10.20.2005

Perigosíssimas



Era muito importante, até mesmo vital, saber os horários dos trens que, de Cachoeiro de Itapemirim para Vitória, ou no sentido contrário, passavam pela cidade, pequena, silenciosa, ensolarada e fria onde eu morei.

E a importância não vinha apenas do fato de que a chegada na estação, anunciada pelo badalo do sino, era fundamental para a vida social. Minha mãe gostava de se arrumar para ir ver o trem parar rente à plataforma coberta por telhas francesas. Meu pai gostava de se sentar num dos bancos da estação para ouvir, sem ser notado, os telegramas que chegavam em código Morse, que ele havia aprendido na Itália, durante os anos da guerra. Ás vezes, meu pai sabia de notícia de morte antes mesmo da família enlutada.

Eu, o que eu gostava mesmo era de ficar sentado em cima dos blocos de mármore da serra capixaba que tinham sido deixados no largo em frente à estação construída pelo nosso vizinho, doutor Rose, o engenheiro inglês da British Railway. As pedras não serviam para nada, eram apenas o luxo da minha cidade: ter mármore precioso e caro jogado na rua.

Mas a importância do conhecimento dos horários se devia a outro fator. Da minha cidade até Jaciguá, que era do mesmo tamanho mas que, por algum motivo do terreno da magia, era também maior que a minha, a caminhada levava cerca de uma hora, pela estrada que, contorcendo-se entre as árvores da hoje falecida Mata Atlântica, ladeava o córrego, o mesmo que passava dentro do meu quintal.

No entanto, se o percurso até Jaciguá fosse feito pelos trilhos do trem, a caminhada era reduzida em 30 minutos. Por isso, quando eu e dois amigos, Marcelão e Marcelinho, queríamos mudar de ares, era obrigação saber a que horas passava o trem.

Para ir, era necessário também um certo conhecimento de causa. O trilho, ao sair da cidade, passava justamente em frente do portão da minha casa, quase dentro da varanda de madeira. Nesse trecho, tínhamos que correr para não sermos barrados pela fiscalização do serviço de segurança materna da Estrada de Ferro Federal Sociedade Anônima, que era exercida, em caráter voluntário, por minha mãe.

Depois, passávamos pela bica da Rainha que, de acordo com os elogios do meu pai, era a melhor água mineral do mundo. Em seguida, havia um túnel longo, com uma curva em seu interior, o que impedia, exatamente aí, a visão das duas extremidades. Era o breu. Pouco mais tarde, tinha mais um túnel, menor e, finalmente, sem grandeza nenhuma, mas espetacular, estava Jaciguá com dois salões de sinuca.

E, numa tarde de domingo, de volta de Jaciguá, encontramos Senhorinha, Marlene e Jacy, que iam na mesma direção. Antes mesmo do primeiro túnel, os pares já estavam estabelecidos e, quando entramos na escuridão, os relacionamentos foram selados.

Entramos, alguns minutos de caminhada mais tarde, no segundo túnel, o grande, o que tinha o ponto de breu. Senhorinha, Marlene e Jacy, como se carregassem, cada uma, um balde d’água fria, avisaram que tinham pressa em chegar em casa.

Do outro lado do túnel, havia uma vaca. Grande. Gorda. Chifruda. Ela tentava escalar o morro íngreme e muito verde encostado aos trilhos. Marcelão, que tinha fama de corajoso, tirou a camisa vermelha e brincou de toureiro. Um homem montado a cavalo subiu desde a estrada de terra e avisou:

-É brava. Tem cria nova.

Foi aí que surgiu o bezerro, filho dela, desnorteado, vindo em nossa direção. A vaca-mãe pulou do morro onde estava e nos encarou, decidida a matar ou morrer. Fincou as patas no chão pedregoso da estrada-de-ferro e disparou.

Sem ordem alguma, em completo alvoroço, entraram no túnel, mas cada um por si, Marcelão, Marcelinho, eu, as três meninas, o bezerro desnorteado, a vaca enfurecida, um cavalo e um cavaleiro montado nele.

E foi então que chegamos ao ponto escuro do túnel. Em momentos de pânico, perder o senso de direção é questão de segundos. Ninguém, nem vaca nem cavalo, e muito menos nós, sabia mais onde estávamos.

O barulho dos cascos sobre as pedras dos trilhos aumentava o ardor da coisa. Marcelão, o corajoso, gritava. Eu me encostei na parede do túnel, tomada pela água abundante que sempre escorre das pedras e dos montes capixabas, e jurei, de forma mais ou menos solene, que não voltaria, nunca mais, a sair dali e ver a luz do dia.

O vaqueiro berrou. O cavalo empinou. O bezerro se assustou e correu. A vaca-mãe entrou em desespero. O rabo dela chicoteava a escuridão. As meninas se acocoraram. E, finalmente, luz. A mãe encontrou o filho, o mundo estava em paz novamente. Saíram, eles, para um lado e nós, para outro, para longe de Jaciguá, de volta para casa.

