10.11.2005

Berinjelas



Eu já era grande, tinha crescido, encorpado. Tinha 22 anos, não era pouca coisa. E morava longe, muito longe, lá perto da Côte d’Azur, num casarão enorme feito de pedra.

Eu já tinha crescido, estudava coisas raras e, talvez, preciosas, na Université de Provence; tinha acompanhado, de perto, uma tomada de poder por militares no Brasil, um golpe de Estado no Chile, uma revolução cravejada de flores em Portugal, e lá estava eu, outra vez, na roça.

Uma roça ao lado da Côte d’Azur, mas sem cidade, sem vila, sem endereço. Quem quisesse me visitar, tinha que conhecer duas referências essenciais, que eram a Montanha Sainte-Victoire e o Château Noir, habitado pelos descendentes do primeiro dono, o Cézanne, que, por sinal, gostava de pintar a Sainte-Victoire e o Pont des Trois Sautets, que era por onde eu passava, de mobilete, quando ia até a cidade.

Mas esses conhecimentos não bastavam e, por isso, tinha o mapa desenhado à mão, com texto elucidativo:

“Como quem vai para Saint-Tropez, siga a Route Nationale 96 até o restaurante Les Cigales. A casa fica à esquerda de quem vai, perto da estrada, e tem uma parede enorme pintada com um anúncio. Um garçom levando uma bandeja com duas taças e uma garrafa e, em cima, a frase: Saint-Raphaël – L’apéritif de France.”

Dentro da casa anciã, imensa, de três andares, que tinha nome de batismo, e era conhecida como La Bégude, ou A Hospedaria, em bom langue d’oc, morávamos um austríaco baixinho, que me ensinou o primeiro prato que cozinhei, um goulash vermelho e denso; uma sul-africana nervosa e suicida, que, para se aliviar, quebrava os móveis da casa; uma alemã alta, muito alta, de 1,90, de franja e rabo-de-cavalo, meiga como uma anã órfã; Romário, um brasileiro filho de italianos e que tinha recebido esse nome em homenagem às capitais dos dois países, sendo Roma lá e Rio aqui; um gato preto de nome Robson – que era chamado de Rôb-zôn pelos habitantes da casa de língua alemã, de Róbisson pelos brasileiros e de Robson mesmo pela sul-africana, e que, por essa variedade lingüística que ele provocava, era também tratado pelo título de Le bateau des amis, ou Barco dos Amigos. Ou Friendship. Abrindo uma porta da cozinha que dava diretamente no estábulo, vivia Zéphyr, o cavalo virginalmente branco. E tinha eu também.

Zéphyr era, de todos os habitantes da Bégude e do vizinho Château Noir, o território dos Cézannes, o mais calmo, o mais pacífico, o mais suave e o mais belo. Quando não estava no estábulo, gostava de caminhar, lento e empinado, como se fosse artista de circo, no campo que rodeava a casa, coberto das flores coquelicots, vermelhíssimas e frágeis, que eu não sabia que existiam quando me mudei para lá. Só na primeira primavera é que me dei conta de que não morava apenas na roça. Morava mesmo era dentro de mato florido.

Zéphyr sabia trotar, conhecia a arte de enfiar a cabeça pela porta entre o estábulo e a cozinha, sabia relinchar demoradamente, como se entoasse cantigas antigas, tão antigas quanto a Bégude, capazes de atrair unicórnios. E sabia me levar, e trazer de volta, sem voz de comando, até Fuveau, a cidadezinha miúda, feiosa e sem importância, mas com a grande qualidade de ter padaria, açougue, bar, mercearia e correios. Era nas costas dele, gigantesco, que eu entrava em Fuveau e desfilava por todas as ruas, nenhuma reta, todas íngremes e montanhosas, da cidadezinha sem eira nem beira.

Ia à feira em Aix-en-Provence de mobilete, passando pelo Pont des Trois Sautets, a única paisagem da pintura impressionista que, ademais da Sainte-Victoire, conheço com intimidade e afeto. Às três da tarde, recolhia, de graça, tomates levemente amassados, alfaces de folhas um pouco enferrujadas, cebolas relativamente moles, dentes caídos das tranças de alho, batatas quase perfeitas, abobrinhas-italianas sem talo e berinjelas feridas.

Chegava em casa, punha os legumes em cima da pia e entrava no estábulo com o caixote cheio de berinjelas. Zéphyr levantava o rabo, empinava o trote, relinchava com os beiços soltos, sacudia a cabeça e se aproximava. Uma a uma, eu oferecia as berinjelas, que ele apanhava com os dentes à mostra, o pescoço espichado e os olhos doces como a cor deles, que era mel.

A berinjela era mais estranha que viver entre os franceses. Eu segurava aquele enorme ovo roxo, quase sem cheiro e sem aroma, e entregava a Zéphyr, sem mesmo acreditar que ele pudesse gostar de coisa tão bizarra. Ele, cuidadosamente, com os dentes, abria o fruto como quem desembrulha uma preciosidade oriental. Os olhos dele, enormes, silenciosos, doces, penetrantes, calmos, atentos, iam da comida deixada no chão até as minhas mãos.

Me agachei perto. Zéphyr engolia nacos de berinjela, a fruta desconhecida, a estranheza mediterrânea. Olhei então para as coxas dele, o peito, as pernas, o pescoço, o pêlo branco. Tudo era bonito. Pela beleza dele, levei uma berinjela ao nariz e cheirei. Era um aroma que parecia vir de longe, de grama muito úmida, o primeiro cheiro roxo que eu sentia entrar em meu corpo.

