10.29.2005

O pai, o filho e o Espírito Santo




Nasci, abri os olhos e vi um mundo feito de pedras, montanhas, morros, orquídeas, jequitibás, jacarandás, lírios, copos-de-leite, marias-sem-vergonha, borboletas, pacas, palmeiras, tinhorões, jacas e carambolas, preguiças, palmitos, mexericas, laranjas-seletas, arapongas e onças. E, no meio da Mata Atlântica, aprendi a reconhecer meu pai, minha mãe e meus dois irmãos mais velhos ao lado de bananas-da-terra, cobras, aipins, taruíras, moquecas de cascudos, tanajuras, bromélias, beija-flores, taboas, e cabritos das montanhas.

Tudo fazia frio, tudo cheirava, e, tirando uma ou duas cidades feias e desalmadas, tudo era bonito e forte, no que se parecia muito com o meu pai, bonito e forte, ele também. Sabia que ele era forte porque eu me abraçava ao corpo dele quando a gente, no lombo do cavalo, subia um pedaço puxado de montanha. A trilha era estreita e acompanhava, em volteios e largura, o córrego de voz baixa e jeito cristalino, até chegar no nosso sítio. Era lá que morava uma onça.

Mas antes da onça, tinha o portão do sítio e, em seguida, a casa onde morava minha avó Virgínia, magra, muito bonita e tão séria e grave que era impossível chegar perto dela e dar um beijo. Sempre falou uma tentativa de português misturado com o vêneto da terra de onde era. Com ela, moravam também o meu tio Ovídio, a mulher dele e os dois filhos.

O chuveiro da casa ficava no terreiro, perto do paiol, da pedra-mó e do enorme pilão de socar arroz. No alto de uma pedra grande, uma canaleta feita de bambu trazia a água, pesada, macia, barulhenta, para cair de uma vez só no chão cercado de imensas e altas folhas de tinhorão, que serviam de cortina para o banheiro ao ar livre. Era lá que eu me agachava, brincando com sabugos de milho, para ouvir as histórias do meu pai, enquanto ele tomava banho, com o corpo protegido pelas folhas graúdas e muito verdes dos tinhorões capixabas que transformavam os respingos d’água em pérolas bem feitas e escorregadias.

Era em cima desse banheiro de água fria que chegavam, nas horas de sol, as borboletas, todas elas, todas as que existissem no mundo, para rodopiar como uma espiral de asas amarelas, brancas, avermelhadas, azuis, furta-cores.

Uma fileira de orquídeas, plantadas e cuidadas por meu pai, enfeitava a varanda, as janelas e os corredores da casa de madeira.

E depois do curral, onde as vacas mugiam antes do sol aparecer, como se fossem despertadores exigentes; depois do pasto, onde os cavalos desfilavam com os rabos arrebitados e elegantes; depois do morro inclinado coberto por capim e grama, surgia, no alto, o nosso pedaço da Mata Atlântica, o lugar proibido, a caverna das coisas nunca vistas, o esconderijo do mistério.

Era de lá, a qualquer hora, em dia de sol, em dia de chuva, na boca da noite, ao meio-dia, de manhã cedinho, que vinha o urro. O urro imenso, bravo, bonito, espichado, feliz, valente e nobre da onça.

E no meio da mata, os micos, afobados, gritavam fino. As arapongas, martelos com plumas, abriam o bico para estalar o berro. Os cavalos esticavam as orelhas e o rabo para correr pasto abaixo. Meu tio parava, em silêncio, com a corda na mão. Minha avó, dentro de casa, colocava o dedo indicador sobre os lábios e pedia silêncio.

-É ela.

Nessas horas, eu, sentado no parapeito da janela, e meu pai, abraçado a mim, não tínhamos mais nada para fazer, além de ouvir o canto terno e solitário da onça, que acalmava a roça e trazia silêncio até para as águas.

Depois, exatamente como pintura a óleo deixada na chuva, as coisas se desmancharam.

Primeiro foram os palmitos, que, antes, chegavam na minha casa, para o preparo da torta capixaba, em troncos grandes e honrosos, e, depois, passaram a aparecer em vidros. Na mesma época, os palmitais, com suas palmeiras perdulárias, derrubadas e mortas a cada colheita, começaram a ocupar os lugares dos jequitibás e das preguiças.

Em seguida, os eucaliptos, magros e secos, avançaram desde o norte do Espírito Santo. O cheiro fétido da celulose cobriu o cheiro macio das jacas e das carambolas. As onças e os beija-flores, todos muito delicados, correram para longe.

