10.17.2005

A era de aquário



O peixe, que, por decorrência natural das coisas, passou a ser conhecido como Peixinho, parecia tranqüilo, mas 1973 não estava sendo bom. Emílio Garrastazu Médici, o ditador brasileiro, também chamado de “Lola de Bagé” (cidade gaúcha onde ele tinha nascido, 70 anos antes), decidira que íamos pagar caro pelo milagre econômico.

1973 estava sendo o pior ano das nossas vidas. O título de país com a concentração de riqueza mais injusta de todo o mundo era nosso. Mas Peixinho nadava suavemente em círculos bem desenhados dentro de um aquário pequeno, redondo, deixado em cima de um caixote de manzanas argentinas encostado na parede do quarto do mocó.

O mocó era o quarto-de-empregada, o banheiro-de-empregada e a área de serviços que, com porta dos fundos independente, e isolado do resto do apartamento, era alugado para alunos da Universidade de Brasília. No mocó, moravam cinco pessoas e Peixinho, que, feitas as contas, era quem mais tinha espaço e conforto. O resto era compartilhado às cotoveladas. Mas seria por pouco: era só a casa em Sobradinho ficar vazia, que a gente se mudava para lá. Três meses de aluguel já estavam pagos adiantado.

Quando acordava, a luz do sol já entrava pela basculante e batia em Peixinho, nadando em volta de si mesmo. Depois, olhava, sempre, todos os dias, pela janela grande, para ver o carro de polícia. Um tubarão que rondava as nossas águas.

Um dia de chuva forte, a polícia entrou na sala, durante a aula, conversou em voz baixa com o professor, que, depois de ouvir, apenas apontou com o dedo, sem olhar com os olhos, para um aluno, perto de mim. A polícia se aproximou dele e avisou que era para sair da sala.

Voltei para casa e me sentei no chão, do lado de Peixinho. Naqueles dias de 1973, quando os barris de petróleo começaram a se tornar um dos produtos mais lucrativos do mundo, eu traduzia o Livro Vermelho de Mao Tse-Tung.

-O que você acha da Revolução Cultural chinesa?

Peixinho nunca respondia. Era do tamanho do meu dedo mindinho, tinha cor de salmão misturada com cor de tomate, abanava o rabo enorme, como um leque feito à mão, com as plumas unidas por fios de seda. O aquário tinha um ar de águas tranqüilas.

Quem também tinha um leque era dona Maximiliana, a estranha. Estava sempre vestida de branco, como uma mãe-de-santo. Usava um turbante branco. E um leque, nunca aberto, feito de fibras de casca de árvore, com cheiro de sândalo. Ela era dona do apartamento de que o mocó fazia parte. Tinha a voz rouca, acigarrada, e se achava sensual. Derramava os olhos em cima de quem estivesse perto dela.

Quando abri a porta do mocó, para sair, ela abriu a porta do apartamento dela e me chamou fazendo um anzol com o dedo indicador.

-A polícia está dentro do 204. Prendendo todo mundo que toca a campainha. Passe batido.

No apartamento 204, morava a totalidade dos amazonenses que eu conhecia na minha vida. Eram irmão e primos, vindos de Manaus, para estudar. Nesse dia, então, não bati na porta deles para avisar que estava na hora de ir para a universidade. Passei direto, sem olhar para os lados. Corri pela avenida L2 e, na universidade, encontrei Yeda, parada, paralisada, tensa, dura, em pé sobre a grama imensa, verde, luzidia em dias de chuva. Avisou que dois amigos nossos estavam desaparecidos.

Ela me perguntou. Tinha voz, olhos e mãos de puro pavor:

-E agora?

De volta para casa, fiquei, por mais de três horas, de olho no meu prédio. Pouco a poucos os outros habitantes do mocó foram chegando. Eu dava a notícia e ficávamos ali mesmo, parados, à espera do fim do dia. Decidimos ir logo para Sobradinho. Telefonamos da padaria. Ficou acertado que o dono da casa ia nos pegar, dentro de uma hora, no máximo.

Subimos as escadas sem fazer barulho. Degrau por degrau. A porta da dona Maximiliana gemeu ao abrir. Ela olhou e fez sinal para que sumisse todo mundo dali. Entramos no mocó. Em silêncio absoluto, colocamos as panelas, pratos, talheres e caixas de mantimentos dentro de caixas. Dobramos as roupas, as roupas de cama, as toalhas, e fizemos as malas. Enrolamos os colchões

Peguei o aquário de Peixinho e o livro de Mão Tse-Tung. Ia saindo e dona Maximiliana me chamou. Cochichou:

-Eles já estiveram aí na porta duas vezes. Vocês vão ser os próximos. Vão embora, vão, vão.

Desceram as escadas aos galopes, com caixas e malas. Desci devagar. Peixinho ainda nadava em círculos, docemente, no aquário apoiado no Livro Vermelho. As águas dele tinham a mesma calmaria de sempre. Meu coração era uma caldeira.


