10.13.2005

Mimosa




Eu tinha um amigo, lá na cidade capixaba onde passei a infância e comecei a virar gente graúda, que tinha uma cachorra chamada Piranha. Levou três cascudos, alguns safanões e beliscões da mãe, uma coça do pai, mas não mudou de idéia.

-É Piranha. Piranha.

E disse sílaba por sílaba, para marcar bem:

-Pi-ra-nha.

E era só chegar na frente da casa, gritar bem alto

-Piraaaaaaaaaaaaaaaanha!

Que, de lá de dentro, viam a mãe dele, de cara amarrada, e a cachorra, toda sorridente e toda preta, gorda, satisfeita.

Foi por isso que inventei de ter uma cachorra para acompanhar a Piranha. O meu irmão-do-meio, que já morava em Vitória, a maior cidade do mundo, com uns 100 mil habitantes, tinha inventado um dia de amarrar o cinto num pedaço de pau e arrastar pela cidade. Fiz a mesma coisa. Procurei, no fundo do quintal, um pedaço de lenha, curto, bem redondo, amarrei um barbante no meio e batizei: Tua-mãe.

Então, era assim. Ia o meu amigo e a Piranha e, do lado, ia eu com a Tua-mãe. Deixávamos as duas na praça, entrávamos na venda e, aí, o meu amigo me perguntava, em voz alta:

-Cadê a Piranha?
-Está na praça com Tua-mãe.

Este toco passou a valer muito. Cheguei a viajar com ele, para não ficar sem Tua-mãe. Fui, uma vez, no cinema com ele. Levava para a escola. Saía de noite com ele. Fui na missa. Lavava no córrego. Eu e Tua-mãe éramos inseparáveis.

Até que minha mãe (não confundir com Tua-mãe) achou aquilo muito estranho e foi conversar com o seu Otacílio, da farmácia Nossa Senhora do Carmo, a única autoridade do terreno da medicina em toda a minha cidade. A farmácia, no beira do córrego, a poucos passos da minha casa seguindo a linha do trem, era o prédio mais bonito do lugar. Pintado de creme, tinha, no alto, em cima das três portas, um relevo com o nome do estabelecimento, e uma taça enrolada por uma cobra.

Seu Otacílio tinha o jeito capixaba de falar, aos tropeções, sem fôlego, engolindo sílabas, mastigando pontos finais, limpando os dentes com vírgulas. Foi categórico:

-Menino sozinho sozinho poucos amigos fica muito em casa preci companhia precisa precisa de companhia.

Minha mãe ainda contou:

-E nessa idade voltou a molhar a cama...

-Amigo tem que ter amigo brincar não pode ficar em casa conversando com toco.

Foi por causa dos conselhos dele que meu irmão mais velho, o mais velho de todos, que já era adulto, apareceu lá em casa com uma cachorrinha bem novinha, pretinha, com sobrancelhas cor de creme. A mãe dela era mistura de bassê com vira-lata e o pai, vira-lata puro. Então, ela era daquele jeito que até lembrava bassê. Dava para dizer que era bassê. Mas não era.

E se chamou Mimosa.

-Mimosa é nome de vaca.

-Mas vai ser Mimosa.

-Mas você já teve uma cachorra, quando você era bem pequeninho, que você também chamava de Mimosa.

-Vai ser Mimosa.

E foi Mimosa mesmo, uma das duas únicas cachorras do mundo com nome de vaca malhada. Foi por causa dela que esqueci de Tua-Mãe. Foi por causa dela também que deixei de vez de sair do quintal da minha casa. Acordava cedo, atravessava a neblina do quintal, tirava o pijama, pulava no córrego gelado, espirrava água em Mimosa e ia para a padaria, ainda de pijama e com os cabelos molhados. Depois, ia para a escola e, quando voltava, corria para o quintal dos fundos. Mimosa estava lá.

Nunca aconteceu nada de excepcional na vida dela. Não foi particularmente inteligente. Não sabia truques. Não deixava as visitas encantadas com seu jeito de ser. Não sabia caçar paca. Não me lembro, em todos os anos que passamos juntos, de nada que ela tenha feito que possa ser contado, narrado ou lembrado para sempre.

