10.31.2005

Cachorrada




O avô da Marizete, que era homem dos mais importantes e ricos da cidade do interior goiano, morreu. De uma vez. Cambaleou, levou a mão ao peito, disse “Nossa Senhora” e caiu no chão.

Marizete, quando recebeu a notícia dentro da redação do jornal onde trabalhávamos, parou tudo. Fechou os olhos, ainda sentada em frente da máquina de escrever, cobriu o rosto com as mãos e chorou pelo avô. Para ela, a importância dele era só familiar.

Mas não para os outros. Durante o velório, poucas pessoas choravam lágrimas sentidas: a Marizete e a família, alguns amigos verdadeiros, uma mulher desconhecida que ninguém sabia por que chorava. O resto, vestido como para recepção no Palácio das Esmeraldas, em Goiânia, estava ali para aproveitar a última oportunidade de bajular o poderoso da cidade de interior de onde, feito trampolim, se pulava para a capital do estado e, depois, para o grande mar da política federal.

O calor abrasava. Na sala, perto do corpo em cima da mesa, as flores se ressentiam da temperatura e reagiam com cheiros fortes, nauseabundos, como se gritassem. As moscas, impacientes, pousavam onde podiam: rostos, mãos, ombros, lábios, flores, paninhos da cômoda, jarros embelezados por rosas de plástico.

O cortejo ia começar, rumo ao cemitério. Três da tarde, as flores verdadeiras se curvavam com o peso do sol quente sobre os ombros. A viúva, acalorada, sentia as ondas do desmaio. A família decidiu que ela ficaria em casa, acompanhada. Um grupo de terno preto discutia quem teria a grande, incomparável honra de segurar o caixão durante o percurso de quase meia hora.

O burburinho acabou por escolher quatro deles. O caixão saiu da sala, passou por toda a rua onde havia morado o falecido, cruzou a rua da farmácia, atravessou a praça, com poucas árvores para cidade de tanto brilho solar, passou em frente à prefeitura e à câmara dos vereadores, ambas com bandeira a meio-mastro, e tomou o rumo da rua íngreme, sem calçamento, que ia dar no cemitério.

Algumas pessoas da rua sem calçamento saíram até as varandas e portões, em silêncio diante de enterro tão distinto. Os cachorros, que dormiam debaixo de roseiras, pés de jabuticaba, jasminzeiros e pés de goiaba, abriram os olhos.

Um deles, miudinho e enfezado, saiu do conforto e do frescor do chão da cozinha e veio ver. Latiu. Chegou perto do caixão e latiu com mais força. Um outro, que estava aproveitando a terra úmida debaixo da roseira, levantou a cabeça e se interessou pelo assunto.

Um grandão, que morava no fundo de um quintal de muro alto, rosnou. Uma cadelinha recém-parida, ainda com as tetas bem penduradas, saiu do ninho, por pura curiosidade.

E todos os cães começaram a latir. Juntos, tomaram coragem e foram chegando. Misturaram-se a todos os pés de sapatos pretos que desfilavam atrás do caixão. Latiam e rosnavam.

O miudinho invocado foi o primeiro a atacar. Agarrou-se à barra da calça de um dos oportunistas que seguravam a alça do caixão e puxou. Balançava a cabeça de um lado para o outro. O dono da calça tentou se livrar, dando safanões. O cão era renitente, insistiu. O homem, sério, ridiculamente pungido, enxotou entre dentes:

-Sai, porra, sai daí.

O cortejo não ouviu, mas os cães, com audição assombrosa, entenderam perfeitamente. E não gostaram da ofensa. Atacaram.

Cada um escolheu a melhor barra de calça e segurou firme. Com o focinho baixo e o rabo apontado pra cima, fincaram os pés no chão de terra e prenderam os carregadores de caixão.

Um homem aproveitou uma das pernas livres e chutou o cachorro que rasgava a calça dele. O cão revidou com força: uma mordida bem dada, generosa, na canela. Ele tentou gritar, mas os enterros são ambientes silenciosos, por definição. Acontece que a dor foi grande e ele, em pânico, largou a alça do caixão.

Desabou tudo. O caixão fez um barulho forte, duro, oco. No alvoroço que se seguiu, tinha cadela latindo, tinha criança gritando em cima de muro, tinha gente correndo para dentro da casa dos outros, tinha dono de cachorro chamando:

-Totó, já para dentro!

E tinha homens de terno que mantinham um certo ar impávido. O calor absurdo reluzia sobre a cidade. O caixão ficou parado, no chão, à espera de socorro. Um cachorro preto aproveitou e fez xixi ali mesmo, na madeira nova.

Um homem gritou, impôs respeito. Um outro cachorro, o grande, que morava no fundo do quintal e que tinha pulado o muro no afã de participar, fez a mesma coisa. Para impor o seu devido respeito, mordeu o homem. Com muita força. Mordida definitiva. Aí, espalhou todo mundo.

Das janelas, as pessoas e o cortejo observavam. Cães que, acalorados pela discussão, andavam em círculos pela rua e cheiravam tudo. Cadelas que rosnavam e tentavam morder macho que, confundindo as coisas, achava que a reunião era para fins de acasalamento. E, ali, no meio de tudo, largado no chão, o caixão com um morto dentro.

Demorou muito até que tudo se acalmasse e as pessoas tivessem coragem de voltar ao cortejo. Foi até bom porque, aí, o sol já tinha diminuído de força. Marizete, quando retomou a rua, não conseguia controlar a gargalhada, diante do espetáculo dos bajuladores do avô.

Mas havia quem entendesse:

-Coitada, é reação nervosa. Era muito apegada ao falecido.

4 comentários:

Anônimo disse...

"Marizete, quando retomou a rua, não conseguia controlar a gargalhada..."
E eu ao ler, delicioso.

Anônimo disse...

Ribchen,
to com uma saudade de vc...
Nem sei te explicar como e´q e´.Eu leio as suas historias e me da´uma vontade louca de ligar pra vc e conversar contigo sobre elas.
To sofrendo mil.Queria a Enterprise aqui e me "beemaria" imediatamente para Brasilia.
Gruß und Kuß,Moninchen

leila disse...

cachorros são estranhos. de uma inconveniencia constrangedora. nunca me dei bem com eles, embora me adorem. meu pesadelo quando menina eram os vira latas atravessarem a rua pra subir na minha perna. era penoso, desagradável, e eles não tinham noção. eu tinha pena, mas chutava. como me ver livre daquilo? cachorros são os chavez do mundo animal.

Anônimo disse...

Que situação! :D :D :D