Eram quase seis da tarde e o dia acabava, do jeito brasiliense de acabar. O céu, bem marcado pela linha retíssima do horizonte plano, se abre arredondado como cauda de pavão. Luzes muito claras riscam o azul. O sol ferve, vira cobre, e desce entre os riscos claros. Depois, lentamente, a cauda do pavão se fecha e a noite vem.

A Rural-Willys do dono da casa chegou. Guardamos as caixas e as malas. Na hora de entrarmos no carro, avisei:

-Vou na frente com Peixinho.

Quando a Rural começou a manobrar em frente ao prédio, dois outros carros chegaram. De cada um, saíram três homens.

-Depressa, depressa.

Segurei o aquário com força, para que a água de Peixinho não se agitasse. Saímos da Asa Norte em direção a Sobradinho. Atravessamos a ponte sobre o lago. Subimos. Subimos mais. O carro tentava acelerar. E quanto mais pedia para que não corresse, mais eu me segurava a Peixinho, que nadava em círculos, em paz. Olhei bem: sua cauda de seda se movia com serenidade, cortando a água para se locomover. Levantei o aquário até a altura do meu rosto e passei a olhar a estrada de Sobradinho através do vidro, da água e de Peixinho.

Entramos na casa nova. Coloquei Peixinho em cima da mesma caixa ao lado do meu colchão. Era tudo que tinha no meu quarto. Outras notícias começaram a chegar: alguns fugiram para o Chile. Outros embarcaram para a França. Uns foram presos. A Universidade de Brasília se tornava um campo de concentração. Enterrei o livro de Mao Tse-Tung debaixo de uma bananeira no fundo do quintal.

Só Peixinho continuava em sua marcha diária e constante em torno de si mesmo. Chegava em casa e procura o aquário. Olhando a cauda que ia e vinha lentamente, como um abanador de realezas, eu tinha a sensação, boa, serena, de que salvava Peixinho.

Um dia, na universidade, uma vizinha me avisou que não voltasse para casa:

-O clima está seco. Os outros ficaram gripados e foram levados para o hospital. Todos. Menos você.

Andei pelas ruas de Brasília durante dois dias. Depois, fui até Sobradinho. Os colchões estavam rasgados, as roupas, retiradas dos armários, tinham sido espalhadas no chão. O vidro de uma janela estava espatifado. A terra em volta da bananeira estava intacta e, se nada aconteceu, os livros ainda devem estar lá, até hoje.

No meu quarto, me sentei durante muito tempo ao lado dos cacos do aquário espalhados pelo chão. Pensei, antes de ir embora sozinho:

- Ninguém está protegido para sempre.

1973 também tinha sido um péssimo ano para Peixinho.

11 comentários:

Anônimo disse...

Senhor Ribondi:
Os cacos do aquário do peixinho mostram bem como foram aqueles tempos.
O senhor conta todo o ambiente, o tom do país na época, tudo através do Peixinho.
Parabéns!

Anônimo disse...

MARAVILHOSO!!!!!
Cada um melhor que o outro,quero mais.
Um beijão e uma ótima semana.

Ribondi disse...

Vocês já repararam que, à exceção do Valério, só mulheres me lêem?
É isso que é fazer sucesso com o sexo feminino?

leila disse...

1.não sou o valério mas
2.eu tinha reparado!
3.acho que é sim
4.eu nem ia ler até o final. achei que o peixinho ia morrer. mas li. droga. malditos gorilas.

leila disse...

ah!
5. meu marido leu alguns contos mas não comenta em blogs, é tímido

Ribondi disse...

Leila,

Diz pro seu marido que tímido por tímido, eu também sou.
E que é que nem virginidade. Depois, a sensação é ótima!

Anônimo disse...

Bela metáfora, Ribondi.

Acho que os homens te lêem, mas, igual ao marido da Leila, são tímidos pra comentar. Depois, acho que eles devem ficar paralisados de tão encantados, sei lá.

Teresa Amorim disse...

Puxa Ribondi que crônica mais triste. Eu tinha 10 anos nessa época, para mim era a idade da brincadeira e da inocência. Não vivi essa realidade.
Fiquei triste com a morte do peixinho. :-(

Anônimo disse...

Ribondi, com relação ao seu próprio comment eu diria q uma parte da frequencia feminina NOS COMENTÁRIOS deste blog deve-se ao fato de que os corações maternais das mulheres são compelidos a demonstrar compaixão por criaturas carentes da consideração humana ou vítimas de algum tipo de abandono...

gik disse...

Não dá pra não comentar textos tão sensíveis, lindos, é impossível!!!

Chorei por peixinho e por sua conclusão, tão dolorosa: realmente ninguém está protegido para sempre... que saudades da infância, né Ribondi?

Anônimo disse...

Alexandre
Não que nós, eu e meus irmãos, participassemos de alguma idéia revolucionária, mas em nosso apartamento (quase república) morava uma baiana, cujos irmãos eram revolucionários na Bahia, ela foi presa e ficou sumida por 7 dias. Muito estranho para mim uma guria recém saída de uma cidade pequena de Cachoeiro e sem saber nada desse mundo de violência. Fazer o quê, né? Vivendo e aprendendo.
Bjinhos