Só me lembro do domingo em que ela morreu, porque Mimosa estava cheirando a beira da rua e uma caminhonete passou por cima. Ela tentou ir embora do local do acidente, mas não conseguiu. Minha mãe ouviu o barulho do carro e correu até a porta. Gritou e voltou para dentro de casa. E ficou lá repetindo baixinho, andando de um lado para o outro na sala:

-Não quero ver não quero ver pelo amor de Deus que não sofra não sofra.

Meu pai foi até lá e apanhou Mimosa que, de longe, deu para ver que tentava morder meu pai, porque doía muito. Meu pai se afastou com ela sem dizer para onde ia. Era o último ano que eu ia passar no Espírito Santo, mas ainda não sabia disso, e só fiquei sentado na escada da frente da minha casa vendo meu pai se afastar levando Mimosa quebrada. E abaixei os olhos meio envergonhado quando a vizinha entrou correndo lá em casa para acudir a minha mãe, que chorava em cima da cama.

Mimosa nunca tomou banho de córrego comigo. Nunca pulou muros. Quando me acompanhava até a várzea onde pousavam os urubus, ia devagar porque tinha as pernas curtas e se cansava com facilidade. Nunca brigou nem nunca latiu para cobras. Nunca aprendeu nada. Nunca foi heróica. Nunca foi linda.

Mas foi o primeiro grande amor da minha vida.

13 comentários:

Anônimo disse...

Muito linda a história, agora a Mimosa fica no coração junto com a Malvina.Parabéns.

Anônimo disse...

Adorei a Mimosa!!!

Anônimo disse...

Ribondi, vc é surpreendente!
Aguardo seu Livro.

Anônimo disse...

Senhor Ribondi o seu conto me lembrou a primeira namorada de Bandeira, que sempre estava embaixo do fogão.
E estou já vendo coisas ou tinha aqui uma missiva falando de um cachorrinho galego? Eu vi!

Anônimo disse...

Ribondi, sua historinhas são do jeito especial de ser, de quem gosta de bichos e de escrever sobre eles.
Conterrâneo, fico muito feliz de ver você contando das terras capixabas. Lindo!
Mas, sabe, ainda acho mesmo que o livro tem mesmo que sair. Ué!
Né não?! Como compartilhar dessa historinhas com nossas riquezas, nossos familiares queridos, senão com o bom livro de papel?
Torço pra ele sair mesmo.
E, só não entendi porque alguns comentários sumiram... É que tenho o hábito de ver se o blogueiro deixou resposta, coisas assim...
Vai blogando! Sucesso aê!
Negão e você, Ribondi, já fazem parte do lindo mundo virtual, que é tão real e presente quanto o tudo o mais no nosso cotidiano.
Vem cá!
Num dá pra você contar pelo menos uma história do Negão?! Umazinha só! Sim... Porque não?!

Anônimo disse...

Ribondi, você é daqueles casos especiais em que o talento do escritor e a sensibilidade do homem se fazem admirar naturalmente.

Bela história de amor, belo estilo de contar.

Beijos! :)

Anônimo disse...

Senhor Ribondi que alívio, foi recauchutar mas existe, nada como checar as coisas.
Gostei dele, viu?

Ribondi disse...

Matilda,
Então, se tiver paciência, dá uma lidinha de novo, modifiquei coisas para ficar mais claro.
Me parecia que não dava para entender com quem eu estava falando. Você tinha entendido?

Anônimo disse...

Tinha sim, ainda não reli, mas era Deus, quem mais mandaria um animal para falar com o senhor, senhor Ribondi?
E sou paciente, vou ler novamente, com todo gosto.

Anônimo disse...

Sr. Ribondi
Cá está eu novamente embasbacada com suas histórias, ficaria o dia inteiro lendo-as sem me cansar. Adoro a sua maneira de historiar a vida e dar vida aos animais. Esta última Mimosa é linda, apesar de meio vira-lata. Ela foi o primeiro grande amor da sua vida e eu o segundo, né???? (risos). Eu não tropesso nas palavras não, viu?
Estarei lhe esperando hoje para a gente comemorar seu sucesso, tá????
Bjinhos

Anônimo disse...

Ei este último anônimo sou eu. Esqueci de colcar meu nome. Tropecei (hehehehehe)

Anônimo disse...

De novo não saiu meu nome, como pode ser. M A R I U C H A.

Anônimo disse...

Com dois "ss" às vezes sim, mas "ç", é meio dificil (risos).
Bjinhos