeça, no andar de cima, no meio da sala do apartamento, uma kombi. No sétimo andar, dois homens conversam na janela. Talvez olhem para nós.

Uma kombi no sexto andar?

Voltamos o olhar para lá.

-Você viu?

-Vi.

-Em Bagdá, tinha um camelo no terceiro andar.

-Mas um camelo se desenvolve. Vai ver, subiu bebê e cresceu lá em cima. Agora, uma kombi?

-Talvez desmontada, peça por peça?

-Acho pouco provável. E, depois, para quê?

A mulher, embaixo, ainda lê a revista. Os homens, em cima, ainda olham pela janela. A kombi continua no mesmo lugar, no centro da sala.

Olho para o resto da cidade. Mulheres de biquíni. Homens que, pela altura da voz, parecem gritar pregões. Crianças dormem nas calçadas, em cima de caixas de papelão. Uma loja de sucos de frutas. Tiros. Meninos pela rua. Camelôs. O mar. 40 graus. As favelas. Risos. Soldados. Abacaxis. Mangas. Homens que passam abraçados. Gargalhadas. O som doce da língua de Deus. Rio de Janeiro, lindo.

10.20.2005

Kuk



O que é para fazer, que atitudes tomar, quando a gente vai andando por uma rua, tarde da noite, e acha um gato adolescente, ainda tropeçando na vida, totalmente perdido? Você põe no colo, acaricia a cabeça, faz cócegas na barriga, pergunta o que que foi. Mas, depois, o que fazer se você também está quase tão perdido quanto ele, em um país estranho, com língua de palavras ocas?

Era assim que eu me sentia em Estocolmo, pelas duas da madrugada, vindo, a pé, de um bairro alto, derramado sobre o mar, chamado Mariaberg, de que tinha compreendido, até então, duas coisas. Primeiro, Maria era Maria mesmo. E, depois, berg quer dizer monte ou morro, o que fazia da Mariaberg o Morro da Maria e, do iceberg, um monte de gelo. Viajar é sempre muito ilustrativo.

Tinha, até aquele dia, aprendido outra coisa também. Quando fui ter uma reunião, das sérias, com uma diplomata sueca, no Itamaraty deles, resolvi anotar uma palavra que, em vários pontos da cidade, tinha sido escrita em muros: kuk. Pensei, sinceramente pensei, em Komunist-Union-alguma-coisa e, na sala elegante e acarpetada, perguntei à ministra sueca o que aquilo, afinal de contas, queria dizer.

Ela me encarou, coçou a testa, me encarou outra vez, sugeriu um minúsculo sorriso, tossiu. Eu, já me espremendo contra o encosto do sofá, pensei bem baixo, tão baixo que mal dava para que eu mesmo ouvisse meu pensamento:

-Ah, minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, é palavrão...

E era. Kuk é parente próximo do cock inglês e parente afastado (por serem eles nórdicos e, nós, latinos) do nosso piru. Kuk era caralho.

Mas vai daí que eu ia pelas ruas de Mariaberg em direção a Gamla Stan, a Cidade Velha, onde eu estava vivendo aqueles dias, e achei o gatinho. Ele miava, possivelmente de fome. Ou de frio, porque o vento corria desde a Lapônia até as minhas mãos congeladas. E, com as mãos frias, peguei o bicho abandonado e pensei no que fazer. Olhei para um lado. Olhei para o outro lado. Não reconhecia nada. Mas sabia que, por tradições nórdicas, muitos bares, em dias de inverno, deixam pequenos fogareiros acesos no chão, em frente à porta, para avisar que somos bem vindos e que podemos entrar. Se achasse um, tentaria conseguir leite.

Quando já estava perto da cabeceira de uma das pontes que ligam as milhares de ilhotas de Estocolmo umas às outras, como se fosse uma Veneza dedicada a Thor, vi três homens. Eram rapagões, usavam calças jeans apertadas, botas de cano alto, casacos de couro enfeitados com alfinetes e correntes. Altos. Andavam como quem marcha. Continuei minha caminhada rumo à ponte.

Mas eles me chamaram. Como não sou dado à língua sueca, de que só sei dizer “at vara eller inte vara” (“ser ou não ser” – e não sei por que aprendi isso, já que nunca usei em padarias ou farmácias), apenas me virei e olhei, à espera que eles preenchessem o buraco deixado pelas palavras vazias e insossas que me dirigiam.

Por isso, se aproximaram em semicírculo. O parapeito da ponte, eu e o gato, e, na nossa frente, eles, fechando a roda. Alguma coisa me dizia que eu devia exclamar kuk e sair correndo. Mas, pelo sim, pelo não, fiquei, com olhar de expectativa.

Eles me olharam de cima embaixo. Era um olhar ensaiado, teatral. Como que examinassem minhas roupas, meu nariz, meus óculos, meus cabelos e meus olhos, que não eram azuis. São castanhos. Um deles se aproximou mais ainda, eu olhei para o mar que passava embaixo da ponte. O gatinho se ajeitou nas minhas mãos.

-Você é de onde?

Se eu respondesse, eles falariam de palmeiras, de futebol e de carnaval? Achei que não. O tom de voz do rapaz que me fez a pergunta era cortante, era cínico. Tinha uma suspeita de maledicência que eu já havia sentido quando ele encarou os meus olhos. Que são castanhos.

Percorri o mapa da Europa em um segundo. Reduzi o espaço e vasculhei o mapa da União Européia, à procura de uma nacionalidade segura, que não suscitasse orgias de nazismo tardio.

-Itália.

Um deles falava italiano, cazzo! kuk! Tentei responder que era de Veneza, de Verona, de Mântua. Eles se olharam e um deles deu mais um passo à frente, diminuindo o semicírculo, o que me espremeu mais ainda contra o parapeito da ponte de Mariaberg.

Insisti:

-Provem que não sou italiano.

Tentaram me vasculhar para encontrar o passaporte. Empurrei os intrusos com uma das mãos, enquanto segurava o gatinho com a outra. Eles se alvoroçaram. Eu também, já que estava decidido a não ser vítima na madrugada de Estocolmo, em cima de ponte sobre águas nórdicas geladas. Mas, além de nós quatro, quem mais se assanhou foi o gatinho.