Minha avó morreu, meu tio foi embora. O sítio se perdeu e a Mata Atlântica, cheia, cheirosa, sombreada, úmida, capaz de produzir névoa que cobrisse o Espírito Santo todo, começou a cair, tronco a tronco, até caírem todas as árvores. Foi nessa época também que os madeireiros capixabas passaram a ser conhecidos como cupins.

E, então, meu pai. O homem das mãos grandes e gentis, dos olhos escondidos de quem vê e não fala, que amava todas as flores e todos os bichos, que sabia alisar pêlo de preguiça e colocar araponga entre os braços, o homem que cheirava a madeira e a vinagre, ele também achou por bem morrer.

Encarei bem o homem deitado, e desisti do Espírito Santo. Só voltei muitos anos depois, para descobrir uma coisa que eu devia saber desde sempre, mas que não contava nem para mim. Que Espírito Santo, tem muitos. Tem para quem quiser ficar mais rico que os ricos. Tem para quem acha bom se amontoar nas praias. Tem também para quem rouba tudo o que encontra.

Mas tem um outro, que ainda é cheio de borboletas e tinhorões, que continua coberto de neblina e de montanhas verdes, com gente reservada e envergonhada de falar. É nesse Espírito Santo que eu ouço, até hoje, o urro doce e manso da onça.

Porque esse Espírito Santo fica lá, na Mata Atlântica capixaba, que é o esconderijo do mistério.

10 comentários:

maria alice disse...

O título está demais! Perfeito.

Será que seu pai imaginou algum dia que a vidinha cotidiana renderia tantas histórias? Que os detalhes e as sensações do menino, tão bem guardados por tanto tempo, o fariam renascer na cabeça de desconhecidos?
As matas do Espírito Santo podem ser mais as mesmas, mas ainda escondem passarinhos lindos na neblina do pico da Bandeira. Ô lugar frio, sô...

Anônimo disse...

Muito, muito delicado, evocativo.
E o título um achado perfeito.
E eu fiquei meio tola lendo, lembrando também de esconderijos do mistério onde minhas certezas de infância ainda moram.
E chorei assim, devagarinho, como só saudade boa chora...

Nelsinho disse...

Ribondi,
Continuo lendo...e adorando, mesmo não me manifestando!

Nelsinho

Anônimo disse...

Adorei o título e o texto, dá vontade de voltar ao Espírito Santo.

Anônimo disse...

Ô Ridondi, sabe que é mesmo!
Por conta desse Espirito Santo especial é que ainda fico por aqui, na ilha do mel do sudeste.
Tem mesmo recantos especiais, mas, é mais pra gente mesmo, reservada, tímida, capixaba de alma e coração.
Tanto que encanta e faz gente de fora fincar raízes por aqui, num sabe?!

Anônimo disse...

Ribondi, concordo sim. Reservado e tímido. O que tem acontecido é que influenciado pela necessidade de um mundo que exige mais do que o recato, muitos de nós, Ribondi, ousamos mais, e até saimos daqui, e desbravamos terras novas.
Os que aqui ficamos tentamos nos adaptar aos que aqui chegam.
Sabe quando a timidez se enche de coragem e aí a voz se solta e as gargalhadas enchem o ar, as brincadeiras e provocações atiçam uns e outros?!
Um jeito de camuflar esse perfil, que você retratou tão bem.
Parabéns, conterrâneo! :)

Anônimo disse...

Alexandre
Assim como você, tenho mais tempo longe do Estado do que junto a ele. Concordo com a Cássia, a gente traz junto a nós, escondinho no fundo do coração, o Espirito Santo que nós criou e nos fez gente.
Bjinhos

Anônimo disse...

Amei.

leila disse...

fui uma vez a guarapari. adorei cada pedaço da estrada. não gostei de guarapari propriamente, mas fui a um restaurante maravilhoso numa enseada com o mar azul turquesa. a paisagem do ES me impressionou tanto que durante muito tempo era capaz de reconhecer em fotos os morros e florestas de lá.

Bruno - Católico disse...

O senhor dos Exércitos, o alfa e o homega, o início e o fim, a luz do mundo, o bom pator, aquele que é criador e senhor de toda criatura (inclusive Satanás),aquele que é o caminho a verdade e a vida, o Cristo Jesus te ama irmão! te converte e crede no Evangélio!