10.18.2005

Conto de fada




Nunca tinha visto um, mas nem por isso mudava de opinião: o lobo era o mais belo dos mamíferos. Também nunca tinha ouvido, mas já sabia que a voz do lobo era a mais envolvente e a que mais podia me enfeitiçar. E sabia também que jamais escaparia do seu olhar.

Eu tinha medo dos lobos.

O carro, um Renault, subia devagar pela estrada estreita, solitária, úmida e retorcida da serra do Marão, no norte de Portugal, lá onde ninguém ousa falar alto, lá onde não há ser vivo com coragem de interromper o que o mundo sabe fazer por contra própria.

As árvores crescem. Os musgos embrulham e apertam as árvores. As vacas e os homens bafejam para cobrir o Marão de névoa. Os homens não falam, por respeito à mudez da natureza. O Marão é a pátria do silêncio.

Eu e o Rui, a gente vinha das margens do rio Tâmega para subir a serra. A estrada, quase um ângulo reto em relação ao rio lá embaixo, forçava o carro. De repente, a fumaça começou a sair de dentro do capô.

Saímos do carro enguiçado. Fora do carro, nada. Só a serra, porque “bem alto é o Marão, que não dá palha nem grão”. Mas, ali, tinha, pelo menos, um rego estreito, que, aos pulos sobre pedras, descia desesperadamente o monte, escorregando sem conseguir se agarrar às rochas lisas.

Passaram, bem perto, um homem e sua vaca. O mesmo silêncio, o mesmo jeito de andar com obstinação, como se andassem, os dois, sem esperança de chegar. O mesmo olhar mudo. Passaram sem surpresa, como se o carro, Rui, o rego d’água e eu fôssemos coisa do Marão e estivéssemos ali há um século.

Enquanto eles sumiam serra abaixo, refleti sobre as silhuetas idênticas na névoa:

-E se Darwin tivesse viajado para o Marão? Ia escrever que o homem descende da vaca? Ia chegar na academia e dizer que, em um momento da vida, os dois grupos, o dos homens e o das vacas, tomaram rumos biológicos diferentes mas mantiveram a mesma paciência, o mesmo silêncio e a mesma resignação?

Foram embora. Do outro lado da estrada escurecida ao meio-dia pela névoa, sobrava um pedaço de mata de pinheiros bravos.

Enquanto Rui levantava o capô do carro, atravessei a estrada e olhei o nada do Marão. No meio da cerração, entre os troncos dos pinheiros bravos, alguém me viu. Vi também e parei o olhar.

Reconheci. Não muito tempo antes daquele dia, eu estava dentro do carro, à noite, perdido, procurando a cidade mais próxima para me localizar no mapa de Portugal, quando, ao longo do acostamento da estrada, um bando de cães passou a me acompanhar, na mesma velocidade que o carro. Eles corriam como se festejassem e anunciassem minha chegada. Olhei os animais que, como batedores, abriam passagem para mim. Rui disse:

-São lobos de Trás-os-Montes.

Por isso, reconheci. O pêlo era cor de prata e o olhar dele, seu jeito quieto e impassível de mirar, de não mexer os olhos, de fixar, atento, como quem cheira o mundo, foi o que mais me paralisou. Não tinha escapatória, não havia o que ser feito, ali no Marão, no meio da névoa, separado do resto do mundo por um rego finíssimo de água fria que despencava morro abaixo, não por querer, mas por inexorabilidade.

Olhei também. Mas os olhos dele eram mais belos e mais misteriosos que os meus. Parei. Ele sabia parar mais que eu. Sabia ser firme como uma árvore. Eu tentava falar, queria dizer que estava com medo, tentava pedir socorro ao Rui, mas o lobo comandava o silêncio do Marão, que era tão quieto e antigo quanto ele.

Estávamos à distância de um bote certeiro, eu e ele. Mexeu a cabeça. Ergueu o olhar, fixo em mim. Dobrou uma das pernas e levantou a pata. Estendi o braço com a palma da mão aberta.

Os pinheiros bravos e ele. Como um cão de prata. Meus cabelos estavam úmidos, com a névoa deslizando entre eles. Lentamente, dei um passo para trás, queria voltar para o carro. Cheirou o ar.

Então, ele se afastou entre as árvores. Mas parou. E me olhou novamente. Descobri, quando me olhou, que meu medo era pura fantasia, ilusão. Que, se havia algum risco, era o de virar poeta, ali, na frente da beleza prateada. Descobri que ele não precisava de mim, para nada. Que ele, escondido entre os troncos, esperava a hora certa de ir embora.