Não acredito que ele tivesse alguma percepção política. Ou que fosse, por princípios, contra os skinheads. Acho que os gatos têm como princípio e como percepção a sobrevivência, a fuga, o combate pela retirada. Os gatos gostam é de viver. Por isso aquele lá tinha aceitado, sem arranhões e contrariedades, o meu colo quente. E por isso também, na hora em que fui empurrado por dois dos rapazes suecos, ele deu um pulo firme e voou sobre as cabeças do semicírculo, com um miado longo, dolorido, triste.

Os três tiveram a reação natural de se afastarem diante do pulo do gato. Aproveitei e passei entre eles. Corri. O gato atravessou a ponte, ainda miando. Eu não sabia mais onde estava, mas sabia, podia ouvir, que havia três pares de botas que corriam atrás de mim.

O gato entrou numa rua larga e vazia. Fui junto. Pulou sobre um carro, atravessou para a outra calçada, dobrou a esquina, desceu uma escadaria, pulou uma cerca. Eu não perdia de vista o rabo dele. Ia atrás, desesperado. Se ele não tinha lógica na sua correria desenfreada pelas ruas da cidade, que lógica teria eu? E que lógica tinham os três rapazes que também corriam atrás de mim?

O gato, então, me levou para uma rua clara, acesa, cheia de vida. Os três rapazes diminuíram os passos e devem ter decidido que eu não valia a pena tanto esforço. Quando passei por um grupo de pessoas que falavam o oco e vazio sueco, me senti finalmente em casa. Nunca havia sido tão bom ouvir a língua deles. Finalmente, ela era doce, meiga, amigável, familiar. Era como se eu entendesse tudo o que eles falavam entre si.

Procurei o gatinho. Ele estava sentado, paciente, na porta de um restaurante mexicano. Olhei pela vitrine. Lá dentro, alhos e cebolas saltitavam numa chapa quente, comandados por uma espátula. Entramos os dois. Eu comi um bife com aroma e sabor de coisas acaloradas, longínquas. Ele bebeu leite.

Ali pelas três da manhã, a gente se despediu. Ele empinou o rabo e foi. Eu enfiei as mãos no bolso do casaco e fui.

Perigosíssimas



Era muito importante, até mesmo vital, saber os horários dos trens que, de Cachoeiro de Itapemirim para Vitória, ou no sentido contrário, passavam pela cidade, pequena, silenciosa, ensolarada e fria onde eu morei.

E a importância não vinha apenas do fato de que a chegada na estação, anunciada pelo badalo do sino, era fundamental para a vida social. Minha mãe gostava de se arrumar para ir ver o trem parar rente à plataforma coberta por telhas francesas. Meu pai gostava de se sentar num dos bancos da estação para ouvir, sem ser notado, os telegramas que chegavam em código Morse, que ele havia aprendido na Itália, durante os anos da guerra. Ás vezes, meu pai sabia de notícia de morte antes mesmo da família enlutada.

Eu, o que eu gostava mesmo era de ficar sentado em cima dos blocos de mármore da serra capixaba que tinham sido deixados no largo em frente à estação construída pelo nosso vizinho, doutor Rose, o engenheiro inglês da British Railway. As pedras não serviam para nada, eram apenas o luxo da minha cidade: ter mármore precioso e caro jogado na rua.

Mas a importância do conhecimento dos horários se devia a outro fator. Da minha cidade até Jaciguá, que era do mesmo tamanho mas que, por algum motivo do terreno da magia, era também maior que a minha, a caminhada levava cerca de uma hora, pela estrada que, contorcendo-se entre as árvores da hoje falecida Mata Atlântica, ladeava o córrego, o mesmo que passava dentro do meu quintal.

No entanto, se o percurso até Jaciguá fosse feito pelos trilhos do trem, a caminhada era reduzida em 30 minutos. Por isso, quando eu e dois amigos, Marcelão e Marcelinho, queríamos mudar de ares, era obrigação saber a que horas passava o trem.

Para ir, era necessário também um certo conhecimento de causa. O trilho, ao sair da cidade, passava justamente em frente do portão da minha casa, quase dentro da varanda de madeira. Nesse trecho, tínhamos que correr para não sermos barrados pela fiscalização do serviço de segurança materna da Estrada de Ferro Federal Sociedade Anônima, que era exercida, em caráter voluntário, por minha mãe.

Depois, passávamos pela bica da Rainha que, de acordo com os elogios do meu pai, era a melhor água mineral do mundo. Em seguida, havia um túnel longo, com uma curva em seu interior, o que impedia, exatamente aí, a visão das duas extremidades. Era o breu. Pouco mais tarde, tinha mais um túnel, menor e, finalmente, sem grandeza nenhuma, mas espetacular, estava Jaciguá com dois salões de sinuca.

E, numa tarde de domingo, de volta de Jaciguá, encontramos Senhorinha, Marlene e Jacy, que iam na mesma direção. Antes mesmo do primeiro túnel, os pares já estavam estabelecidos e, quando entramos na escuridão, os relacionamentos foram selados.

Entramos, alguns minutos de caminhada mais tarde, no segundo túnel, o grande, o que tinha o ponto de breu. Senhorinha, Marlene e Jacy, como se carregassem, cada uma, um balde d’água fria, avisaram que tinham pressa em chegar em casa.

Do outro lado do túnel, havia uma vaca. Grande. Gorda. Chifruda. Ela tentava escalar o morro íngreme e muito verde encostado aos trilhos. Marcelão, que tinha fama de corajoso, tirou a camisa vermelha e brincou de toureiro. Um homem montado a cavalo subiu desde a estrada de terra e avisou:

-É brava. Tem cria nova.

Foi aí que surgiu o bezerro, filho dela, desnorteado, vindo em nossa direção. A vaca-mãe pulou do morro onde estava e nos encarou, decidida a matar ou morrer. Fincou as patas no chão pedregoso da estrada-de-ferro e disparou.

Sem ordem alguma, em completo alvoroço, entraram no túnel, mas cada um por si, Marcelão, Marcelinho, eu, as três meninas, o bezerro desnorteado, a vaca enfurecida, um cavalo e um cavaleiro montado nele.

E foi então que chegamos ao ponto escuro do túnel. Em momentos de pânico, perder o senso de direção é questão de segundos. Ninguém, nem vaca nem cavalo, e muito menos nós, sabia mais onde estávamos.

