10.14.2005

A aventura dela



Era uma bela mesa, e sempre que Romário, o outro brasileiro, e eu passávamos por lá, um de nós comentava:

-Reparou?

Quem ainda não tem mesa em casa, repara todas. E esta, era uma bela mesa redonda, com abas dobráveis, o que podia fazer dela retangular, se fosse o caso. Perfeita para o quarto na Bégude, a casa de campo onde a gente morava, lá perto da Côte d’Azur.

Até que, um dia, decidimos. A rua já estava escura, nas primeiras horas da noite. A casa era a última, na parte mais alta da alameda que subia desde o centro da cidade e se perdia no bosque provençal, que cheira sempre a ervas e a azeitonas pretas.

Paramos o carro, um pouco antes da casa. Era um deux chevaux cor-de-abóbora, que já tinha subido a rua com os faróis cuidadosamente apagados, na tentativa de tornar discreto um carro que, pela cor e pela própria natureza, chamava a atenção por onde passasse.

Com as mãos presas nos dedos entrelaçados, Romário fez um apoio para eu subir e observar o lado de lá. A mesa estava no mesmo lugar, num canto do terreno enorme em volta da casa de dois andares, que, naquela hora, tinha apenas uma luz acesa. Perto da mesa redonda, de pés e bordas da tábua trabalhados em relevo, estava o resto dos entulhos: duas caixas lacradas, um tapete velho enrolado, uma televisão quebrada, uma mala de fecho enferrujado.

Pulei. Romário, mais ágil, pulou depois, sem precisar de ajuda. Andamos no silêncio do terreno que já tinha sido estudado antes, quando a gente passava por ali, de dia. Cada um de um lado, começamos a levantar a mesa, que seria colocada em cima do muro, enquanto nós pulássemos para fora.

Um barulho pesado, mas veloz, de pisadas firmes, começou a ser ouvido na escuridão do quintal. Paramos, ainda segurando a mesa. O barulho se aproximou, sem que nem eu nem ele conseguíssemos enxergar.

O barulho abriu a boca e fechou quando encontrou as carnes do alto da coxas do Romário. Um cachorro grande, marrom, de dentes afiados, tinha sentido o cheiro dos invasores. Romário não gritou mas, com a mão, tentava se livrar do animal. No começo, eu observava, feito árbitro de luta-livre, telecatch, judô. Depois, larguei a mesa e dei pontapés no ar. O cão sentiu o primeiro chute, rosnou e travou mais ainda os dentes. Romário parecia que ia começar a gritar.

Puxei o cachorro pelo rabo. Ele era forte, resistia, estava pronto para uma verdadeira luta a três. Consegui segurar um das orelhas dele e o cão, mais ameaçador ainda, balançava a cabeça, sem largar as carnes do Romário, para se livrar da minha mão que segurava com firmeza. Ele, então, rosnou mais alto, abriu a boca e Romário subiu na mesa, de onde dava pontapés sem rumo, falando baixo:

-Sai, cachorro. Sai. Va-t-en, chien de merde.

O cachorro provavelmente não falava nenhuma das duas línguas e passou a me encostar contra o muro. Mostrava os dentes. Dei dois passos para trás. Ele avançou mais. Pulou. Me desviei e, quando ele passou no ar, abri a boca e mordi a anca do bicho. Com força. Quando caiu no chão, me olhou por poucos segundos, até entender o que tinha acabado de acontecer e, aí, fugiu, ganindo como filhotinho assustado, à procura da barra da saia da dona.

Desistimos da mesa. Eu já estava com uma perna em cima do muro, quando todas as luzes do quintal se acenderam. Na varanda do segundo andar da casa, uma mulher tentava enxergar o que acontecia perto do muro que dava para a rua. E, com a voz aguda e quase estridente das francesas, cumprimentou daquele jeito estranho que eles têm de dizer bom-dia mesmo quando já é de noite:

-Bonjour!

Nós dois, em pé em cima da mesa, feitos náufragos agarrados a um pedaço de navio, ficamos calados. Ela desceu a escada em caracol e se aproximou, acompanhada pelo cachorro, que, imenso, se escondia atrás das pernas dela. Quando chegou bem perto, perguntou:

-C’est qui?

