10.14.2005

Baseado em fatos reais


Meu caro, meu prezado e meu querido,

A indecisão na hora de escolher a melhor maneira de me dirigir a você é natural, já que nunca me havia passado pela cabeça que chegaria o dia de lhe enviar uma carta. Ou missiva. Ou correspondência. Ou seria melhor usar trombetas celestiais?

De qualquer jeito, e antes de mais nada, tenho que esclarecer que, de maneira geral, evito dizer “baseado em fatos reais”, já que, para mim, baseado em fatos reais é só uma coisa: cigarro de maconha enrolado em folha de jornal. Mas o que vou dizer aconteceu de verdade, e você tem a ver com isso.

A primeira vez que fui a Santiago de Compostela, a minha ida não tinha nada a ver com você, pessoalmente. Tinha mais a ver com curiosidade, e também porque eu tinha lido o alemão Goethe, que acreditava que “a Europa se fez pelo caminho de Santiago” e que o cristianismo era “a língua materna” do continente.

Cheguei e comecei a caminhar pelas ruas. Fé? Nem fé nem dúvida, que é uma maneira de ter fé. O que eu sentia era indiferença. Mal tinha descido do carro, ia caminhando pelas ruas cheias de gente quando ouvi um latido, que vinha de um pouco longe, de um pátio coberto. Um cachorro pequeno, comprido, bem tratado, de pêlo limpo, latia. Pulou sobre os bancos do pátio, atravessou o gramado, parou na calçada do outro lado da rua onde eu caminhava e latiu de novo. Veio com passos miúdos entre os carros que passavam de um lado para o outro, se desviou, parou para esperar, correu e chegou. Sentou-se em minha frente na calçada e me olhou.

Como ainda era muito cedo, coisa como seis da manhã, achei mesmo que ele estava com fome, depois de ter passado a noite na rua, longe de casa. Estendi a mão com um pedaço de queijo, mas ele só cheirou e não quis. Isso sempre me irrita, quando os cães e os gatos cheiram e não querem. Porque se a gente tivesse confiança absoluta neles, comia o que eles recusaram. Mas, não. Jogamos fora.

Ele ficou ainda sentado me olhando. Retomei meu caminho. Ele não deixou. Correu até a minha frente e sentou-se novamente. Nem abanava o rabo. Só me olhava, sem sorrir muito. Cachorro quando olha nos olhos quer desafiar e comprar briga. Mas ele só queria mesmo era olhar fundo nos olhos.

Latiu e mostrou que queria atravessar a rua. Você sabe que eu nunca fui dessas coisas, de achar que cachorro quer falar com estranhos, mas fui atrás. Eu não tinha nada que fazer, São Tiago não significava nada para mim. Você também não. Então, fui.

Ele passou por ruas afuniladas, por becos, por largos que, num contra-senso arquitetônico, eram estreitos. E chegou ao pátio da grande igreja de Santiago de Compostela.

A visão é surpreendente. Num pátio amplo, majestoso, ensolarado, está a igreja mais imponente e mais altaneira da Europa inteira. Isso tudo era para você? O cristianismo no fim do mundo, o milagre de Santo Iago na Finis Terra. Lá, para os romanos, o mundo acabava. Lá, para o Vaticano, a fé também chegava.

O cachorro subiu as escadas que vão do pátio até a porta principal e parou. Olhou para mim. Subi. Ele latiu. Traduzi os latidos e, então, entrei. Cedo assim, estava vazia. Escura. Solene. Messiânica. Pesada. Ruim. Olhei para o teto, percorri as naves, as alas, o túmulo do santo, os altares e o altar-mor. Cansei. Que prazer podia haver naquela imensidão? Eu ainda preferia o Louvre, por ser menos monotemático, por ter mais coisas que a arte em louvor à fé. E desde quando você era messiânico? Logo você que, para desespero nosso, nunca quis provar nada, nem mesmo a própria existência. Além disso, alguns bancos também exibem poder em prédios grandiosos. Os shoppings fazem a mesma coisa. Saí para ir embora, para ir até um bar, tomar café.

Mas o cachorro, lá na porta, não deixou. A cada passo que eu dava em direção aos degraus da escada, ele, baixinho, comprido, de passos miúdos, corria e se sentava na minha frente, com os olhos fixos em mim. Ri dele. Por causa do riso, ele latiu. Latiu mas também, com impaciência, olhou várias vezes para trás, como se esperasse alguém que já era para estar ali e que se demorasse mais, eu ia embora.

Foi aí que apareceu, vinda das ruas estreitas, uma mulher. Atravessou o pátio majestoso, subiu as escadas, e sem olhar para os lados, entrou na igreja. Era uma mulher com menos de 30 anos. Vestia calças compridas largas, feitas de um pano que, além de azul-claro, brilhava com fios dourados. Tinha também um suéter branco e uma écharpe azul. Era muito bonita, e você sabe como as pessoas bonitas me impressionam. Cada uma delas é como se fosse a definitiva. Como se fosse a mensageira das boas novas que modificarão tudo na minha vida. Tão bonita, que o fato de ser careca, não ter um só fio na cabeça, não alterava em nada a beleza.