O barulho dos cascos sobre as pedras dos trilhos aumentava o ardor da coisa. Marcelão, o corajoso, gritava. Eu me encostei na parede do túnel, tomada pela água abundante que sempre escorre das pedras e dos montes capixabas, e jurei, de forma mais ou menos solene, que não voltaria, nunca mais, a sair dali e ver a luz do dia.

O vaqueiro berrou. O cavalo empinou. O bezerro se assustou e correu. A vaca-mãe entrou em desespero. O rabo dela chicoteava a escuridão. As meninas se acocoraram. E, finalmente, luz. A mãe encontrou o filho, o mundo estava em paz novamente. Saíram, eles, para um lado e nós, para outro, para longe de Jaciguá, de volta para casa.

Jacy deu o alarme lacrimoso:

-Perdi minha sandália.

Era sandália de salto. Branca. Nova, domingueira. Impossível voltar para casa sem ela.

-Minha mãe me mata.

A única solução era ir de novo para o túnel. Lá, no escuro úmido, onde os pequenos fios d’água que despencavam do teto se transformavam em cascatas poderosas, gastamos uma caixa de fósforos completa para encontrar a sandália, caída como morta perto da vala por onde escorria água das chuvas e das bicas.

-O salto quebrou!

Mas foi assim mesmo, acompanhando a marcha manca, lenta e chorosa de Jacy, que tomamos o caminho de volta, mais de duas horas depois. O que a gente não sabia é que o vaqueiro já estava lá e tinha contado tudo no bar do seu Evaristo, que funcionava como um alto-falante da cidade. O que fosse narrado ou insinuado ali, em pé no balcão, escorria porta afora, reverberava nas paredes, quicava nas esquinas, chocava-se nas árvores e, com pulos miúdos, mas enérgicos, entrava em cada casa e batia, certeiro, em todos os ouvidos.

Quando passamos pela bica da Rainha e entramos na cidade, lá estavam minha mãe e a avó da Senhorinha em pé, de braços cruzados, sobre os trilhos.

Seriam capazes de barrar qualquer coisa, até trem.

E pareciam mais perigosas que a vaca-mãe.

10.19.2005

O vôo do cardume



Quando ficava sentado na várzea para observar de perto, achava que urubu parecia uma galinha mais magra, elegante, vestida de preto. Então, decidi que queria um.

Meu pai já tinha me falado que, para caçar pato, o melhor método era amarrar a isca na ponta de um barbante bem comprido e esperar que ele engolisse. Como se fosse uma pescaria. Essa técnica, usei duas vezes. A segunda foi em Lima, a capital do Peru, quando decidi que ia pescar um pelicano e usei sardinhas em lata. Deu tudo certo, exceto por um detalhe: o pelicano foi quem me pescou e, se não soltasse o fio de nylon a tempo, eu seria levado para o mar alto.

Mas peguei um pedaço de carne crua e deixei escondida, até cheirar mal. Apanhei um barbante e amarrei. Fui para a várzea, junto com Mimosa e Malvina, as duas cadelas que viviam comigo. Joguei a carne podre e esperei. Mas tive que enxotar as duas e mandar de volta para casa, para poder ficar em paz na minha estratégia de tentar abraçar urubu.

Ele veio, aos saltinhos. Com o bico longo, como se fosse ave imperial, beliscou a carne fedida. Meu coração disparou, não me movi, não fiz barulho. Beliscou de novo. Deu mais uns saltos, mudou de posição. Beliscou. Aí, engoliu. Estava pescado.

Cheguei perto do urubu, o bicho sagrado do Espírito Santo, mais útil do que os lixeiros, mais eficiente do que a vigilância sanitária. Matar um era incorrer em pecado mortal. Por isso, peguei com cuidado. Ele se agitou.

Mas pescar e pegar nas mãos era pouco. Se eu contasse depois, quem ia acreditar? Levei para casa e escondi debaixo de um caixote emborcado, no fundo do quintal das árvores, que ficava depois da cerca. Tomei banho, apanhei uma bolsa enorme, enfiei o urubu dentro e fui para a escola, bem mais cedo.

Cheguei, e a escola dos alemães estava vazia. As poucas pessoas que encontrei no pátio, evitei conversar com elas me escondendo entre as amoreiras plantadas em filas. Apanhei um casulo de bicho-da-seda pendurado na folha da amoreira e dei para o urubu. Ele não quis. Ou não comia casulo ou estava aterrorizado.

Entrei na sala de aula e fechei a porta. Emborquei o caixote de lixo, que ficava perto da mesa da professora, e transferi o urubu para lá. Depois, voltei para o pátio, entrei em fila, cantei o Hino Nacional com a mão no peito e marchei de volta para a sala de aula.

Quando a professora de francês entrou, pedi para ir no banheiro e, na hora que passei perto do caixote de lixo, tropecei por querer nele. O urubu, livre, solto, com um pedaço de barbante pendurado no bico, retomou o fôlego e bateu as asas. Como não via direito onde ficava a janela, sobrevoou a sala, rodopiou, bateu asas, pousou numa carteira e voou de novo.

A professora gritou, para dar início ao pânico. Os outros correram, se esbarraram, abaixaram as cabeças, abanaram cadernos e livros para enxotar o invasor. Eu, na primeira carteira, era o único que não se espantava com nada. O urubu finalmente encarou o céu e partiu.

Todos, os alunos e a professora, correram para a janela. O urubu pousou perto, descansou da agitação. Mas aí, abriu as asas negras, luzidias, retesou os pés magros, e voou em direção ao alto das montanhas.

A agitação da sala virou paz. Ninguém tirou os olhos do ponto negro que flutuava, sem bater as asas. No silêncio rigoroso, grande, de pura admiração, observávamos a beleza voar. O urubu era o peixe das profundezas do céu. Encontrou outros e formaram, então, uma multidão celestial. O cardume do firmamento sobrevoou o córrego, as amoreiras, a casa da Carlota, a solteira linda que já devia ter se casado e que morava sozinha. Voou em círculos sobre a caieira e os lírios do brejo. Mergulhou na luz intensa do sol e sumiu.

