10.22.2005

Indagações sobre o camelo




Chego, pelas 8 da noite, e o Aeroporto de Bagdá é uma grande feira. Mulheres cobertas de pano; homens que, pela altura da voz, parecem gritar pregões; crianças deitadas em malas, caixas, embrulhos; galinhas, cabras; ocidentais perdidos; melancias, tâmaras.

Caminho até a calçada e entro no carro que me espera. No vidro traseiro, o lado direito tem um furo redondo, bem marcado, de uma bala. Escolho, então, o lado esquerdo, mas o motorista, com fiapos de inglês, me avisa que, como já haviam acertado a direita, irão, agora, mirar a esquerda. Aceito a ponderação dele e mudo de lugar.

O carro sai rumo à cidade. Meu coração, acelerado. Minha boca anseia por sabores. Meu nariz, por cheiros. Meus olhos, loucos por paisagens e corpos. Entro em Bagdá, a cidade com nome que tem tradução: “presente de Deus”.

Na manhã seguinte, saio do hotel. 40 graus. Meus olhos giram, enlouquecidos. Sol. Areia. O rio Tigre ladeado por terras baixas. Tamareiras. Mais tamareiras. Milhares de tamareiras. Estou cercado delas. Muros. Chás. Laranjas. Uma loja de melancias. Risos. Gritos. Tiros. Casas derrubadas. Guerra do Golfo. Soldados. Sorrisos. O som doce da língua de Alá. Homens que andam de mãos dadas. Bagdá, linda.

Entro numa rua, decidido a me perder. O calor escorre por meu corpo. Cheiro de carne. Cheiro de urina. Ouro e prata na vitrine. Passo em frente a um prédio. Na varanda do terceiro andar, um camelo. Uma mulher coberta dos pés à cabeça dirige um carro. Homens se beijam no rosto. Crianças correm.

Um camelo no terceiro andar?

Volto.

Paro na calçada em frente ao prédio. Um camelo na varanda do terceiro andar. Os olhos vesgos e soberbos, os maxilares desencontrados. O pescoço longo se estica para lá e para cá. Vasculha a cidade.

Sento-me no bar em frente. Peço chá. Os homens de Bagdá sorriem. As mulheres, não sei. Estão escondidas como pássaros em gaiola coberta por pano preto.

O camelo continua na varanda. O calor aumenta. O chá refresca. Pergunto, a mim mesmo, o que o camelo faz ali. Subiu como? Empurrado escada acima pelos homens da casa? Para que serve um camelo no terceiro andar da cidade dada por Deus? Ele gira a cabeça para o rio Tigre. Acompanho o olhar dele: tamareiras.

A guerra arrebenta tudo. Penso no camelo. Desceu as escadas e se salvou? Caminhou lento, indiferente e elegante pelas ruas de Bagdá? Para ele, o que é o céu quando explode? Um camelo em pânico, nunca vi. Ninguém leva susto no deserto.

Chego em Copacabana. Do hotel, ligo para uma amiga e digo que venha. Pouco tempo depois, Cora, a amiga, chega com uma valise e se instala. Na varanda, vemos o prédio em frente, do outro lado da rua. No quinto andar, uma mulher sozinha, sentada no sofá folheia uma revista. Sobre sua cabeça, no andar de cima, no meio da sala do apartamento, uma kombi. No sétimo andar, dois homens conversam na janela. Talvez olhem para nós.

Uma kombi no sexto andar?

Voltamos o olhar para lá.

-Você viu?

-Vi.

-Em Bagdá, tinha um camelo no terceiro andar.

-Mas um camelo se desenvolve. Vai ver, subiu bebê e cresceu lá em cima. Agora, uma kombi?

-Talvez desmontada, peça por peça?

-Acho pouco provável. E, depois, para quê?

A mulher, embaixo, ainda lê a revista. Os homens, em cima, ainda olham pela janela. A kombi continua no mesmo lugar, no centro da sala.

Olho para o resto da cidade. Mulheres de biquíni. Homens que, pela altura da voz, parecem gritar pregões. Crianças dormem nas calçadas, em cima de caixas de papelão. Uma loja de sucos de frutas. Tiros. Meninos pela rua. Camelôs. O mar. 40 graus. As favelas. Risos. Soldados. Abacaxis. Mangas. Homens que passam abraçados. Gargalhadas. O som doce da língua de Deus. Rio de Janeiro, lindo.

10 comentários:

leila disse...

eita que esse tá bom demais:)

Anônimo disse...

Tão diferentes, tão iguais, é a guerra, são os tiros...

Anônimo disse...

Qualquer semelhança...

gik disse...

Dizem que o mais difícil é camelo passar na ponta de uma agulha, né? Subir escadas já é outro barato.

...não deve ser mera coincidência, Valerio...

:c))

Anônimo disse...

Meu pai, o falecido humorista Don Rossé Cavaca, tinha um respeito especial pelos camelos. Em seu livro " Um Riso em Decúbito", de 1960, a frase que consta da capa é: " No oitavo dia de jornada um camelo riu como gente, mas conseguiu manter sua dignidade".

Anônimo disse...

:)

Anônimo disse...

Claudia, você é filha daquela figura maravilhosa?
Dei muita risada com êle, me lembro particularmente do dia em que pedia esmola na rua com uma caixa registradora.
Acho que era camera indiscreta.
Genial!

Cora disse...

:-))))

(Você está encontrando imagens maravilhosas para as histórias! O máximo: claro.)

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

Ih, né nada disso postado acima! tô aprendendo colocação de link e deu nisso!!
Desculpinhas...