10.19.2005

Aquelas duas



Uma era australiana. Toda azul. Uma periquita de nome Nina Blue.
A outra era goiana. Uma gata branca chamada Lolita Weiss. Chegaram juntas na minha casa, um apartamento insuportavelmente novo, ainda aprendendo a ser habitado naqueles dias do ano de 1977. De tão novo e lustrado, ficava no meio do cerrado, com uma pista barrenta de terra vermelha para chegar até ele.

Nina e Lolita ocupavam todos os espaços do apartamento de três quartos. Além delas, eu, Romário, as duas gêmeas Luísa e Valtair. Eles quatro eram amigos de infância, de Minas Gerais. Nina e Lolita também eram amigas desde os primeiros dias. Só eu tinha conhecido todo mundo depois de já ter crescido.

E as duas ocupavam a casa com tanta facilidade que a grande mesa da sala tornou-se território delas. Implicavam com os pratos, não aceitavam os talheres, se esbaldavam na jarra d’água. Tanto que, com o passar do tempo, deixamos de usar a mesa e comíamos em qualquer outro lugar. Sentados em cadeiras na cozinha, quase deitados na cama, refastelados no chão.

E, depois, Lolita Weiss, a gata, se deitava com o focinho entre as pernas e, em seguida, vinha Nina Blue que, pacientemente, com os pés em forma de garras perigosas, escalava as costas da amiga. As duas fechavam os olhos e dormiam.

Acordavam, às vezes, com o som que sacudia, com certa força, a tela de proteção das caixas de som. Nina, que, das duas amigas, era a única que cantava, parecia se entusiasmar com Joan Baez.

Joan Baez tinha a mania de trinar:

“Cucurucucuuuuuuuuu, paloooooma-a-a-a. Cucurucucu-u-u-u”

Nina inchava o peito e ia junto:

Pirrrrrrrrr....pi...pi-pi-iiiiiiiiiiiiiiiiiii

Segundos uns, que conseguiam gostar da Joan Baez, Nina cantava de prazer, como uma back-vocal vestida de azul. Segundo outros, como eu, era reação de puro desespero. Em ocasiões assim, e nunca em outras, Nina e Lolita se separavam. A gata ia para o fim do corredor e ficava lá, distraída com os próprios pêlos brancos.

Poucas vezes se desentendiam. Uma manhã, levantei da cama e, com os olhos semi-fechados, para continuar dormindo e, também, para escapar do sol forte, alegre e descontrolado que se esparramava desde o céu até as paredes brancas do apartamento novo, entrei no box e, de uma vez, com o contentamento do verão, abri a torneira.

Um piado agudo, cortante, subiu pelas minhas pernas até os ouvidos. Abri os olhos e encarei o chão. Lá embaixo, uma periquita pequena, azul, caminhava como uma pata choca para longe da água do chuveiro. Reclamava da vida e vibrava as penas, para se secar da chuva súbita.

Quando chegou na mesa da sala, vingou-se em Lolita, que ainda dormia. Bicou o nariz da gata e ela revidou com uma patada. Nina rolou e caiu no chão, ainda tentando voar com uma das asas aparada com tesoura.

Mas foi a partir desse acidente que alguns cuidados foram exigidos. Ninguém, na casa, tinha permissão de abrir porta com força, deitar-se sem sacudir os lençóis, sentar em cadeira de uma vez e pôr panela no fogo sem olhar dentro. Até mesmo o uso do vaso sanitário exigia certas precauções, porque Lolita Weiss, ainda de pequeno porte, costumava cair lá dentro em momentos de investigação de território.

Vem o tempo e passa. Lolita Weiss deixou de ser uma gatinha branca e doida para se tornar uma gata grande, de olhos claros e jeito sedutor. Lambia-se com o capricho das cortesãs. Esticava a perna como se vestisse meias de nylon. Olhava como quem está pronta para caçar antílopes.

E as penas da asa da Nina Blue cresceram. Não tinha passado pela cabeça de ninguém que passarinho e céu são do mesmo elemento e que Nina também era azul. Ela pulou da mesa até a caixa de som, da caixa de som até a parte mais alta da janela e, dali, para a maior parte do mundo.

Três dias depois, Lolita também pulou. De uma vez só. Com as patas esticadas e os bigodes hirtos, os olhos faiscantes de tanto azul, nela e no céu, saltou como uma estrela olímpica. Com perfeição, bateu em pé lá embaixo, na rua barrenta.

E, aí, saiu, ainda meio desencontrada, ainda meio tímida, atrás da amiga que tinha batido asas e voado.

Chegamos em casa e a mesa da sala estava vazia.

8 comentários:

Anônimo disse...

"Segundo outros, como eu, era reação de puro desespero."
absolutamente enlevado

"E, aí, saiu, ainda meio desencontrada, ainda meio tímida, atrás da amiga que tinha batido asas e voado."
absolutamente arrepiado e de olhos fechados

permaneço assim muito tempo.
ainda bem.
o suficiente para perceber e manter o anonimato.

mas não o suficiente para tirar o arrepiado.

Anônino Covarde

Anônimo disse...

Adoro seus contos.Agora só falta uma foto bem linda do Negão e um conto todinho dele.

Anônimo disse...

Com esse nome, Nina Blue, acho que tinava junto com Joan Baez sim.
E tinha que ganhar o mundo, afinal era a sina dela.
Lolita Weiss de ir junto, amigas para sempre...
Muito bom, como sempre.

Ribondi disse...

Maria Helena,

O conto e foto do Negão virão....

Afinal, você acha que o título geral, "o cão que dizia eu te amo" é sobre quem?

Jussara disse...

Lindo e triste.

leila disse...

só o que me consola é o ano, 1977. em alguns lugares ainda dava pra um gatinho sobreviver na rua.

Teresa Amorim disse...

Ribondi, que conto mais triste.
Este conto ( e os demais também) predem a gente na leitura do princípio ao fim. Queria acender um cigarro, mas cadê que eu desgrudava os olhos do conto.

Beijo grande.

gik disse...

Ribondi, esses seres dominam a vida da gente, é impressionante. Pensei que eu estava ficando doida por deixar o meu querido amigo aqui mandar e desmandar no andamento da casa :c)))
Mas vejo que atitude tão cuidadosa é comum em quem ama essas coisicas maravilhosas.

Apesar de ser tão triste encontrar a mesa vazia, achei lindo os dois sairem para buscar sua "turma", o que, espero, tenham encontrado.
:v))