Quando a professora voltou para o espaço que era dela, entre a mesa e o quadro-negro, era eu o dono da verdade. Comecei a rir, só para mim mesmo. Não resisti, ri para todo o mundo na sala. A professora parou e me encarou.

-O senhor teria, por acaso, algo a nos explicar?

Cobri o rosto com as mãos e ri. Tentei falar e fui invadido pela gargalhada cheia de lágrimas de contentamento. Ela, a professora com a pinta sobre o lábio, de cabelos falsamente lisos, caminhou até a porta da sala, apontou para o corredor e disse:

-Para a secretaria.

Quando me levantei, dezenas de pares de olhos me encaravam. Passei por eles e não resisti. Voltei a rir. Alguém mais deu uma risada fina, anônima.

-Silêncio!

Quando a porta voltou a se fechar e fiquei sozinho, tomei rumo contrário ao da secretaria. Fui para o pátio. O sol se misturava ao vento frio das montanhas e ao cheiro das amoreiras carregadas de casulos dos bichos-da-seda.

Olhei para cima. Os urubus tinham mergulhado ainda mais fundo no céu. Não dava para ver. Mesmo assim, fui para os lados da caieira, voar com eles.

Aquelas duas



Uma era australiana. Toda azul. Uma periquita de nome Nina Blue.
A outra era goiana. Uma gata branca chamada Lolita Weiss. Chegaram juntas na minha casa, um apartamento insuportavelmente novo, ainda aprendendo a ser habitado naqueles dias do ano de 1977. De tão novo e lustrado, ficava no meio do cerrado, com uma pista barrenta de terra vermelha para chegar até ele.

Nina e Lolita ocupavam todos os espaços do apartamento de três quartos. Além delas, eu, Romário, as duas gêmeas Luísa e Valtair. Eles quatro eram amigos de infância, de Minas Gerais. Nina e Lolita também eram amigas desde os primeiros dias. Só eu tinha conhecido todo mundo depois de já ter crescido.

E as duas ocupavam a casa com tanta facilidade que a grande mesa da sala tornou-se território delas. Implicavam com os pratos, não aceitavam os talheres, se esbaldavam na jarra d’água. Tanto que, com o passar do tempo, deixamos de usar a mesa e comíamos em qualquer outro lugar. Sentados em cadeiras na cozinha, quase deitados na cama, refastelados no chão.

E, depois, Lolita Weiss, a gata, se deitava com o focinho entre as pernas e, em seguida, vinha Nina Blue que, pacientemente, com os pés em forma de garras perigosas, escalava as costas da amiga. As duas fechavam os olhos e dormiam.

Acordavam, às vezes, com o som que sacudia, com certa força, a tela de proteção das caixas de som. Nina, que, das duas amigas, era a única que cantava, parecia se entusiasmar com Joan Baez.

Joan Baez tinha a mania de trinar:

“Cucurucucuuuuuuuuu, paloooooma-a-a-a. Cucurucucu-u-u-u”

Nina inchava o peito e ia junto:

Pirrrrrrrrr....pi...pi-pi-iiiiiiiiiiiiiiiiiii

Segundos uns, que conseguiam gostar da Joan Baez, Nina cantava de prazer, como uma back-vocal vestida de azul. Segundo outros, como eu, era reação de puro desespero. Em ocasiões assim, e nunca em outras, Nina e Lolita se separavam. A gata ia para o fim do corredor e ficava lá, distraída com os próprios pêlos brancos.

Poucas vezes se desentendiam. Uma manhã, levantei da cama e, com os olhos semi-fechados, para continuar dormindo e, também, para escapar do sol forte, alegre e descontrolado que se esparramava desde o céu até as paredes brancas do apartamento novo, entrei no box e, de uma vez, com o contentamento do verão, abri a torneira.

Um piado agudo, cortante, subiu pelas minhas pernas até os ouvidos. Abri os olhos e encarei o chão. Lá embaixo, uma periquita pequena, azul, caminhava como uma pata choca para longe da água do chuveiro. Reclamava da vida e vibrava as penas, para se secar da chuva súbita.

Quando chegou na mesa da sala, vingou-se em Lolita, que ainda dormia. Bicou o nariz da gata e ela revidou com uma patada. Nina rolou e caiu no chão, ainda tentando voar com uma das asas aparada com tesoura.

Mas foi a partir desse acidente que alguns cuidados foram exigidos. Ninguém, na casa, tinha permissão de abrir porta com força, deitar-se sem sacudir os lençóis, sentar em cadeira de uma vez e pôr panela no fogo sem olhar dentro. Até mesmo o uso do vaso sanitário exigia certas precauções, porque Lolita Weiss, ainda de pequeno porte, costumava cair lá dentro em momentos de investigação de território.

Vem o tempo e passa. Lolita Weiss deixou de ser uma gatinha branca e doida para se tornar uma gata grande, de olhos claros e jeito sedutor. Lambia-se com o capricho das cortesãs. Esticava a perna como se vestisse meias de nylon. Olhava como quem está pronta para caçar antílopes.

E as penas da asa da Nina Blue cresceram. Não tinha passado pela cabeça de ninguém que passarinho e céu são do mesmo elemento e que Nina também era azul. Ela pulou da mesa até a caixa de som, da caixa de som até a parte mais alta da janela e, dali, para a maior parte do mundo.

Três dias depois, Lolita também pulou. De uma vez só. Com as patas esticadas e os bigodes hirtos, os olhos faiscantes de tanto azul, nela e no céu, saltou como uma estrela olímpica. Com perfeição, bateu em pé lá embaixo, na rua barrenta.

E, aí, saiu, ainda meio desencontrada, ainda meio tímida, atrás da amiga que tinha batido asas e voado.

Chegamos em casa e a mesa da sala estava vazia.

10.18.2005

Gata na hora do poente



Conheci Shantung em noite de festa numa casa branca, com tudo branco: paredes, chão, portas, janelas, tapetes, sofás, cadeiras. A dona da casa, uma sueca chamada Maria, também era toda branca, apesar do tom amarelo dos cabelos. Mesma coisa com o marido dela.

Estava na varanda que dava para o gramado, verde, olhando para o lago Paranoá que, por causa do escuro da noite sem lua, tinha águas negras. E foi aí que ela se aproximou. Uma gata cinza e preta, muito pequena, como se, naquela noite, estivesse saindo sozinha pela primeira vez. Dava um passo sem saber direito onde ia pôr o pé, cambaleava, tentava se firmar e caía. Miava primeiro e, depois, se levantava para tentar tudo outra vez.