Quem que a gente era? Mas isso eu não dizer nunca. E, por isso, continuamos em pé em cima da mesa. Ela insistiu na pergunta, e havia um sorriso no rosto dela que dava vontade de responder. Mas dizer o quê? Que a gente era ladrão de mesa? Ela voltou a fazer a mesma pergunta, pela terceira vez. E não fechava o sorriso.

-É que a gente estava dando uma olhada na mesa. É da senhora?

-E esse cachorro aí me mordeu.

Ela, então, parou de sorrir.

-Mordeu? Onde?

Romário se virou e mostrou o traseiro, furado em vários pontos pelos dentes do bicho bravo que, agora, estava mansinho e amedrontado. Ela se alarmou. Pediu que descêssemos. E ainda precisou de um bom tempo para nos convencer a entrar na sua casa.

Lá dentro, mostrou o atestado de vacina do animal, quando voltou do quarto com mercúrio-cromo e algodão. Tive coragem de dizer que tinha mordido o cachorro dela, também. Ela deu uma gargalhada alta, ampla, saborosa. Procuramos no pêlo dele e lá estava a marca dos meus dentes. Da cozinha, vinha um cheiro delicioso, terno, de batatas assadas com muita manteiga e ervas.

A gentileza talvez seja uma grande arma de defesa. Ela sorria com ternura e seus olhos azuis pareciam invejar, com prazer, os dois rapazes estrangeiros que tinham pulado o muro da casa dela para roubar uma mesa. Por isso a casa de dois andares, no alto da rua que ia dar no bosque provençal, onde já corria o vento frio das primeiras noites de outono, estava vazia. Por isso é que as batatas ao forno eram só para uma pessoa e que as uvas em cima da mesa pareciam abandonadas.

Ela sorriu mais. Tinha a doçura de quem sonha. Perguntou qual era o nosso país. Seus olhos brilharam com a resposta. Até o cachorro olhava com desejo e saudade. Haviam vivido dias mais agitados, apesar de serem ainda jovens, os dois.

Ela acompanhou a gente até o muro. Ajudou a colocar a mesa em cima do carro. Deu opinião sobre como amarrar bem, para não cair durante a viagem até a Bégude. Fomos embora e, lá embaixo, no fim da rua, na entrada da cidade, a polícia exigiu que Romário parasse o carro. Depois de mais de 10 minutos de conversa truncada e errada, subimos todos de volta para a casa da mulher.

Ela abandonou o prato na mesa e, mais uma vez, veio até o portão. Quando viu a polícia, comentou, quase gargalhando, como quem não controla a alegria:

-Hoje não é o nosso dia de sorte, não é verdade?

O dia também já era dela. Tinha se apossado da aventura. Talvez fosse dormir tranqüila. Quando finalmente fomos embora, para nunca mais nos vermos, ela ficou lá em pé no portão, acenando com a mão.

9 comentários:

Anônimo disse...

Senhor Ribondi, o senhor mordeu o cachorro?
Estou aqui dando gargalhadas.
Delicioso ler isso, isso e a descrição do cheiro vindo da casa.

leila disse...

você fez pouco da senhora da casa. talvez nem fosse nada disso. ela poderia ser uma traficante internacional em seu refugio insuspeitado e secreto. ou mais um monte de coisas.

Anônimo disse...

Menino, nem sabia que morder ancas de cachorro era tão eficaz *rs
Muito boa a estória.

Anônimo disse...

Dois filas?
Bom, pai é assim vira fera se avançam nos flhos.
E dois contra um é covardia, tadinho do Lula.

Anônimo disse...

A solidão faz cada coisa, hein!!! Deixei meu primeiro comentário no post sobre as beringelas. Parabéns pela idéia do blog. Beijoca.

Anônimo disse...

Amei! :)

Anônimo disse...

que delicia de conto!
Ribchen,como vc e´talentoso pra contar a vida.

Jussara disse...

Um conto mais bonito que o outro. Será que não dá pra dividir um pouquinho desse talento comigo não?

Teresa Amorim disse...

Queria ter visto vc morder o cachorro..hehehe.

Adorei!