10.18.2005

Gata na hora do poente



Conheci Shantung em noite de festa numa casa branca, com tudo branco: paredes, chão, portas, janelas, tapetes, sofás, cadeiras. A dona da casa, uma sueca chamada Maria, também era toda branca, apesar do tom amarelo dos cabelos. Mesma coisa com o marido dela.

Estava na varanda que dava para o gramado, verde, olhando para o lago Paranoá que, por causa do escuro da noite sem lua, tinha águas negras. E foi aí que ela se aproximou. Uma gata cinza e preta, muito pequena, como se, naquela noite, estivesse saindo sozinha pela primeira vez. Dava um passo sem saber direito onde ia pôr o pé, cambaleava, tentava se firmar e caía. Miava primeiro e, depois, se levantava para tentar tudo outra vez.

Peguei no colo e ficamos, os dois, olhando o lago em noite quente, quando Maria, branca, loira e grávida, chegou perto:

-Você trouxe um gato?

-Pensei que fosse seu.

-Odeio pêlos, odeio miados, odeio rabos, odeio focinhos.

Aparentemente, Maria odiava gatos. E foi enfática:

-Tira daqui!

Procurei, por cima da cerca viva do quintal, algum indício de ninho faltando um. Não encontrei e, por isso, apertei mais a gatinha no colo e deve ter sido aí que ela sentiu o meu cheiro pela primeira vez. Um dos convidados da festa, um poeta, quis socorrer:

-Vou embora daqui a pouco, levo o gato e solto em qualquer lugar.

Maria sorriu, eu fechei a cara.

-Nem por cima do meu cadáver.

E, assim, saí da festa, antes mesmo do poeta. Ainda na porta da casa de Maria, perguntei à gata miúda e muito frágil:

-Gosta mais de Shantung, Chinchila ou Caxemira?

Achei que ela ia dizer Chinchila, mas escolheu Shantung, e já foi como Shantung, em carne e osso, que ela entrou no carro. Primeiro, serena, pesquisadora. Liguei o carro. Ela, sem aviso prévio, pulou como milho em pipoqueira quente. Com unhas estiradas, agarrou-se ao volante, aos meus cabelos, à gola da minha camisa, às minhas coxas.

No meio do ataque furioso, consegui desligar o motor. Ela serenou. Respirávamos ofegantes. Abri o porta-luvas, tirei os óculos escuros, protegi os olhos e, antes de voltar a ligar o carro, avisei com voz firme:

-Rasgado, fatiado, arranhado, eu vou chegar em casa. E você vem junto.

E assim, entre unhadas e ronronadas caprichosas, ela cresceu. Tinha manias. O travesseiro era dela. Todos os dias, passava em frente da televisão e, de repente, via a imagem. Arqueava-se, ficava arrepiada das unhas até o bigode, e corria para se proteger dentro do armário.

E foi em cima do travesseiro, que ela se sentiu mal. Espichava o corpo todo, inclusive o rabo. Miava, fazia força. A barriga estava dura, inchada. A caminho do médico, tentou embirrar com o carro, mas estava doente demais e consentiu em viajar em paz.

Dois dias depois, quando fui no hospital buscar Shantung magra, cansada, com olheiras e besuntada do óleo da lavagem para retirar os pêlos presos nos intestinos, resolvi que ela iria passar os fins de semana na roça, comigo. Gostando ou não de carro.

E assim foi que um trecho bastante considerável da estrada entre Brasília e Olhos d’Água ficou sabendo que eu estava indo para Vila Mateus, a minha roça. O mundo inteiro ao longo da estrada via: eu ao volante lutando contra uma fera que rugia grudada ao teto, aos bancos, ao tapete de borracha, à maçaneta da porta.

Nas viagens seguintes, fui intransigente. Ela teria que entrar na caixa. Mas não foi preciso muito esforço nem muita repetição porque, um dia, na hora de voltar, ela se recusou. Da maneira dela. Subiu na trave do teto, lá em cima, e afiou as unhas. Busquei uma escada, subi até ela, mas Shantung foi categórica:

-Estou avisando. Não vem.