Peguei no colo e ficamos, os dois, olhando o lago em noite quente, quando Maria, branca, loira e grávida, chegou perto:

-Você trouxe um gato?

-Pensei que fosse seu.

-Odeio pêlos, odeio miados, odeio rabos, odeio focinhos.

Aparentemente, Maria odiava gatos. E foi enfática:

-Tira daqui!

Procurei, por cima da cerca viva do quintal, algum indício de ninho faltando um. Não encontrei e, por isso, apertei mais a gatinha no colo e deve ter sido aí que ela sentiu o meu cheiro pela primeira vez. Um dos convidados da festa, um poeta, quis socorrer:

-Vou embora daqui a pouco, levo o gato e solto em qualquer lugar.

Maria sorriu, eu fechei a cara.

-Nem por cima do meu cadáver.

E, assim, saí da festa, antes mesmo do poeta. Ainda na porta da casa de Maria, perguntei à gata miúda e muito frágil:

-Gosta mais de Shantung, Chinchila ou Caxemira?

Achei que ela ia dizer Chinchila, mas escolheu Shantung, e já foi como Shantung, em carne e osso, que ela entrou no carro. Primeiro, serena, pesquisadora. Liguei o carro. Ela, sem aviso prévio, pulou como milho em pipoqueira quente. Com unhas estiradas, agarrou-se ao volante, aos meus cabelos, à gola da minha camisa, às minhas coxas.

No meio do ataque furioso, consegui desligar o motor. Ela serenou. Respirávamos ofegantes. Abri o porta-luvas, tirei os óculos escuros, protegi os olhos e, antes de voltar a ligar o carro, avisei com voz firme:

-Rasgado, fatiado, arranhado, eu vou chegar em casa. E você vem junto.

E assim, entre unhadas e ronronadas caprichosas, ela cresceu. Tinha manias. O travesseiro era dela. Todos os dias, passava em frente da televisão e, de repente, via a imagem. Arqueava-se, ficava arrepiada das unhas até o bigode, e corria para se proteger dentro do armário.

E foi em cima do travesseiro, que ela se sentiu mal. Espichava o corpo todo, inclusive o rabo. Miava, fazia força. A barriga estava dura, inchada. A caminho do médico, tentou embirrar com o carro, mas estava doente demais e consentiu em viajar em paz.

Dois dias depois, quando fui no hospital buscar Shantung magra, cansada, com olheiras e besuntada do óleo da lavagem para retirar os pêlos presos nos intestinos, resolvi que ela iria passar os fins de semana na roça, comigo. Gostando ou não de carro.

E assim foi que um trecho bastante considerável da estrada entre Brasília e Olhos d’Água ficou sabendo que eu estava indo para Vila Mateus, a minha roça. O mundo inteiro ao longo da estrada via: eu ao volante lutando contra uma fera que rugia grudada ao teto, aos bancos, ao tapete de borracha, à maçaneta da porta.

Nas viagens seguintes, fui intransigente. Ela teria que entrar na caixa. Mas não foi preciso muito esforço nem muita repetição porque, um dia, na hora de voltar, ela se recusou. Da maneira dela. Subiu na trave do teto, lá em cima, e afiou as unhas. Busquei uma escada, subi até ela, mas Shantung foi categórica:

-Estou avisando. Não vem.

Eu fui e ela ficou na Vila Mateus, fazendo companhia ao meu cão Lula, aos meus quatro cavalos, às duas dúzias de galinhas, mais o galo Evaristo, além do bando de maritacas que, todos os dias, ali pelas sete da manhã, pousava no pé de abacate para o café-da-manhã.

Shantung passou a ser a grande mulher que seria para sempre. Tinha novas manias. Ninguém passava pelo portão da Vila Mateus sem que ela cheirasse, com desdém. Ninguém entrava no banheiro sem que ela entrasse antes, inspecionasse o ambiente e se sentasse de olhar fixo, como quem pergunta com pouca, quase nenhuma, boa vontade:

-O quê?


Pariu todas as vezes que pôde. Ou estava esperando filhotes, ou estava amamentando filhotes. Ou estava pensando seriamente nisso. Sentava-se no alto do portão da Vila Mateus e se lambia, sensual.

Ficou amiga do cão Lula e da égua Estrelinha. Juntos, íamos os quatro para um gramado alto e plano no fundo da roça para ver coisas como o pôr-do-sol ou estiagem depois de toró. Nestas horas, gostava de se sentar entre minhas pernas e, sem que ninguém mais visse, me acariciava com movimentos, firmes e delicados, do rabo cinza e preto.

Um dia, defendeu sua ninhada de um cachorro bravo que conseguiu entrar no quintal. Foi linda, corajosa, brava e feliz até o fim.

Conto de fada




Nunca tinha visto um, mas nem por isso mudava de opinião: o lobo era o mais belo dos mamíferos. Também nunca tinha ouvido, mas já sabia que a voz do lobo era a mais envolvente e a que mais podia me enfeitiçar. E sabia também que jamais escaparia do seu olhar.

Eu tinha medo dos lobos.

O carro, um Renault, subia devagar pela estrada estreita, solitária, úmida e retorcida da serra do Marão, no norte de Portugal, lá onde ninguém ousa falar alto, lá onde não há ser vivo com coragem de interromper o que o mundo sabe fazer por contra própria.

As árvores crescem. Os musgos embrulham e apertam as árvores. As vacas e os homens bafejam para cobrir o Marão de névoa. Os homens não falam, por respeito à mudez da natureza. O Marão é a pátria do silêncio.

Eu e o Rui, a gente vinha das margens do rio Tâmega para subir a serra. A estrada, quase um ângulo reto em relação ao rio lá embaixo, forçava o carro. De repente, a fumaça começou a sair de dentro do capô.

Saímos do carro enguiçado. Fora do carro, nada. Só a serra, porque “bem alto é o Marão, que não dá palha nem grão”. Mas, ali, tinha, pelo menos, um rego estreito, que, aos pulos sobre pedras, descia desesperadamente o monte, escorregando sem conseguir se agarrar às rochas lisas.