Olhei para Zéphyr que, com a cabeça e a boca viradas para a berinjela, me olhava também, com o cantos dos olhos. Por causa da língua de Zéphyr, que se espichava entre os dentes, lambi a berinjela, ali mesmo. Ele relinchou. Depois de olhar para a boca dele, mordi, e meus dentes entraram, ainda com insegurança, na carne macia e crua do fruto de Zéphyr. Depois, me sentei no chão do estábulo e esperei, para que o prazer do cavalo que comia me ensinasse a gostar do que eu não conhecia.

Voltei para a cozinha. Cortei tomates, cebolas, aborbinhas-italianas, alhos. Parei. Olhei para as berinjelas. Cortei também. Reguei com azeite de oliva. Pus sal. Abri o fogo. Era o cheiro do meu fogão que fazia Zéphyr relinchar e bater com os cascos das patas no chão.

Pus a comida num prato fundo, enchi um copo com vinho, cortei uma fatia de pão e voltei para o estábulo. Zéphyr balançava a cabeça, enquanto eu comia a ratatouille perfumada com thyn e romarin.

Cresci mais ainda, encorpei mais ainda, e sei que todas as berinjelas do mundo são invenções e crias de Zéphyr, o meu cavalo branco rodeado de coquelicots ao pé da Sainte-Victoire. É ele, o meu Zéfiro, que traz esse cheiro bom e manso de coisas mediterrâneas, de azeites e alhos.

E até quando voltei, 30 anos depois, e que ninguém estava mais lá, as berinjelas me faziam pensar em coisas como cheiro, grama, tempo, galopes, calmarias, suor. Parei o carro, muitos anos depois, na Route Nationale 96 e, no lugar da Bégude, havia casas modernas, de bom-gosto facilmente detectável, impessoal e antipático, cercadas por um muro de condomínio. Escrito em cima do portão de entrada, estava o nome da minha casa de antigamente.

Do outro lado da estrada, o restaurante Les Cigales tinha se tornado ruínas modernas, de vidros quebrados. No muro branco, uma frase, escrita com letras de tinta preta, gritava a quem lesse ou, mais que tudo, a quem pudesse entender. Alguém, alguém como o austríaco cozinheiro, como a sul-africana sofrida e doida, como a alemã gigante doce como uma anã, havia deixado o recado para quando eu chegasse por lá.

“C’est tout fini, Alexandre!”

O aviso, “Acabou-se tudo, Alexandre!”, podia ser grafite sem rumo, podia ser aviso de fim de namoro para algum Alexandre. E podia ser, tinha que ser, para mim. Eu senti com dor no peito que era para mim. Com o aperto incontrolável da garganta, eu sabia que alguém, algum deles, me avisava que nós, nós éramos o passado de um dia lá longe, perto da Côte d’Azur.

Entrei num restaurante em Aix-en-Provence. Não olhei cardápio. Pedi ratatouille. Na primeira mordida, senti o sabor das aubergines roxas e montei em Zéphyr. Na segunda, alisei o pescoço poderoso dele. Na terceira, começamos a marchar lentamente e, a partir da quarta, desembestávamos feitos loucos, felizes, cheios de vida, pelo campo de coquelicots.

-Vai, Zéphyr, vai!! Não me deixe pra trás, nunca!

9 comentários:

gik disse...

Olha só, Ribondi, vamos combinar uma coisa, tá bom? Pare de escrever esses textos lindos que eu paro de chorar aqui, certo?
Está insuportavelmente acolhedor ler vc., que coisa ;C)

Anônimo disse...

Obrigado pela viagem,era só disso que eu precisava depois de um dia chato.

Anônimo disse...

Faço minhas as palavras da Gin, salvo quanto ao pedido: não pare de escrever esses textos lindos, Ribondi!

Grande abraço, meu mais novo preferido escritor.

Anônimo disse...

Você pega a gente pela mão e coloca como quem não quer nada na garupa, quando a gente se dá conta está vivenciando essas experiências de sabores e gestos, de sensações e sentimentos.
Foi muito bom viajar com você e o Zéphyr.

Teresa Amorim disse...

Gostei, gostei muito. Mais uma vez me emocionei com as suas histórias. A sua vida é repleta de experiências bonitas e marcantes. Não pare de contá-las aqui. Prometo que quando vc publicar o seu livro eu vou comprar, mesmo que já tenha lido tudo aqui.
Bjs

Anônimo disse...

Oi, Ribondi! Quantos aromas! A medida que lia sua crônica fiquei
inebriada com o perfume dos ingredientes. Além do mais, parece-me que o sol banhava tudo e salpicava de cores toda a paisagem.
Proust teve as madeleines, você as aubergines, e nós,sempre teremos esta sua singela crônica para recordamos de um certo lugar
"perto da Côte D'Azur".

Anônimo disse...

Angelina,

Gostei muito dessa comparação das madeleines do Proust com as aubergines do Zéphyr.

Teresa,
Você sabe que você anda no meu coração, de tamancos portugueses.

Anônimo disse...

Caro Ribondi, sou nova no seu pedaço. Mas não posso deixar de me solidarizar com você. Mesmo sem veleidades literárias, também tenho lá minha paixão pela Provence e seus cheiros, como você poderá comprovar se visitar este post: (http://rioparissemescalas.zip.net/arch2005-09-01_2005-09-30.html). Beijoca.

maria alice disse...

Angelina disse tudo!
O ritmo da vida também me encanta, que delícia ter tempo para ir fazer compras a cavalo. Uma curiosidade, como é a sela usada na França?
Foi bom ter lido esta cronica depois da do peixinho, refrescou a alma.
bisous