Jacy deu o alarme lacrimoso:

-Perdi minha sandália.

Era sandália de salto. Branca. Nova, domingueira. Impossível voltar para casa sem ela.

-Minha mãe me mata.

A única solução era ir de novo para o túnel. Lá, no escuro úmido, onde os pequenos fios d’água que despencavam do teto se transformavam em cascatas poderosas, gastamos uma caixa de fósforos completa para encontrar a sandália, caída como morta perto da vala por onde escorria água das chuvas e das bicas.

-O salto quebrou!

Mas foi assim mesmo, acompanhando a marcha manca, lenta e chorosa de Jacy, que tomamos o caminho de volta, mais de duas horas depois. O que a gente não sabia é que o vaqueiro já estava lá e tinha contado tudo no bar do seu Evaristo, que funcionava como um alto-falante da cidade. O que fosse narrado ou insinuado ali, em pé no balcão, escorria porta afora, reverberava nas paredes, quicava nas esquinas, chocava-se nas árvores e, com pulos miúdos, mas enérgicos, entrava em cada casa e batia, certeiro, em todos os ouvidos.

Quando passamos pela bica da Rainha e entramos na cidade, lá estavam minha mãe e a avó da Senhorinha em pé, de braços cruzados, sobre os trilhos.

Seriam capazes de barrar qualquer coisa, até trem.

E pareciam mais perigosas que a vaca-mãe.

10 comentários:

Ribondi disse...

Pessoal,
Estou com uma dúvida a respeito do texto.
Telegrama usava era código morse mesmo?

Anônimo disse...

Sim, era o Código Morse mesmo.
Interessante o conto, carreira de vaca "braba" quem não levou no interior desse Brasil?
E o mail não veio...

Anônimo disse...

Preciosa descoberta, ao ler os comentários do InternETC.

Textos deliciosos, todos até agora.

Obrigada, Ribondi.
Obrigada, Cora.

Anônimo disse...

Como sempre, adorei o conto, mas gostaria de um especial favor. Tem como deixar o clã Garoticida , os funestos, dentro do túnel, bem no meio da curva?

Anônimo disse...

Eu também já corri de vaca braba, Matilda. E não só uma vez. :)

Imagina o que senti, lendo esse delicioso conto.

Anônimo disse...

Ribondi boa noite.
O melhor de todos que já li aqui.
Adorei.

Nelsinho disse...

Eu tinha os meus 9 anos e era (sou!) fissurado em locomotivas...
Eu morava no Pereiró (Ramalde), não muito longe das linhas dos trens que iam da Senhora da Hora para as imediações da Boavista.

Eu então pedia à minha mãe para ir passar a tarde em casa de um coleguinha e me despencava para uma passagem de nivel guardada por uma moça já nem tão moça assim, que gastava suas horas de serviço dentro daquela cabine envidraçada fazendo tricot, com um gato enorme de cor cinza a seus pés.

Dali a moça só se levantava para operar as alavancas que fechavam as cancelas interrompendo o tráfego e ficar com uma bandeirinha verde enquanto o cavalo de aço passava tonitruante resfolegando vapor e deixando meu coraçãozinho em ritmo acelerado, como se fosse parte das poderosas bielas e manivelas em movimento...

Reabertas as cancelas, lá voltava a moça para a sua cadeira estratégicamente disposta junto ao enorme telefone de parede com manivela de chamada, que utilizaria em caso de acidente sobre a via férrea.

O gatarrão voltava a aninhar-se a seus pés e eu a aninhar-me junto dela fazendo perguntas que ela não sabia responder, enquanto inspirava profunda e repetidamente o delicioso cheirinho de mulher que parecia preencher completamente a atmosfera da cabininha, até ser advertido para que voltasse para casa antes que “a tua mãe fique preocupada”...

E lá voltava eu contrariado mas conformado, retendo nas narinas e sentidos aquela fragrância que não era perfume mas me deixava profundamente perturbado por muitas horas até que exausto, finalmente adormecia...

Os seus contos, Ribondi, são poemas de vida!

Nelsinho

Nelsinho disse...

O seu Ramalde era mais "Do meio".

O Largo do Pereiró faz parte de Ramalde mas é mais chegado à Senhora da Hora.
A cancela era na antiga "Circunvalação" que deu lugar às auto estradas.
A moça quando atendia o telefone, dizia: "Circunvalação!"...

Um abraço

Nelsinho

Jussara disse...

Aqui a gente gosta do "conto contado" e dos "comentários comentados". Eta gente que escreve bem!!

Anônimo disse...

Gente
Que delícia poder participar disso tudo, ler e se deliciar com o conto e depois com os comentários, que no final acabam sendo um outro conto. (rs)
Só vc mesmo para provocar isso Alexandre.
Um grande beijo
Mariucha