10.10.2005

Malvina e Irene

Alta, magricela, cor de carne-seca, canelas finas, latido agudo, cauda alerta. Passou uns dois dias, só olhando pelo lado de fora da cerca. Depois, passou a ficar sentada do lado de fora do portão e, quando eu ia para a escola, ela me seguia para fazer todo mundo acreditar que morava lá em casa. Até o dia que voltou comigo da venda e entrou de vez no quintal. Minha mãe olhou, disse que não queria. Depois, abrandou.

-Mas ela é tão feia.

Olhou bem, examinou, era quase como se as duas se cheirassem.

-Magrela desse jeito, parece alguém que eu conheço.

E a cachorra foi batizada com o nome da mulher magra e feia, e virou Malvina.

Roia o osso somente até a metade, e o resto, escondia em um buraco cavado no quintal. Deitava-se em cima por um, dois, três dias inteiros. Ela demorou até aprender que, agora, podia comer à vontade, que outros ossos iam aparecer, como por milagre, trazidos pelo milagreiro da casa, que era o meu pai.

Era, no começo, para ser cachorra de quintal, sem entrar na sala e sem se espalhar pelos quartos. Havia uma fronteira bem marcada, com um guarda de alfândega eficiente, que era a minha mãe: a porta da cozinha.

Mas Malvina sorria com o rabo e com os olhos. Não levava ofensas, não guardava rancor, não se sentia humilhada por nada. O tanto que fosse dela, ela amava e se satisfazia.

Um dia, saiu para passear e, quando voltou, tinha, enfiados bem dentro da carne do focinho, cinco dardos do porco-espinho que ela tinha tentado abocanhar no mato fechado que fazia da minha cidade uma pequena clareira ensolarada no meio da Mata Atlântica, lá no alto das montanhas. Com os dedos que, por serem de cão, não funcionam como pinças, ela tentava se livrar dos espinhos doloridos. Sentada no pé da escada da frente da casa, gania baixinho, enquanto tentava sorrir com o rabo.

Meu pai chegou com os instrumentos cirúrgicos: corda fina, alicate, algodão e vidro de éter. Segurei o corpo quentinho e magro dela, enquanto meu pai, com o pedaço de corda fina, juntava e amarrava as patas da frente e de trás. Segurou a cabeça de Malvina com força e esfregou o algodão encharcado com éter na entrada do nariz. Esperneou. Senti que ela acreditava que era assassinato, que já tinham tentado isso antes, com pedras, tiros, pedaços de pau.

Tentou fugir, ganiu, mas depois ficou imóvel, com a língua inconsciente, pendurada para fora da boca, entre os dentes quase cerrados. Cada puxão que meu pai dava com o alicate, para arrancar o espinho, trazia também um pouco de sangue, que eu limpava com pedaços de algodão. Quando o efeito do éter passou, ela já estava completamente curada de tudo e talvez nem se lembrasse mais, ou nunca mais, do porco-espinho traiçoeiro.

Mas, um outro dia, uma ano depois da chegada dela, Malvina não estava mais lá. Quando já era de tardezinha, na hora que a neblina chegava na cidade para passar a noite com a gente, ainda não tinha voltado. E não apareceu nem de manhã.

Procurei em Jaciguá, Nova Esperança, Matilde, Guiomar, que não eram longe, porque o Espírito Santo é pequeno e o alto das montanhas, menor ainda. Procurei debaixo da ponte, na caieira, no terreno da fábrica de seda-pura, nos campos de amoreiras, na várzea dos lírios e copos-de-leite. Procurei no palmital do Turco. Andei uns três dias pelos quintais dos outros. Cada latido era uma promessa inteira, era o segundo que antecederia a visão da Malvina dobrando a esquina com o rabo em pé.


Minha mãe foi quem tratou de colocar os pingos nos ii. Disse que cachorro quando vai embora, não volta. Que ela era de rua e que sentiu vontade de ficar livre outra vez. Que cachorro, tem muitos. Que ela não era nossa desde novinha e que não tinha se apegado. E foi assim, aos poucos, ouvindo minha mãe, que Malvina deixou de ser espera e começou a se tornar cachorra sumida.

