10.23.2005

De como interromper



Nunca tinha ouvido falar da República de Trinidad-e-Tobago, as Índias Ocidentais, livre da Inglaterra desde 1964. Anos depois, fui trabalhar na embaixada deles, em Brasília. Era o bilingual secretary da representação diplomática do país das steel bands, do calipso, da angostura e do bacalhau com abacate.

Tudo moderno. Tinha telefone com PABX, máquina de escrever elétrica, cofre pesado com segredo onde eram guardados talões de cheque para pagar os funcionários, notas fiscais de compra de papel higiênico e sabonete, correspondências pessoais dos diplomatas.

Vez ou outra, alguma coisa acontecia na chancelaria enfiada dentro de uma casa de dois andares na avenida W3-Sul, cercada de árvores e gramado verde. A casa ao lado era uma pensão com serviço de almoço. A manhã começava a acabar e a embaixada era invadida, nos dois andares, por um aroma abusivo e penetrante de bife com pimenta-do-reino e mandioca cozida. De chuchu ensopadinho com arroz solto. De feijão com carne-seca.

O embaixador, que era o decano de fato do corpo diplomático estrangeiro em Brasília, um homem entrado nos 50 anos, moreno dos cabelos grisalhos, tinha, além da esposa - uma canadense loira e espigada -, uma amiga brasileira, novinha, capaz de entrar em calças compridas que não aceitariam sequer uma das minhas pernas. E eu era magro.

Então, o motorista da embaixada tinha a função de, em caso de visita da amiga, ficar na porta dos fundos para dar o sinal se surgisse a esposa do embaixador. Eu, como bilingual secretary, tinha que me ocupar da porta da frente, sobre a qual balouçava a bandeira trinitária.

A manobra, que consistia em 1) motorista pelos fundos e 2) eu pela frente, sempre deu certo. E a vida seguia calmamente na nossa Trinidad-e-Tobago, o país que não tinha grandes razões para manter escritório de representação no Brasil. Mas eu, no rigor da análise, não tinha nada a ver com isso.

Uma tarde, o salão da embaixada, que também era o meu escritório atrás do balcão de madeira escura, foi invadido por um casal de cachorros. Não entraram separados. Entraram juntos. A bem da verdade, apesar de unidos, olhavam em direções opostas. Um dava um passo à frente, o outro era levado junto, de costas. Os cães têm esse momento constrangedor, assim como nós, humanos, passamos pela mesma coisa quando, em seguida aos confrontos carnais, um olha para o outro e, sem nada para dizer, pergunta:

-Quer que eu te chame um táxi?

E ficam os dois, ali, aflitos, mais ou menos constrangidos, num silêncio de fazer dó, à espera do carro que levará um para longe do outro, definitivamente. Então, era assim: os dois cães que invadiram a embaixada estavam à espera do táxi.

Eles não se contentaram com o salão. Passaram pela segunda sala, onde trabalhava a contabilidade - e onde ficava o cofre pesado, com segredo – e marcharam, um puxado pelo outro, para a cozinha. O motorista viu e se escandalizou. Lembrou que água fria resolvia. Ou uma vassourada.

Abri os braços.

-Gostaria que fizessem isso com você numa hora destas?

Iniciou-se o bate-boca sobre sexologia. Eu numa posição extremada e ele, em outra. Nisso, a amiga do embaixador chegou, sorriu com o jeito meio acanhado que tinha, caminhou com as calças justas de amásia, e subiu as escadas.

Mas, como a discussão continuava acalorada na cozinha, eu não pude ver que a esposa do embaixador, a canadense loira e espigada, tinha entrado pela porta da frente, poucos minutos depois. Fiquei sabendo mais tarde, mas, aí, já era tarde demais.

Os cães entrelaçados estavam voltando, sob minha escolta, para o salão principal, quando o primeiro pitaco teve lugar no de cima. Foi um som relativamente agudo, algo como um cinzeiro Kosta Boda que voasse rumo a uma testa e, num erro de mira, batesse contra a parede.

