10.28.2005

Catherine em Paris




Catherine se transformava em um gato. Aos poucos, ela pegava o jeito, a maneira de andar, o olhar. Isto a gente, Chris, Jean-Paul e eu, ia percebendo dia após dia.

Ela chegava. Com os cabelos pretos e muito lisos, cortados rente na altura das orelhas, como se fosse um capacete de fios macios, que se moviam quando ela olhava pela janela, ou quando virava a cabeça para soltar a fumaça do cigarro. Entrava, não falava, se sentava e ficava ali, com os olhos grandes e abertos. Ou então se encostava no sofá e dormia, com calma, sem ruídos.

Havia quem dissesse que Catherine não tinha o que falar. Até diziam que não era uma mulher brilhante e que, por isso, se calava. Mas, na verdade, ela se tornava um gato, não qualquer um, mas o gato que vivia com ela e que ia junto para todos os lugares, dentro de um cesto de palha onde também estavam guardados o maço de cigarros, a caixa de fósforos, as imensas agulhas de madeira para tricotar, o novelo de lã, o batom, o lápis para sobrancelhas e os cartões-postais que, em momento de tédio, ou de inspiração súbita, ela mandava para os amigos com alguma mensagem curta escrita no verso.

O gato da Catherine saía pouco do cesto. Dele, a gente conhecia os olhos, as orelhas e os pêlos retos do focinho, que eram as partes que ele exibia, quando queria acompanhar as conversas. Tinha seus motivos: um dia, meses antes, estava investigando o apartamento de terceiro andar, numa rua estreita perto de La Bastille, onde vivia, quando se encantou com o pedaço bem recortado do céu grudado na janela e foi lá para ver.

Sentou-se no parapeito, olhou, cheirou, enrijeceu os pêlos do focinho, estendeu as unhas afiadas e tentou rasgar o céu. As patas escorregaram e ele caiu, em vôo livre, até o chão cimentado do pátio interno. A partir daí, manco de uma perna, e com o rabo torto, passou a ter pavor de alturas e de espaços abertos. Preferia o cesto.

O silêncio de Catherine também vinha da solidão. Não era solidão escolhida. Catherine e a mãe tomaram rumos diferentes no primeiro dia: uma nasceu e a outra, exausta, morreu. O pai foi interrompido por uma aneurisma e ela, com 15 anos, herdeira do apartamento no terceiro andar da rua estreita, sem avós, sem tios, aprendeu a viver sozinha.

Catherine era um gato lindo. Quando sentia fome de carinho, de amor, de afagos, ela se enroscava nos nossos corpos, com doçura, suavidade. E ficava ali, de olhos grandes, com um sorriso feito faca afiada que cortava seus lábios em dois. Seu jeito descaradamente abusado de pedir carinho, amor e afagos era uma maneira de sobreviver.

Passamos, uma noite, Chris e eu, na casa dela para, depois, irmos os três ao cinema. Ela não estava. Deixamos um bilhete na porta e, duas horas depois, voltamos lá. Como ela ainda não tinha voltado, esperamos sentados na escada. Tarde da noite, desistimos, mas, quando íamos pela rua, a Chris resolveu voltar. Eu fui para casa.

Chris esperou até as seis da manhã. Saiu, comeu no café em frente, e voltou. Eram oito e meia. Chamou a polícia que veio e, com um soco só, abriu a porta.

O gato estava sentado no centro da sala, como uma esfinge do rabo torto. Os olhos imensos, absolutamente redondos, encaravam. As unhas estavam apontadas, ameaçadoras. Os miados, ritmados, longos, eram doloridos, como se falassem dos infernos da alma. E, debaixo do gato, estava o corpo estirado, frio, inerte, pálido, lindo, de Catherine.

Ela não tinha herdado apenas o apartamento do pai. Ele também tinha deixado o aneurisma para a filha, que, com 22 anos, caiu no chão com o cérebro explodido.

Ninguém se aproximava. O gato, sem se mover de onde estava, sobre o corpo, não permitia que incomodassem a Catherine. Apenas girava a cabeça para acompanhar os passos que circulavam pelo apartamento. Depois, lambia as patas e encostava a cabeça no peito da morta.

Um dos policiais conseguiu pegar o gato. Ele se contorceu, unhou, miou, usou as patas da frente e as patas de trás para se livrar. Mordeu, escapou e se escondeu debaixo da cômoda da sala. Com os olhos grandes e desesperados, viu o corpo ser examinado, tocado e, finalmente, retirado.

Quando a polícia tentava passar pela porta do apartamento e começar a descer as escadas, o gato pulou. Quis se abraçar ao corpo da Catherine ou quis pedir que ela não se fosse. Mas foi afastado e voltou para dentro de casa. Da janela viu quando passaram pelo pátio.

E, então, invadido por um amor incontrolável, por uma ameaça de saudade que ele não ia nunca poder suportar, esqueceu-se da morna segurança do cesto de palha, perdeu o medo dos espaços abertos, desconheceu os perigos do ar, e pulou de uma vez: o vôo de encontro a Catherine, em outra Paris.

Bateu no cimento e ficou lá. Depois, Chris pegou o gato e saiu, para tratar dos dois enterros.

6 comentários:

Anônimo disse...

Esse conto nos dá a dimensão do amor dos animais.Os humanos não chegam nem perto.Triste e bela história.

Anônimo disse...

E os dois devem estar na outra Paris, ele no cesto de palha, ela tricotando com suas agulhas de madeira, silenciosos e, espero eu, felizes juntos.
E, Maria Helena, os humanos amam com imensa dimensão sim, com muita grandeza, muito carinho, muita doação.
Os humanos são maravilhosos.
Isso de se passar a dizer que só bicho presta está me fazendo até mal.
O bicho homem, o animal homem é maravilhoso, bom, ama, se doa, cuida e tudo mais também, certo?

Anônimo disse...

E eu fiz de novo, assinei com o nome do blog, :).

maria alice disse...

A ilustração combinou tanto com o post..
Ambos tristes e delicados.
É sempre muito bom passar por aqui.

Jussara disse...

Lindo e triste.

Marian - Lisboa - Portugal disse...

Bela narrativa...