Eu fui e ela ficou na Vila Mateus, fazendo companhia ao meu cão Lula, aos meus quatro cavalos, às duas dúzias de galinhas, mais o galo Evaristo, além do bando de maritacas que, todos os dias, ali pelas sete da manhã, pousava no pé de abacate para o café-da-manhã.

Shantung passou a ser a grande mulher que seria para sempre. Tinha novas manias. Ninguém passava pelo portão da Vila Mateus sem que ela cheirasse, com desdém. Ninguém entrava no banheiro sem que ela entrasse antes, inspecionasse o ambiente e se sentasse de olhar fixo, como quem pergunta com pouca, quase nenhuma, boa vontade:

-O quê?


Pariu todas as vezes que pôde. Ou estava esperando filhotes, ou estava amamentando filhotes. Ou estava pensando seriamente nisso. Sentava-se no alto do portão da Vila Mateus e se lambia, sensual.

Ficou amiga do cão Lula e da égua Estrelinha. Juntos, íamos os quatro para um gramado alto e plano no fundo da roça para ver coisas como o pôr-do-sol ou estiagem depois de toró. Nestas horas, gostava de se sentar entre minhas pernas e, sem que ninguém mais visse, me acariciava com movimentos, firmes e delicados, do rabo cinza e preto.

Um dia, defendeu sua ninhada de um cachorro bravo que conseguiu entrar no quintal. Foi linda, corajosa, brava e feliz até o fim.

13 comentários:

Anônimo disse...

Gostei de Shantung.
Nem sei direito porque...
E gostei de encontrar mais um conto aqui, coisa tão boa isso!

leila disse...

linda história. não vou dizer o que eu faria se fosse minha gata, mas que eu faria, ah sim...

Anônimo disse...

"O mundo inteiro ao longo da estrada via: eu ao volante lutando contra uma fera que rugia grudada ao teto, aos bancos, ao tapete de borracha, à maçaneta da porta."
Estou emocionado demais com todos seus contos. Se eu soubesse escrever gostaria de escrever assim. Para encantar almas e corações.
Quando li hoje "Adoro ver avião.
Acho que é das aves mais bonitas que eu conheço.
Aliás, uma ave grande.
Enfim, um avião - que, por incrível que pareça, quer dizer isso mesmo: ave grande, avezão, aveão, avião." fiquei encantado. Penso assim e até ja escrevi assim.
Mas seus cantos são belezura e encantamento.Parabéns. Ganhou um fã.Que fique claro que os parabéns não são pelo novo fã.Obrigado,

Anônimo Covarde
Ué, pq só a Cora pode ter um?

Anônimo disse...

Ri muito, imaginando a cena da gata agarrada ao volante. É exatamente o que aconteceria se eu levasse a minha branquinha para passear.
Acho que apareceu mais um leitor aqui.
Será o mesmo?

Anônimo disse...

Ribondi, show de bola! Quando vais publicar em livro esse blog? Fiquei sua fã. Je reviens.

Anônimo disse...

ia comentar lá embaixo.

Comentar não. Não sei escrever.

"As duas tinham falado de perdão, de crueldade à-toa, de crias. Tinham deixado de ser mulher e cachorra para se tornarem essa mesma coisa que tem fígado, sangue, pele, coração, tripas, língua, vaivens de fertilidade, olhos."

porque leio apreciando sou lento. mas agora li todos.
Como pode ser tão bonito?

Manoel de Barros no coração e Ribondi também.

Anônimo Covarde
sou outro. obrigado pelo "bem vindo", mas quem diz obrigado sou eu.

Anônimo disse...

Isso aqui tá bom demais!!!

Anônimo disse...

Gostei da sua maneira de contar estória.

leila disse...

Ribondi, ganhou um AC, que legal!

Cora disse...

Agora sim é um blog de verdade! Blog que é blog tem sempre um AC. Parabéns!

Jussara disse...

Eu pensei que AC só tivesse um. E que aqui ele fosse se identificar. Afinal, com contos tão bonitos, acho que este blog vai ter só elogios.

Teresa Amorim disse...

Será que vou sempre terminar de ler os seus contos, banhada em lágrimas?
Quero um final feliz.

Beijos

gik disse...

É isso, o A.C. :c))) disse tudo:
Ribondi no coração.

Seus contos que fazem a gente arrepiar que nem Shantung.