Olhei bem quando ela passou por mim. Entrou na igreja e fui atrás, pelo prazer de seguir a beleza. Sem escolher lugar, ela se ajoelhou, de mãos postas e olhos fechados. Fiquei em pé logo atrás.

Mas, aí sim, foi aí que aconteceu essa coisa curiosa, que queria contar desde o começo. Talvez eu deveria dizer que foi aí que aconteceu um milagre, mas não quero parecer exagerado. De qualquer jeito, eu, em pé ao lado dela ajoelhada, reparei que a igreja, mesmo escura, taciturna, pesada, tinha umas janelas por onde entravam fiapos da luz do sol e que esses fiapos escorriam pelo chão, pelas paredes, pelas mãos dela.

E reparei também que o silêncio tinha uma algazarra de sons inaudíveis e que é assim que melhor se ouve, com sons inaudíveis. E entendi que a grandeza da igreja não tinha nada a ver com você. E senti que o meu coração batia com força enquanto olhava para aquela moça que, de mãos postas, agradecia, enquanto outro fiapo de luz vinha alisar a cabeça que tinha perdido todos os fios de cabelo com a crueldade da quimioterapia curativa, que também tinha feito com que ela ficasse de olhos fundos e cansados, marcados por olheiras imensas.


Cheguei bem devagar e me ajoelhei do lado dela. A moça se virou para mim rapidamente e voltou a fechar os olhos. Fiz a mesma coisa. Se rezei? Acredito que sim. Para falar a verdade, rezei sem dizer uma palavra sequer. Então era assim, você estava ali. Esqueci a igreja inteira e compreendi que alguns milagres são verdadeiros complôs: era por você que o cachorro galego tinha me procurado no meio da rua, me levado até a igreja e me feito esperar pela moça careca.

Era para estar ao seu lado, era para te olhar nos olhos, era para te encarar, era para te desafiar. Lentamente, como se o silêncio me dissesse, eu me senti parte daquela mulher bonita, e me senti parte sua. Apreciei os raios de sol que entravam pelas janelas e deslizavam sem rumo pelo chão da vida. Respirei como se respirar fosse a maneira de mostrar e provar e anunciar que eu e você existimos e respiramos juntos.

Mais silencioso que a igreja toda, eu me levantei, sem me despedir da mulher, porque ela me acompanharia para sempre, e fui para fora. O cachorro estava lá. Sentado, me olhava. Abanou o rabo que se arrastou no chão do alto da escadaria. Latiu duas vezes. E só então se virou, desceu os degraus aos saltos, porque era muito baixinho, atravessou o pátio inteiro com passos ligeiros de quem tem mais coisas para fazer e sumiu na rua estreita. Foi sem olhar para trás.

Então, era por você que eu estava ali. A indiferença que eu sentia ao chegar em Santiago de Compostela já tinha acabado. Agora, eu estava apenas em plena dúvida, que é o começo da fé. Porque é mentira quando dizem que a fé é cega. Não é. Ela vê, ela pergunta, ela duvida.

E, por falar nisso, uma dúvida: para que eu fosse até a igreja e te encontrasse, você apenas mandou o cachorro ou você estava dentro dele o tempo todo?

6 comentários:

Anônimo disse...

Ele estava o tempo todo dentro do cachorrinho galego e dentro do senhor, senhor Ribondi.
Gostei imenso desse conto, gostei do cachorrinho galego, gostei da moça bonitamente careca mas gostei principalmente do autor da carta, que arrisca interpretar sinais, o que é fundamental nas revelações.
Me fiz entender?
É que não domino a arte de escrever como o senhor.

Ribondi disse...

Ou você pára de dizer que não escreve bem, ou eu enfio uma caneta bic na sua mão.
Ora, sim, senhor.

Anônimo disse...

Eu paro, prometo que paro, ora sim senhor, senhor Ribondi.
Minha mão não aguentar uma enfiada de caneta bic, não seja violento, :).

maria alice disse...

Uma pérola, esta crônica. Dá vontade de não ler mais nada por hoje para a sensação boa que ela passa não se dissolver.

E a definição de que a dúvida é o começo da fé veio resumir um sentimento confuso que brotou na minha cabeça há um ano atrás, justamente chegando em Santiago, sem fé nenhuma. Deve estar na hora de puxar o fio desta meada.

Obrigada, Ribondi.

maria alice disse...

Ihh, Ribondi, sou boa pra fatos e bem devagar para divagações.. Depois te mando os fatos por mail, para não encher o espaço dos comentários.
Mas quem sabe, a conclusão se aproxima?
Até mais.

Anônimo disse...

Sr. Ribondi
Meio formal, não? Prefiro Alexandre o mágico o que faz dos causos uma história linda e nos transporta para ela. A resposta a sua pergunta ao final deste texto deverá vir dentro de vc, pois somente vc vivenciou o fato. A fé é algo que sentimos e não temos como explicar. Vc tem fé no que faz, e o faz bem. Deus está com você ou na caneta que está na sua mão????
Bjinhos
Mariucha