10.14.2005

As vítimas



Eu tinha um bodoque, feito à mão pelo meu pai, e logo na terceira lição, para aprender como lançar as bolas de barro com um arco, eu passei a me sentir armado e, além disso, a pessoa mais perigosa do quintal. Também, e por causa do bodoque, passava as primeiras horas da noite sentado na cozinha enrolando bolas de barro, que depois iam ao forno. Era uma maneira de espantar o frio que rondava a nossa casa no alto das montanhas e era também, mais do que tudo, um jeito de, como acontecia cada vez menos, ficar do lado do meu pai que, sentado ali, bebia vinho de jabuticaba ou molhava os lábios, com lentidão e precisão, em cachaça temperada com ervas perfumadas.

Armado com meu bodoque enorme, quase do meu tamanho, eu saía para a caça. O bodoque, pendurado em meu ombro, tinha o mesmo efeito que se fosse a mão do meu pai: eu me sentia valente. Mas as taruíras são muito ligeiras e ágeis e não dão tempo ao inimigo para colocar a bola de barro no pedaço de couro preso por dois barbantes esticados paralelamente, esticar o arco, fazer pontaria, respirar fundo e disparar. As taruíras fogem antes.

Foi aí que reparei nas galinhas. Elas apenas ciscavam no quintal. Primeiro, esticavam a perna e pisavam com a ponta do pé, como se fossem bailarinas desajeitadas que entrassem no palco. E giravam os olhos como se estivessem eternamente desconfiadas, sem nunca ter certeza de qual era o perigo em volta. Isto porque, tirando a perfeição e a beleza do ovo, todo o resto da galinha é patético e simplório.

Já tive oportunidades de mudar essa opinião, mas não mudei. Uma vez, viajava de trem entre Arequipa e Cuzco, e me sentei em frente a uma moça de tranças pretas e saia rodada, uma índia peruana, que levava um galo nos braços. Passou a viagem inteira abraçada ao bicho, e, todas as vezes que ele soltava resmungos do fundo do peito, e girava os olhos com aquele jeito espantado e zangado que as galinhas e os galos têm, a moça acariciava a crista do animal e beijava a cabeça dele. Em vez de mudar a minha opinião e deixar de achar que eram patéticos e simplórios, passei a achar que somos capazes de amar qualquer coisa, um galo, um toco amarrado em barbante, um bichinho de pelúcia, um envelope com carta dentro, um pai que tenha ido embora, como se o amor fosse uma sina.

Mas lá estava eu, na varanda, observando, do meu posto elevado, os inimigos ciscadores. Pus a bola de barro no bodoque, puxei os barbantes paralelos para trás, no preparativo do disparo, fechei um olho, mirei e atirei. A bolinha voou veloz pelo quintal e foi acertar o peito de uma galinha nova que passava por ali. Ela caiu para trás e ficou lá. Olhei desde a varanda, me achando perfeito.

Só que a franguinha não saiu mais do lugar. Olhei bem. Não se movia, estava caída com as pernas para cima. Lá em casa, as galinhas eram contadas todas as noites e recontadas todas as manhas, numa espécie de contabilidade de galinheiro, e alguma explicação haveria de ser dada, por alguém, no caso de a última contagem não bater com a anterior.

Corri até a vítima. Ela já tentava agitar as asas. Peguei a galinha e corri para o tanque do fundo do quintal. Abri a torneira e enfiei a cabeça dela debaixo d’água. E rezava para São Francisco de Assis, valei-me, fazei com essa galinha não morra. Até que ela se espantou, cheia de vida, mas ainda tonta, e fugiu do tanque. Quando pulou, encontrou a boca aberta do Maico, o cachorro enorme que trabalhava de guarda no nosso quintal. Ele prendeu a franguinha com os dentes e correu.

Corri atrás. Segurei Maico (era para ser Michael, mas virou Maico) pelo rabo, mas ele, naqueles dias, era maior e mais forte do que eu e, por isso, houve uma carreira desenfreada, nos fundos da nossa casa: na frente de tudo, a galinha quase morta entalada numa boca assassina. Logo depois, o assassino em pessoa, o Maico. Depois, eu, sendo arrastado preso ao rabo dele. No fim do cortejo, Mimosa e Malvina, que latiam para anunciar a passagem da alegoria.

Foi nesse momento, desesperado, meio esfolado de tanto ser arrastado e, sobretudo, vencido, que pensei em meu pai, o autor do bodoque. Mas ele não ficava mais muito em casa, preferia ir trabalhar ou parar na casa dos amigos. Então, emiti o pedido de socorro, o meu SOS:

-Mãããããe!!!!

Ela veio. Mas tem alguns pedidos de socorro que nunca deveriam ser emitidos. Quando minha mãe compreendeu a situação, pôs a galinha de volta no galinheiro, onde ela teria tempo para se recuperar de dois sustos seguidos, amarrou o Maico na árvore, e, com uma técnica precisa que consistia em me pegar pelo braço, bem abaixo do sovaco, e apertar as mãos até que as unhas entrassem, sem cortar, mas com muita dor, na minha carne, me empurrou para dentro do quarto e trancou a porta.

