10.20.2005

Kuk



O que é para fazer, que atitudes tomar, quando a gente vai andando por uma rua, tarde da noite, e acha um gato adolescente, ainda tropeçando na vida, totalmente perdido? Você põe no colo, acaricia a cabeça, faz cócegas na barriga, pergunta o que que foi. Mas, depois, o que fazer se você também está quase tão perdido quanto ele, em um país estranho, com língua de palavras ocas?

Era assim que eu me sentia em Estocolmo, pelas duas da madrugada, vindo, a pé, de um bairro alto, derramado sobre o mar, chamado Mariaberg, de que tinha compreendido, até então, duas coisas. Primeiro, Maria era Maria mesmo. E, depois, berg quer dizer monte ou morro, o que fazia da Mariaberg o Morro da Maria e, do iceberg, um monte de gelo. Viajar é sempre muito ilustrativo.

Tinha, até aquele dia, aprendido outra coisa também. Quando fui ter uma reunião, das sérias, com uma diplomata sueca, no Itamaraty deles, resolvi anotar uma palavra que, em vários pontos da cidade, tinha sido escrita em muros: kuk. Pensei, sinceramente pensei, em Komunist-Union-alguma-coisa e, na sala elegante e acarpetada, perguntei à ministra sueca o que aquilo, afinal de contas, queria dizer.

Ela me encarou, coçou a testa, me encarou outra vez, sugeriu um minúsculo sorriso, tossiu. Eu, já me espremendo contra o encosto do sofá, pensei bem baixo, tão baixo que mal dava para que eu mesmo ouvisse meu pensamento:

-Ah, minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, é palavrão...

E era. Kuk é parente próximo do cock inglês e parente afastado (por serem eles nórdicos e, nós, latinos) do nosso piru. Kuk era caralho.

Mas vai daí que eu ia pelas ruas de Mariaberg em direção a Gamla Stan, a Cidade Velha, onde eu estava vivendo aqueles dias, e achei o gatinho. Ele miava, possivelmente de fome. Ou de frio, porque o vento corria desde a Lapônia até as minhas mãos congeladas. E, com as mãos frias, peguei o bicho abandonado e pensei no que fazer. Olhei para um lado. Olhei para o outro lado. Não reconhecia nada. Mas sabia que, por tradições nórdicas, muitos bares, em dias de inverno, deixam pequenos fogareiros acesos no chão, em frente à porta, para avisar que somos bem vindos e que podemos entrar. Se achasse um, tentaria conseguir leite.

Quando já estava perto da cabeceira de uma das pontes que ligam as milhares de ilhotas de Estocolmo umas às outras, como se fosse uma Veneza dedicada a Thor, vi três homens. Eram rapagões, usavam calças jeans apertadas, botas de cano alto, casacos de couro enfeitados com alfinetes e correntes. Altos. Andavam como quem marcha. Continuei minha caminhada rumo à ponte.

Mas eles me chamaram. Como não sou dado à língua sueca, de que só sei dizer “at vara eller inte vara” (“ser ou não ser” – e não sei por que aprendi isso, já que nunca usei em padarias ou farmácias), apenas me virei e olhei, à espera que eles preenchessem o buraco deixado pelas palavras vazias e insossas que me dirigiam.

Por isso, se aproximaram em semicírculo. O parapeito da ponte, eu e o gato, e, na nossa frente, eles, fechando a roda. Alguma coisa me dizia que eu devia exclamar kuk e sair correndo. Mas, pelo sim, pelo não, fiquei, com olhar de expectativa.

Eles me olharam de cima embaixo. Era um olhar ensaiado, teatral. Como que examinassem minhas roupas, meu nariz, meus óculos, meus cabelos e meus olhos, que não eram azuis. São castanhos. Um deles se aproximou mais ainda, eu olhei para o mar que passava embaixo da ponte. O gatinho se ajeitou nas minhas mãos.

-Você é de onde?

Se eu respondesse, eles falariam de palmeiras, de futebol e de carnaval? Achei que não. O tom de voz do rapaz que me fez a pergunta era cortante, era cínico. Tinha uma suspeita de maledicência que eu já havia sentido quando ele encarou os meus olhos. Que são castanhos.