Passaram, bem perto, um homem e sua vaca. O mesmo silêncio, o mesmo jeito de andar com obstinação, como se andassem, os dois, sem esperança de chegar. O mesmo olhar mudo. Passaram sem surpresa, como se o carro, Rui, o rego d’água e eu fôssemos coisa do Marão e estivéssemos ali há um século.

Enquanto eles sumiam serra abaixo, refleti sobre as silhuetas idênticas na névoa:

-E se Darwin tivesse viajado para o Marão? Ia escrever que o homem descende da vaca? Ia chegar na academia e dizer que, em um momento da vida, os dois grupos, o dos homens e o das vacas, tomaram rumos biológicos diferentes mas mantiveram a mesma paciência, o mesmo silêncio e a mesma resignação?

Foram embora. Do outro lado da estrada escurecida ao meio-dia pela névoa, sobrava um pedaço de mata de pinheiros bravos.

Enquanto Rui levantava o capô do carro, atravessei a estrada e olhei o nada do Marão. No meio da cerração, entre os troncos dos pinheiros bravos, alguém me viu. Vi também e parei o olhar.

Reconheci. Não muito tempo antes daquele dia, eu estava dentro do carro, à noite, perdido, procurando a cidade mais próxima para me localizar no mapa de Portugal, quando, ao longo do acostamento da estrada, um bando de cães passou a me acompanhar, na mesma velocidade que o carro. Eles corriam como se festejassem e anunciassem minha chegada. Olhei os animais que, como batedores, abriam passagem para mim. Rui disse:

-São lobos de Trás-os-Montes.

Por isso, reconheci. O pêlo era cor de prata e o olhar dele, seu jeito quieto e impassível de mirar, de não mexer os olhos, de fixar, atento, como quem cheira o mundo, foi o que mais me paralisou. Não tinha escapatória, não havia o que ser feito, ali no Marão, no meio da névoa, separado do resto do mundo por um rego finíssimo de água fria que despencava morro abaixo, não por querer, mas por inexorabilidade.

Olhei também. Mas os olhos dele eram mais belos e mais misteriosos que os meus. Parei. Ele sabia parar mais que eu. Sabia ser firme como uma árvore. Eu tentava falar, queria dizer que estava com medo, tentava pedir socorro ao Rui, mas o lobo comandava o silêncio do Marão, que era tão quieto e antigo quanto ele.

Estávamos à distância de um bote certeiro, eu e ele. Mexeu a cabeça. Ergueu o olhar, fixo em mim. Dobrou uma das pernas e levantou a pata. Estendi o braço com a palma da mão aberta.

Os pinheiros bravos e ele. Como um cão de prata. Meus cabelos estavam úmidos, com a névoa deslizando entre eles. Lentamente, dei um passo para trás, queria voltar para o carro. Cheirou o ar.

Então, ele se afastou entre as árvores. Mas parou. E me olhou novamente. Descobri, quando me olhou, que meu medo era pura fantasia, ilusão. Que, se havia algum risco, era o de virar poeta, ali, na frente da beleza prateada. Descobri que ele não precisava de mim, para nada. Que ele, escondido entre os troncos, esperava a hora certa de ir embora.

Mas ele queria dizer alguma coisa, pelo jeito de me olhar sem ir embora. O chão que ele e eu pisávamos era rude, velho. O cão de prata começou a correr para sumir no meio das árvores e da névoa. O trote ligeiro, solitário, elegante falava.

O que você não conhece, o que é estranho, o que está além da imaginação, não mate, não ataque, não morda.

O que você desconhece, o que você não entende, pertence às árvores, são coisas do Marão.

O lobo foi embora morro acima. Eu fiquei para trás, trêmulo, sem medo algum, ouvindo o ronco do carro que voltava a funcionar.

Dei por mim: a gente encontra um lobo cara a cara, a gente sente, na pele, a ternura do olhar dele, reconhece a gentileza do pêlo, aprende que a alcatéia se senta nos morros para cantar. A gente olha, vê e disse que então é isso, que eles ainda são o que fomos um dia, quando nos encontramos pela primeira vez.

Quando a gente encontra um lobo, qualquer um reconhece a própria timidez.

10.17.2005

A era de aquário



O peixe, que, por decorrência natural das coisas, passou a ser conhecido como Peixinho, parecia tranqüilo, mas 1973 não estava sendo bom. Emílio Garrastazu Médici, o ditador brasileiro, também chamado de “Lola de Bagé” (cidade gaúcha onde ele tinha nascido, 70 anos antes), decidira que íamos pagar caro pelo milagre econômico.

1973 estava sendo o pior ano das nossas vidas. O título de país com a concentração de riqueza mais injusta de todo o mundo era nosso. Mas Peixinho nadava suavemente em círculos bem desenhados dentro de um aquário pequeno, redondo, deixado em cima de um caixote de manzanas argentinas encostado na parede do quarto do mocó.

O mocó era o quarto-de-empregada, o banheiro-de-empregada e a área de serviços que, com porta dos fundos independente, e isolado do resto do apartamento, era alugado para alunos da Universidade de Brasília. No mocó, moravam cinco pessoas e Peixinho, que, feitas as contas, era quem mais tinha espaço e conforto. O resto era compartilhado às cotoveladas. Mas seria por pouco: era só a casa em Sobradinho ficar vazia, que a gente se mudava para lá. Três meses de aluguel já estavam pagos adiantado.

Quando acordava, a luz do sol já entrava pela basculante e batia em Peixinho, nadando em volta de si mesmo. Depois, olhava, sempre, todos os dias, pela janela grande, para ver o carro de polícia. Um tubarão que rondava as nossas águas.

Um dia de chuva forte, a polícia entrou na sala, durante a aula, conversou em voz baixa com o professor, que, depois de ouvir, apenas apontou com o dedo, sem olhar com os olhos, para um aluno, perto de mim. A polícia se aproximou dele e avisou que era para sair da sala.

Voltei para casa e me sentei no chão, do lado de Peixinho. Naqueles dias de 1973, quando os barris de petróleo começaram a se tornar um dos produtos mais lucrativos do mundo, eu traduzia o Livro Vermelho de Mao Tse-Tung.

-O que você acha da Revolução Cultural chinesa?