Fiquei lá muito tempo e, quando saí, quis novamente treinar, provavelmente para esquecer as mágoas. Outra vez no meu posto de comando, que era a varanda, apanhei o bodoque feito pelo meu pai, coloquei a munição no local e, para evitar dramas, não apontei para o quintal e, sim, para fora dele. Disparei.

Só que, o que tem que acontecer, acontece. Não adianta fugir, não adianta espernear. Está escrito, tem uma certa dose de fatalidade nesses momentos. A bolinha de barro queimado voou, subiu o mais algo que pôde, voltou a descer em alta velocidade e, como um projétil inteligente, foi se espatifar e esfarelar bem na testa da minha mãe que, justo naquela hora, voltava para casa.

Quando ela abriu o portão, não era só o galo na testa dela que estava vermelho. As bochechas também. E o pescoço - que arfava. Os olhos apresentam vermelhidão. Talvez não babasse, mas me lembro, de maneira meio difusa, que babava, sim.

Meu bodoque foi quebrado em dois e lançado para o fundo do quintal. Minha cabeça tornou-se um pandeiro onde tamborilavam, de maneira pesada, as mãos da minha mãe, a caminho do meu quarto.

Fiquei lá muito tempo. Para pensar. De noite, deu para ouvir que, no quarto deles, meu pai e minha mãe discutiam feio. Era algo sobre bolinhas de barro, sobre irresponsabilidade dele, sobre ai meu Santo Pai, toma jeito, homem.

Eu até achei, anos mais tarde, quando eles se separaram, que a culpa tinha sido da pedrada.

10 comentários:

Anônimo disse...

ô Deus, menino pensa coisas que nem se sabe de onde surgem.
A pontaria do destino parece às vezes tão fatal que dá vontade de devolver o badogue (na minha terra se diz com a e g) ao menino e ensinar a mirar em alvos visíveis e possíveis.
Afora isso, gostei mesmo, esse pedaço então:
"Em vez de mudar a minha opinião e deixar de achar que eram patéticos e simplórios, passei a achar que somos capazes de amar qualquer coisa, um galo, um toco amarrado em barbante, um bichinho de pelúcia, um envelope com carta dentro, um pai que tenha ido embora, como se o amor fosse uma sina."
Enfim...

Anônimo disse...

Prá mim é badogue mesmo.
Manis desse povo de chamar ascoias pr outros nomes, :).
E tive um, lindo, feito de forquilha de pitangueira.
E esqueci de dizer antes, entre as aspas e o Enfim... era para ter escrito: Eu amei um eucalipto.
Tendo tempo, veja lá no meu cantinho esse destempero do coração.

Anônimo disse...

Mania desse povo de chamar as coisas por outros nomes, :).
Meu teclado pirou.
Desculpa tantos erros.
Me mande um mail para conversams sobre badogues e bodoques, se quiser, lógico.

Anônimo disse...

Maravilha!! estou chorando de tanto rir!!
imaginando a cara de ódio da sua mãe com a testa suja de barro.
Eu, em criança aprontei e apanhei muito e a sua história me fez lembrar de quando eu e meu irmão sabíamos que vinha surra pela frente, chamávamos o nosso cão policial ( chamado Tenório ) que impedia a mãe de nos pegar, resultado toda vez que ela queria nos dar um corretivo, tinha que prender o cachorro primeiro.
Quanto às galinhas, concordo com você são realmente patéticas!!!

Anônimo disse...

Dá um clique no meu nome, senhor Ribondi, pus lá...

Anônimo disse...

Ribs,vou parar de fazer assim com os guris,de pegar no suvaco com as unhas.
Matilde,tinha uma musica assim:
"agora eu era heroi e o meu cavalo so´falava ingles,a dona do cowboy era vc alem das outras tres...
guardava o meu bodoque ,ensanhava o roque para as matines..."
eu acho q e´bodoque mesmo.

Anônimo disse...

ensaiava...

Anônimo disse...

monica r querida:
Badogue e bodoque estão certos.
Como você pode ler aqui,

http://www.alternativavip.com.br/Coluna_Texto.asp?CodColunista=1&CodTexto=59

na Bahia chammos as coisas pelo nome certo, afinal aqui munguzá é munguzá e não muxá e moqueca é moqueca, jamais ensopadinho.
Beijos, :).

Cora disse...

Só você pra me fazer rir às quatro da manhã de um dia em que acordei às sete para ir a São Paulo, realmente. Vou dormir às gargalhadas. Merci! :-*

Teresa Amorim disse...

Mais um conto que adorei!

Ribondi vc já nasceu especial com uma mãe especial e um pai especial.

Beijos