Mas ainda me lembrava de tudo dela e não foi preciso nem mesmo um minuto de ouvir o seu ganido do lado de fora, quando eu, ainda antes das seis da manhã, girava a tramela da porta da cozinha. Ela, a Malvina, estava lá, arreada, mais definitivamente magra, como se sua pele toda fosse apenas um pano fino cor de carne-seca jogado de qualquer jeito sobre os ossos pontudos.

Quis se levantar pra me dizer que estava de volta, fez todos os esforços para latir e lamber, mas ficou ali parada, como quem tem notícia para dar e, mesmo assim, fica calado e inerte. Tentou abanar o rabo sempre atento, mas ele estava arqueado demais. Os seus olhos, fundos e encardidos, me olharam então.

Um dia, de repente, ela se viu, sem saber como, em lugar desconhecido. Passado o susto e a procura rápida pelo chão próximo, cheirado e vasculhado em círculos, volteios e ziguezagues, ela se deu por perdida. Por isso, gastou três meses inteiros procurando o caminho de volta, por cima de morros, por baixo de árvores. Levou carreira de onça. Escapou de bote de cobra. Atravessou córregos e rios de água fria. Passou dias quieta e escondida enquanto os caçadores capixabas entravam na mata armados atrás de pacas. E voltava metade do caminho percorrido se visse garoto com pedra na mão.

Foi com susto, por medo de Malvina magra, que gritei. Gritei bem alto. Era muito cedo, tudo estava muito frio, a escada, as minhas mãos, o ar, a porta, o córrego que passava perto dentro do quintal. Minha voz gelada gritou sem parar. Quem correu, do fundo do calor do quarto, com um peignoir em cima da camisola, foi minha mãe. E quando pôs o pé no primeiro degrau da escada fria, de repente parou, gelada. Malvina estava ali e olhava, com olhos de nada. Com minha mãe na escada, vestida de peignoir que quase se arrastava no chão, todo o quintal deu um passo atrás. Os outros cães se afastaram. Os porcos cheiraram o ar, desde o chiqueiro. Os passarinhos se prendaram, com firmeza, nos poleiros do viveiro enorme. E até a araponga engoliu em seco. Só Malvina não fez nada. Esperou. Era, ali, uma questão de vida ou de morte.

Finalmente, depois de quatro meses, estavam as duas de novo frente a frente, olho no olho. A mãe, ela, não dizia nada, evitava tudo, meus olhos, os olhos da cachorra, a fraqueza dela, a feiúra da Malvina quase morta, a Malvina regressada, ferida de tanto se sentar e se deitar sobre a pela fina e flácida que cobria ossos pontudos.

E minha também soube. Voltou para dentro de casa, com passos rápidos, abriu armários, portas, gavetas. Vasculhou. Acendeu o fogão a gás, apanhou panela grande, pôs no fogo, derramou água dentro. Apanhou ossos com carnes. Jogou na água.

Depois, muito tempo depois, ela voltou. Desceu as escadas com uma bacia de lata nas mãos e um pano no ombro. Sentou-se ali mesmo, na escada. Estendeu a mão até a cachorra. Malvina não sabia se deixava. Tinha medo de ser levada outra vez embora e abandonada em lugar que não conhecia.

-Vem cá, feinha, vem.

Só o extremo do rabo dela se agitou. Não sabia o que as mãos da mãe iam fazer.

E aí minha mãe, com o mesmo desvelo que tinha levado Malvina embora para soltar no mato e se ver livre da cadela feia, molhou o pano no caldo de ossos levado dentro da bacia. Lentamente, repetiu o mesmo gesto várias vezes: o de passar o pano molhado com o caldo nos beiços de Malvina. Todos os outros bichos da casa permaneceram sentados no mesmo lugar. A cachorra quase morta sentia o sabor e o cheiro da água morna com ossos. Depois vomitou e, só então, relaxou todos os ossos e se deitou no quintal.

-Está fraquinha demais.