Peixinho nunca respondia. Era do tamanho do meu dedo mindinho, tinha cor de salmão misturada com cor de tomate, abanava o rabo enorme, como um leque feito à mão, com as plumas unidas por fios de seda. O aquário tinha um ar de águas tranqüilas.

Quem também tinha um leque era dona Maximiliana, a estranha. Estava sempre vestida de branco, como uma mãe-de-santo. Usava um turbante branco. E um leque, nunca aberto, feito de fibras de casca de árvore, com cheiro de sândalo. Ela era dona do apartamento de que o mocó fazia parte. Tinha a voz rouca, acigarrada, e se achava sensual. Derramava os olhos em cima de quem estivesse perto dela.

Quando abri a porta do mocó, para sair, ela abriu a porta do apartamento dela e me chamou fazendo um anzol com o dedo indicador.

-A polícia está dentro do 204. Prendendo todo mundo que toca a campainha. Passe batido.

No apartamento 204, morava a totalidade dos amazonenses que eu conhecia na minha vida. Eram irmão e primos, vindos de Manaus, para estudar. Nesse dia, então, não bati na porta deles para avisar que estava na hora de ir para a universidade. Passei direto, sem olhar para os lados. Corri pela avenida L2 e, na universidade, encontrei Yeda, parada, paralisada, tensa, dura, em pé sobre a grama imensa, verde, luzidia em dias de chuva. Avisou que dois amigos nossos estavam desaparecidos.

Ela me perguntou. Tinha voz, olhos e mãos de puro pavor:

-E agora?

De volta para casa, fiquei, por mais de três horas, de olho no meu prédio. Pouco a poucos os outros habitantes do mocó foram chegando. Eu dava a notícia e ficávamos ali mesmo, parados, à espera do fim do dia. Decidimos ir logo para Sobradinho. Telefonamos da padaria. Ficou acertado que o dono da casa ia nos pegar, dentro de uma hora, no máximo.

Subimos as escadas sem fazer barulho. Degrau por degrau. A porta da dona Maximiliana gemeu ao abrir. Ela olhou e fez sinal para que sumisse todo mundo dali. Entramos no mocó. Em silêncio absoluto, colocamos as panelas, pratos, talheres e caixas de mantimentos dentro de caixas. Dobramos as roupas, as roupas de cama, as toalhas, e fizemos as malas. Enrolamos os colchões

Peguei o aquário de Peixinho e o livro de Mão Tse-Tung. Ia saindo e dona Maximiliana me chamou. Cochichou:

-Eles já estiveram aí na porta duas vezes. Vocês vão ser os próximos. Vão embora, vão, vão.

Desceram as escadas aos galopes, com caixas e malas. Desci devagar. Peixinho ainda nadava em círculos, docemente, no aquário apoiado no Livro Vermelho. As águas dele tinham a mesma calmaria de sempre. Meu coração era uma caldeira.


Eram quase seis da tarde e o dia acabava, do jeito brasiliense de acabar. O céu, bem marcado pela linha retíssima do horizonte plano, se abre arredondado como cauda de pavão. Luzes muito claras riscam o azul. O sol ferve, vira cobre, e desce entre os riscos claros. Depois, lentamente, a cauda do pavão se fecha e a noite vem.

A Rural-Willys do dono da casa chegou. Guardamos as caixas e as malas. Na hora de entrarmos no carro, avisei:

-Vou na frente com Peixinho.

Quando a Rural começou a manobrar em frente ao prédio, dois outros carros chegaram. De cada um, saíram três homens.

-Depressa, depressa.

Segurei o aquário com força, para que a água de Peixinho não se agitasse. Saímos da Asa Norte em direção a Sobradinho. Atravessamos a ponte sobre o lago. Subimos. Subimos mais. O carro tentava acelerar. E quanto mais pedia para que não corresse, mais eu me segurava a Peixinho, que nadava em círculos, em paz. Olhei bem: sua cauda de seda se movia com serenidade, cortando a água para se locomover. Levantei o aquário até a altura do meu rosto e passei a olhar a estrada de Sobradinho através do vidro, da água e de Peixinho.

Entramos na casa nova. Coloquei Peixinho em cima da mesma caixa ao lado do meu colchão. Era tudo que tinha no meu quarto. Outras notícias começaram a chegar: alguns fugiram para o Chile. Outros embarcaram para a França. Uns foram presos. A Universidade de Brasília se tornava um campo de concentração. Enterrei o livro de Mao Tse-Tung debaixo de uma bananeira no fundo do quintal.

Só Peixinho continuava em sua marcha diária e constante em torno de si mesmo. Chegava em casa e procura o aquário. Olhando a cauda que ia e vinha lentamente, como um abanador de realezas, eu tinha a sensação, boa, serena, de que salvava Peixinho.

Um dia, na universidade, uma vizinha me avisou que não voltasse para casa:

-O clima está seco. Os outros ficaram gripados e foram levados para o hospital. Todos. Menos você.

Andei pelas ruas de Brasília durante dois dias. Depois, fui até Sobradinho. Os colchões estavam rasgados, as roupas, retiradas dos armários, tinham sido espalhadas no chão. O vidro de uma janela estava espatifado. A terra em volta da bananeira estava intacta e, se nada aconteceu, os livros ainda devem estar lá, até hoje.

No meu quarto, me sentei durante muito tempo ao lado dos cacos do aquário espalhados pelo chão. Pensei, antes de ir embora sozinho:

- Ninguém está protegido para sempre.

1973 também tinha sido um péssimo ano para Peixinho.

10.14.2005

A aventura dela



Era uma bela mesa, e sempre que Romário, o outro brasileiro, e eu passávamos por lá, um de nós comentava:

-Reparou?

Quem ainda não tem mesa em casa, repara todas. E esta, era uma bela mesa redonda, com abas dobráveis, o que podia fazer dela retangular, se fosse o caso. Perfeita para o quarto na Bégude, a casa de campo onde a gente morava, lá perto da Côte d’Azur.

Até que, um dia, decidimos. A rua já estava escura, nas primeiras horas da noite. A casa era a última, na parte mais alta da alameda que subia desde o centro da cidade e se perdia no bosque provençal, que cheira sempre a ervas e a azeitonas pretas.