Mas ele queria dizer alguma coisa, pelo jeito de me olhar sem ir embora. O chão que ele e eu pisávamos era rude, velho. O cão de prata começou a correr para sumir no meio das árvores e da névoa. O trote ligeiro, solitário, elegante falava.

O que você não conhece, o que é estranho, o que está além da imaginação, não mate, não ataque, não morda.

O que você desconhece, o que você não entende, pertence às árvores, são coisas do Marão.

O lobo foi embora morro acima. Eu fiquei para trás, trêmulo, sem medo algum, ouvindo o ronco do carro que voltava a funcionar.

Dei por mim: a gente encontra um lobo cara a cara, a gente sente, na pele, a ternura do olhar dele, reconhece a gentileza do pêlo, aprende que a alcatéia se senta nos morros para cantar. A gente olha, vê e disse que então é isso, que eles ainda são o que fomos um dia, quando nos encontramos pela primeira vez.

Quando a gente encontra um lobo, qualquer um reconhece a própria timidez.

8 comentários:

Anônimo disse...

Senhor Ribondi:
O tom está maravilhoso, um achado esse recado do lobo:
"O que você não conhece, o que é estranho, o que está além da imaginação, não mate, não ataque, não morda.
O que você desconhece, o que você não entende, pertence às árvores, são coisas do Marão."
Parabéns e que venham mais, :).

Anônimo disse...

Assinei errado, pode isso?
Assinei com o nome do blog...

Anônimo disse...

Lindo, lindo, lindo. Vou guardar especialmente isso aqui: "..lá onde não há ser vivo com coragem de interromper o que o mundo sabe fazer por contra própria." :)

maria alice disse...

Este seu livro será daqueles a gente abre em qualquer página e se desliga do que está em volta. Tão bom quanto ler um texto novo é reler textos ótimos.

Já leu o Livro da Jângal? "Olhai bem, ó lobos!" dizia o Akela. Foi o início do respeito e da fascinação por eles.
:)

Anônimo disse...

"Quando a gente encontra um lobo, qualquer um reconhece a própria timidez. "

Explicou o 'Anônimo Covarde'.

Ribondi, você é MUITO bom.Obrigado,


Anônimo Covarde

Nelsinho disse...

Minhas lembranças de menino seriam nada sem êle...Sem o Marão, suas estradinhas sinuosas serpenteando no meio da neblina!

Ouvi o uivo dos lobos de trás-os-montes enquanto escalava os montes cheios de neve, armado com um machadinho que achava suficiente para me defender!

Propelido pelo seu texto,decolei no espaço-tempo e me vi com fome, comendo morcela e queijo com pão de milho e tomando "café de cevada" naquela casinha no meio da serra, enquanto me aquecia na braseira...

Seu conto é lindo!

Nelsinho

Nelsinho disse...

Ribondi,
Não sou do Marão...

Mas apesar de nascido na cidade do Porto onde morava e estudava, minhas raízes estão no entanto nas imediações de Lamego, de uma tradicional família de ourives ambulantes que percorriam incansavelmente toda a região incluindo as “long and winding roads” do Marão, em busca das feiras e festas onde armar a barraquinha expondo as reluzentes argolas e anéis do bom ouro de 20K...

Sempre que tinha férias escolares, eu alinhava alegremente com o meu avô e o meu tio, embarcava na velha Fordson 46 e lá ia serra acima serra abaixo sob sol ou intempérie!

A história da machadinha é real. Meu avô, homem dos tempos difíceis, idéias fixas e nenhuma flexibilidade, entendeu enviar-nos ( a mim e ao meu primo alguns anos mais velho), com a missão de subir a serra a pé a uma localidade ainda sem estrada levando correspondência e documentos. Saímos de madrugada debaixo de um nevão pouco comum por ali e decidimos levar uma machadinha cada um “para nos defendermos dos lobos”!!.
Não os vimos, mas ouvimo-los!...

Nelsinho

Anônimo disse...

Querido amigo você é demais!!!! Veja que preciosidade "Então, ele se afastou entre as árvores. Mas parou. E me olhou novamente. Descobri, quando me olhou, que meu medo era pura fantasia, ilusão. Que, se havia algum risco, era o de virar poeta, ali, na frente da beleza prateada."Pode?????
Meu avô era de Trás-os-Montes, pena que não pude conhecer.
Bjinhos