Durante três dias, minha mãe repetiu o que tinha feito. Preparava o caldo e dava na boca da cachorra. As duas ficavam lá, em silêncio, uma sem dizer nada para a outra. E minha mãe, que sabia matar, sabia torcer pescoço de galinha, sabia onde enfiar a faca em peito de capado, e que sabia também salvar, preparar remédios, ferver água com erva-cidreira, com boldo-amargo, benzer íngua debaixo de céu estrelado, permaneceu acocorada até que Malvina se levantasse.

As duas tinham falado de perdão, de crueldade à-toa, de crias. Tinham deixado de ser mulher e cachorra para se tornarem essa mesma coisa que tem fígado, sangue, pele, coração, tripas, língua, vaivens de fertilidade, olhos.

Malvina, em pé, no fim do terceiro dia, se espreguiçou com as patas da frente abaixadas, o focinho quase no chão, o rabo erguido como se fosse uma antena que recebesse sinais de vida. Olhou para minha mãe com a ternura dos cães, dispostos a esquecer tudo para ser apenas felizes. Em seguida, foi cheirar as folhas úmidas amontoadas debaixo do pé de caqui.

18 comentários:

Jussara disse...

Nossa, Ribondi, que texto lindo. Fiquei emocionada. De verdade.
Parabéns pelo blog, tá muito bonito e de bom gosto.

Teresa Amorim disse...

Chorei com a história da Malvina.
Por uns instantes saí aqui do meu trabalho e fui transportada para o cenário desta história onde sofri com a Malvina.
Adoro a riqueza de detalhes com que você escreve.
Um beijo grande

leila disse...

que triste. mãe é uma coisa horrível também.

VanOr disse...

Ribondi, criei uma conta de blog só pra dizer que achei seus textos lindos e emocionantes. Fiquei tocada de pensar que, em breve, este blog transmitirá a nós, seus fiéis asseclas, notícias do mundo de lá. Você é lindo. Seu blog é um presente maravilhoso, obrigada.

Anônimo disse...

Já que a porteira foi aberta ( tinha até fila no cercadinho do lado de fora ), vou me sentar bem ali no pé do caqui pra ouvir esses contos que cutucam a emoção da gente e fazem os olhos ficarem cheinhos d'água.
Parabéns e obrigada.

Agora me diz, porque você não abriu este blog antes?! Olha o que estávamos perdendo!

maria alice disse...

Posso sentar do lado da Andréa? Pra esperar o próximo caso e desapertar o coração um pouquinho já que não dá pra colocar a Malvina no colo.

Anônimo disse...

Lindo demais!

José Truda Júnior disse...

Ué, gentes, mas afinal é do Ribondi, né?

Anônimo disse...

A Malvina realmente fez muita gente se apaixonar.
Até meus irmãos mais velhos, que já nem moravam lá em casa quando ela existiu, se lembram dessa menina com carinho, passados o quê, mais de 40 anos.

ribondi

Anônimo disse...

Muito bonita a história. Bom ter uma Malvina na lembrança, isso sem contar a mãe maravilhosa. Ah o poder das mulheres...

Anônimo disse...

Adorei a história e o final feliz. Parabéns pelo blog!
Beijos

bfiori disse...

Que lindo! Faz bem a alma ler estorias assim...

Anônimo disse...

Meu, que coisa mais linda!!! Não sei nem o que dizer de tão emocionada que fiquei!
Beijos! Vou virar freguesa!

Anônimo disse...

Ribondi,

No meio do dia voce me faz chorar. Isso nao se faz homem.

Soraia

Anônimo disse...

Parabéns, Ribondi, pela sensibilidade e maneira tocante de escrever!

Anônimo disse...

A cada causo vc consegue com sua forma de contá-los me transportar para a história e sorrir, chorar, andar naquele cavalinho branco como virgem, espirrar com a presença do Inexistente, o gato valente, vc é mágico. Me joga prá lá prá cá e nem me pergunta se quero ir. Parabéns conterrâneo, você é demais!!!!!!!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Malvina é linda. Impossivel conter minha lágrima.

Anônimo disse...

Ribondi
Emocionante.
Assim como seu livro que acabei de ler e estou distribuindo senhas para amigos que querem ler.
No meu trabalho, tem uma mulher que chama Malvina. Feia e magra ,realmente.