Paramos o carro, um pouco antes da casa. Era um deux chevaux cor-de-abóbora, que já tinha subido a rua com os faróis cuidadosamente apagados, na tentativa de tornar discreto um carro que, pela cor e pela própria natureza, chamava a atenção por onde passasse.

Com as mãos presas nos dedos entrelaçados, Romário fez um apoio para eu subir e observar o lado de lá. A mesa estava no mesmo lugar, num canto do terreno enorme em volta da casa de dois andares, que, naquela hora, tinha apenas uma luz acesa. Perto da mesa redonda, de pés e bordas da tábua trabalhados em relevo, estava o resto dos entulhos: duas caixas lacradas, um tapete velho enrolado, uma televisão quebrada, uma mala de fecho enferrujado.

Pulei. Romário, mais ágil, pulou depois, sem precisar de ajuda. Andamos no silêncio do terreno que já tinha sido estudado antes, quando a gente passava por ali, de dia. Cada um de um lado, começamos a levantar a mesa, que seria colocada em cima do muro, enquanto nós pulássemos para fora.

Um barulho pesado, mas veloz, de pisadas firmes, começou a ser ouvido na escuridão do quintal. Paramos, ainda segurando a mesa. O barulho se aproximou, sem que nem eu nem ele conseguíssemos enxergar.

O barulho abriu a boca e fechou quando encontrou as carnes do alto da coxas do Romário. Um cachorro grande, marrom, de dentes afiados, tinha sentido o cheiro dos invasores. Romário não gritou mas, com a mão, tentava se livrar do animal. No começo, eu observava, feito árbitro de luta-livre, telecatch, judô. Depois, larguei a mesa e dei pontapés no ar. O cão sentiu o primeiro chute, rosnou e travou mais ainda os dentes. Romário parecia que ia começar a gritar.

Puxei o cachorro pelo rabo. Ele era forte, resistia, estava pronto para uma verdadeira luta a três. Consegui segurar um das orelhas dele e o cão, mais ameaçador ainda, balançava a cabeça, sem largar as carnes do Romário, para se livrar da minha mão que segurava com firmeza. Ele, então, rosnou mais alto, abriu a boca e Romário subiu na mesa, de onde dava pontapés sem rumo, falando baixo:

-Sai, cachorro. Sai. Va-t-en, chien de merde.

O cachorro provavelmente não falava nenhuma das duas línguas e passou a me encostar contra o muro. Mostrava os dentes. Dei dois passos para trás. Ele avançou mais. Pulou. Me desviei e, quando ele passou no ar, abri a boca e mordi a anca do bicho. Com força. Quando caiu no chão, me olhou por poucos segundos, até entender o que tinha acabado de acontecer e, aí, fugiu, ganindo como filhotinho assustado, à procura da barra da saia da dona.

Desistimos da mesa. Eu já estava com uma perna em cima do muro, quando todas as luzes do quintal se acenderam. Na varanda do segundo andar da casa, uma mulher tentava enxergar o que acontecia perto do muro que dava para a rua. E, com a voz aguda e quase estridente das francesas, cumprimentou daquele jeito estranho que eles têm de dizer bom-dia mesmo quando já é de noite:

-Bonjour!

Nós dois, em pé em cima da mesa, feitos náufragos agarrados a um pedaço de navio, ficamos calados. Ela desceu a escada em caracol e se aproximou, acompanhada pelo cachorro, que, imenso, se escondia atrás das pernas dela. Quando chegou bem perto, perguntou:

-C’est qui?

Quem que a gente era? Mas isso eu não dizer nunca. E, por isso, continuamos em pé em cima da mesa. Ela insistiu na pergunta, e havia um sorriso no rosto dela que dava vontade de responder. Mas dizer o quê? Que a gente era ladrão de mesa? Ela voltou a fazer a mesma pergunta, pela terceira vez. E não fechava o sorriso.

-É que a gente estava dando uma olhada na mesa. É da senhora?

-E esse cachorro aí me mordeu.

Ela, então, parou de sorrir.

-Mordeu? Onde?

Romário se virou e mostrou o traseiro, furado em vários pontos pelos dentes do bicho bravo que, agora, estava mansinho e amedrontado. Ela se alarmou. Pediu que descêssemos. E ainda precisou de um bom tempo para nos convencer a entrar na sua casa.

Lá dentro, mostrou o atestado de vacina do animal, quando voltou do quarto com mercúrio-cromo e algodão. Tive coragem de dizer que tinha mordido o cachorro dela, também. Ela deu uma gargalhada alta, ampla, saborosa. Procuramos no pêlo dele e lá estava a marca dos meus dentes. Da cozinha, vinha um cheiro delicioso, terno, de batatas assadas com muita manteiga e ervas.

A gentileza talvez seja uma grande arma de defesa. Ela sorria com ternura e seus olhos azuis pareciam invejar, com prazer, os dois rapazes estrangeiros que tinham pulado o muro da casa dela para roubar uma mesa. Por isso a casa de dois andares, no alto da rua que ia dar no bosque provençal, onde já corria o vento frio das primeiras noites de outono, estava vazia. Por isso é que as batatas ao forno eram só para uma pessoa e que as uvas em cima da mesa pareciam abandonadas.

Ela sorriu mais. Tinha a doçura de quem sonha. Perguntou qual era o nosso país. Seus olhos brilharam com a resposta. Até o cachorro olhava com desejo e saudade. Haviam vivido dias mais agitados, apesar de serem ainda jovens, os dois.

Ela acompanhou a gente até o muro. Ajudou a colocar a mesa em cima do carro. Deu opinião sobre como amarrar bem, para não cair durante a viagem até a Bégude. Fomos embora e, lá embaixo, no fim da rua, na entrada da cidade, a polícia exigiu que Romário parasse o carro. Depois de mais de 10 minutos de conversa truncada e errada, subimos todos de volta para a casa da mulher.

Ela abandonou o prato na mesa e, mais uma vez, veio até o portão. Quando viu a polícia, comentou, quase gargalhando, como quem não controla a alegria:

-Hoje não é o nosso dia de sorte, não é verdade?

O dia também já era dela. Tinha se apossado da aventura. Talvez fosse dormir tranqüila. Quando finalmente fomos embora, para nunca mais nos vermos, ela ficou lá em pé no portão, acenando com a mão.