Depois, aconteceu novo estardalhaço, mas de outra ordem. Era som humano, destes que costumam ser emitidos para comunicar dor profunda. A amiga do embaixador bateu lá embaixo, de uma vez só, como uma jaca adúltera, desconhecendo a técnica de usar os degraus da escada. Os cães se agitaram, mas estavam tecnicamente impossibilitados de tomarem grandes atitudes, já que não se conheciam bem e tinham gostos totalmente diferentes. Eram dois estranhos, por assim dizer.

Outro grito veio do segundo andar. Também humano, mas, desta vez, masculino, Precedido de um som duro, pesado, como uma cadeira que se espatifa. Lá embaixo, a amiga do embaixador, numa tentativa diplomática de mostrar que tinha caído das escadas por puro acidente doméstico, limpou as calças apertadíssimas, e saiu correndo porta afora.

No segundo andar, no entanto, era o pandemônio. Os cães se assustaram e tentaram correr. Cada um para o seu lado. O macho, mais franzino, foi arrastado até o balcão. Ganiu. E quem não ganiria sendo puxado assim, de forma tão esmagadora?

O embaixador, lá em cima, ganiu também. Eram os machos sendo devorados por fêmeas enlouquecidas, tensas, nervosas. E começou a pancadaria propriamente dita. A cadela tentou morder o cão que não largava do seu pé. A embaixatriz desceu o braço. O resto do corpo diplomático tentou apaziguar. Mas era guerra mesmo.

Desceram as escadas aos trancos e barrancos. Eu, ainda jovem, nunca tinha visto uma autoridade apanhar de maneira tão impiedosa. O cão entrou em pânico. A embaixada ardia.

A cadela se soltou. O macho correu, enquanto ela, a fêmea, ali mesmo no salão, se sentava, esticava a perna traseira, como professora de ginástica aeróbica que mostra a posição certa, e se lambia. O embaixador saiu de cabeça baixa e, com passos rápidos, entrou no carro. Um mês mais tarde pediria remoção do cargo, de volta à sua ilha caribenha.

Depois, veio ela, a loira espigada. De cabeça erguida, sem que o nó do lenço no pescoço tivesse ao menos se contraído um pouco, como se nada tivesse acontecido, como se a embaixada estivesse na mesma pachorrenta e adormecida atividade de sempre, cumprimentou todo o mundo, no seu jeito canadense de ser:

-Hellooooooo.

E entrou no carro, para ir atrás do marido.

No fim da tarde, depois de retirarmos a bandeira do mastro, com uma falsa solenidade, fui embora para casa. Caminhava no gramado verde, coberto por árvores bem plantadas, em direção ao meu carro, quando reencontrei a cadela. Olhou para mim, sentada, com o corpo sendo sacudido pela língua pendurada boca afora.

Parecia estar se controlando para não cair na gargalhada.

9 comentários:

Anônimo disse...

Estou rindo sem parar.

Anônimo disse...

estou que nem ela....

só que não me controlo. delícia.

e adoro jogar um kosta boda. e é bom que seja um deles. bem leve.
e sou bom de mira.
ainda bem que o referendo não foi sobre a comercialização de Kosta Boda ! Não tinha pensado nisso.
Cada jarro...

Ribondi, obrigado.

Anônimo Covarde duplamente

Anônimo disse...

Delicioso, divertido, ótimo mesmo, :).

Anônimo disse...

Divertidíssimo!!!

:D :D :D

Nelsinho disse...

Você me arrancou uma boas gargalhadas!!...

Nelsinho

Anônimo disse...

Muito engraçado e bem contado. Adorei.

Cora disse...

Pronto, mais uma vez eu aqui dando gargalhada sozinha e os gatos olhando...

Eu me lembro dessa época, me lembro também quando você foi lá uma vez, não foi?

Anônimo disse...

Cora
Você é impagável !!
Sua leitora !!
Helena

Anônimo disse...

Suas estórias, Ribondi, são ótimas.
Fiquei imaginando todo o auê.