Percorri o mapa da Europa em um segundo. Reduzi o espaço e vasculhei o mapa da União Européia, à procura de uma nacionalidade segura, que não suscitasse orgias de nazismo tardio.

-Itália.

Um deles falava italiano, cazzo! kuk! Tentei responder que era de Veneza, de Verona, de Mântua. Eles se olharam e um deles deu mais um passo à frente, diminuindo o semicírculo, o que me espremeu mais ainda contra o parapeito da ponte de Mariaberg.

Insisti:

-Provem que não sou italiano.

Tentaram me vasculhar para encontrar o passaporte. Empurrei os intrusos com uma das mãos, enquanto segurava o gatinho com a outra. Eles se alvoroçaram. Eu também, já que estava decidido a não ser vítima na madrugada de Estocolmo, em cima de ponte sobre águas nórdicas geladas. Mas, além de nós quatro, quem mais se assanhou foi o gatinho.

Não acredito que ele tivesse alguma percepção política. Ou que fosse, por princípios, contra os skinheads. Acho que os gatos têm como princípio e como percepção a sobrevivência, a fuga, o combate pela retirada. Os gatos gostam é de viver. Por isso aquele lá tinha aceitado, sem arranhões e contrariedades, o meu colo quente. E por isso também, na hora em que fui empurrado por dois dos rapazes suecos, ele deu um pulo firme e voou sobre as cabeças do semicírculo, com um miado longo, dolorido, triste.

Os três tiveram a reação natural de se afastarem diante do pulo do gato. Aproveitei e passei entre eles. Corri. O gato atravessou a ponte, ainda miando. Eu não sabia mais onde estava, mas sabia, podia ouvir, que havia três pares de botas que corriam atrás de mim.

O gato entrou numa rua larga e vazia. Fui junto. Pulou sobre um carro, atravessou para a outra calçada, dobrou a esquina, desceu uma escadaria, pulou uma cerca. Eu não perdia de vista o rabo dele. Ia atrás, desesperado. Se ele não tinha lógica na sua correria desenfreada pelas ruas da cidade, que lógica teria eu? E que lógica tinham os três rapazes que também corriam atrás de mim?

O gato, então, me levou para uma rua clara, acesa, cheia de vida. Os três rapazes diminuíram os passos e devem ter decidido que eu não valia a pena tanto esforço. Quando passei por um grupo de pessoas que falavam o oco e vazio sueco, me senti finalmente em casa. Nunca havia sido tão bom ouvir a língua deles. Finalmente, ela era doce, meiga, amigável, familiar. Era como se eu entendesse tudo o que eles falavam entre si.

Procurei o gatinho. Ele estava sentado, paciente, na porta de um restaurante mexicano. Olhei pela vitrine. Lá dentro, alhos e cebolas saltitavam numa chapa quente, comandados por uma espátula. Entramos os dois. Eu comi um bife com aroma e sabor de coisas acaloradas, longínquas. Ele bebeu leite.

Ali pelas três da manhã, a gente se despediu. Ele empinou o rabo e foi. Eu enfiei as mãos no bolso do casaco e fui.

9 comentários:

Anônimo disse...

Que comovente, o gatinho sabia os caminhos, ora se sabia!

Anônimo disse...

Ribondi, seus contos encantam!
O gatinho que sabia o caminho pros dois, pro "porto seguro"... Encantador!
O da infância, com o causo do urubu me fez dar muita risada.
Que recanto gostoso esse daqui, Ribondi.
Obrigada! :)

Anônimo disse...

Muito bom! :)

Teresa Amorim disse...

Esse gatinho salvou vc. Aliás, eram dois gatos fugindo.

;-)

Unknown disse...

Num 'oco e vazio português': Cara, você é ótimo!
Abraços!

Anônimo disse...

Gratificante!!!

Anônimo disse...

Lindo!
Essa história me fez lembrar do meu sobrinho que conseguiu ser assaltado duas vêzes na Suíça.

Jussara disse...

Realmente, Ribondi, não é qualquer um que tem uma foto do Kct.
Pra variar, seu texto está ótimo.

Cora disse...

ÊÊÊÊÊ, ROMÁRIO!!!!!!!!!!!!!!
Saudades!!!
Beijos!!!
:-)))