10.24.2005

Mensagens num iceberg




Aprendi muitas coisas ali, às margens do Mar Báltico. No Centro de Criatividade Alternative, em Heiligenhafen, onde eu trabalhava com adolescentes, conheci algumas novidades do início dos anos 70. Uma delas era uma mesa que, em vez de ser de madeira, era feita de uma enorme tela preta ligada na tomada, onde deslizavam imagens coloridas, que, como amebas ou bolhas de sabão, mudavam de forma e de cor, enquanto o café, o chá, o chocolate eram servidos sobre o caleidoscópio gigante.

As bebidas quentes eram extremamente úteis. O café servia para dar energia e trabalhar com os garotos e garotas, pouco mais novos que eu, que passavam o dia, e a noite, na Alternative, em um salão envidraçado virado para o mar, comandado por Rainer, um homem alto, de fala tranqüila, sorriso escondido, que, por circunstâncias do clero e da nacionalidade, parecia ter pedigree: era um pastor alemão.

O chá e o chocolate eram o refúgio contra o outono alemão, que brilhava sobre o porto de Heilengafen, e o sul da Dinamarca, com cores vivas, como se, em vez de estação do ano, fosse caixa de lápis de cor enlouquecida com vermelho, cor-de-abóbora, azul-claro, azul-escuro, roxo, amarelo, lilás.

Mas a grande novidade era outra: um aparelho do tamanho e peso de uma câmara de cinema. Com uma diferença suprema, que era a de mostrar, em seguida, o que tinha acabado de ser filmado, sem precisar mandar revelar no laboratório. Bastava, para isso, colocar a fita recém-gravada em um aparelho especial, acoplado ao aparelho de televisão, e lá estavam as imagens de um minuto atrás. Cheguei a escrever uma carta ao meu pai sobre as maravilhas que eu via na Alemanha moderna, rica, silenciosa e plana.

E foram as duas cartas do meu pai, como paisagens de nanquim; com riscos curvos, longos, ondeados, como se o alfabeto fosse um lago de cisnes; com o H sempre altaneiro entre o A e o I, para me perguntar “como está o frio ahi?”; foram essas duas cartas, mandadas com demora entre elas, que faziam com que eu me sentisse um navegante perdido nas águas azul-chumbo do Mar Báltico.

Mas era a letra dele que desenhava o mapa da volta. Meu pai transformava tudo, telefonemas, abraços, passeios de mãos dadas, saladas de agrião, bilhetes, melancias vermelhas abertas em cima da mesa, tudo o que tocava, em cartas de amor.

Peguei a câmara nova e fui para a praia, a cinco passos da minha casa com varanda para o mar. O mar fica esquecido quando chega o outono. Entre minha casa e o mar, havia um lago fino, comprido, como uma pista de pouso e de decolagem. Lá, as águas frias, arrepiadas pelo vento rasteiro, estavam cobertas por patos que, com sons mais ou menos estridentes, discutiam o trajeto para o sul.

Arrepiavam as penas, batiam as asas, afiavam os bicos. Todos se preparavam para o grande vôo. Outros patos chegavam e abanavam o rabo para se ajeitarem na água. A algazarra tinha a ansiedade dos aeroportos.

E, no meio dos patos, colocado como um copo-de-leite em pé na superfície da água do lago comprido, como um bibelô branco e dourado em cima da mesa da casa da minha mãe, ele, o cisne.

Apontei a câmera. Esqueci o frio do outono, as cores do fim da tarde, e entrei no lago, com águas até os joelhos. Saboreava tudo: penas, asas, pescoço, bico. Eu era o paparazzo das aves alemãs.

O cisne me olhou. Girou o pescoço como uma grua e me encarou através da lente da câmara. Ergueu-se lentamente como um iceberg majestoso, imenso, branco. Pela lente, percebi que a maré não estava para peixe. O cisne esticou o pescoço, abriu o bico, enrugou o cenho.

Dei dois passos para trás, na água. Ele avançou. Segurei a câmera com firmeza e saí do lago até a faixa de areia estreita que, em seguida, acabava no mar. Ele veio atrás, como uma celebridade decidida a espancar paparazzo.

Saiu da água. Mas era imenso, gordo, pesado. Caminhava com dificuldade, como se fosse um elefante com o mais lindo pescoço do mundo. Corri. Ele voltou para a água e, aí, tornou-se leve e suave outra vez. Mostrava apenas a ponta do iceberg que, de tão branco, era quase azul, luzidio. Abaixo da superfície do lago, escondia o resto, um bloco imenso.

Voltei ao lago no dia em que descobri que o outono é, também, uma caixa de música. Os patos, os passarinhos, os cisnes cantavam para anunciar a partida. Corri para lá. Os patos aceleravam a velocidade dentro d’água, batiam as asas, moviam os bicos e, depois, levantavam vôo.

E, no meio deles, o cisne. Deslizou sobre as águas como um barco. Ondulou o pescoço como se fosse uma vela soprada pelo vento. Bateu as asas brancas. Correu no lago. Mais. Mais. Seu corpo imenso começou a vir à tona. Ergueu-se acima da água, mas ainda voou baixo até o fim do lago. E, então, empinou como um avião sobre a baía da Guanabara, encarou o céu, e foi.

Corri ao longo da praia como se levasse o fio de um papagaio. Não perdia o cisne de vista enquanto ele, pouco a pouco, diminuía de tamanho, se tornava asas serenas sobre o Báltico.

Corri mais, queria ir junto. Parei de uma vez. Todas as cores se misturavam no céu da Alemanha. Pus as mãos em forma de funil em volta da boca e gritei:

-Diz para o meu pai que estou bem. Que um dia volto.

Acenei e esperei o cisne desaparecer. Ele era o branco da caixa de lápis de cor.

6 comentários:

Anônimo disse...

Ribondi, você se supera a cada vez. Este teu blog está demais. Estou ficando viciada. Um abraço.

Anônimo disse...

Perfeito.
(lendo o senhor, senhor Ribondi, tenho que comprar um dicionário de sinônimos de elogios para não ficar repetitiva, vida de fã é trabalhosa, tás a ver?)

Anônimo disse...

Acho que vou comentar um conto sim e outro não, ou terei que inventar adjetivos.Puxa, cada conto é melhor que o outros e todos são maravilhosos.Parabéns.

leila disse...

Ribondi, lindo o conto. e só você mesmo pra encontrar um cisne gordo, né?

leila disse...

hahahahahahaha, vou ver se pego um cisne fora d´água no ibirapuera pra conferir. já li em algum lugar que os pássaros são os descendentes legítimos dos dinossauros.

Anônimo disse...

Maria Helena, acho-me no mesmo dilema. :)