10.10.2005

O canário-belga

E na casa grande com cinco quartos-de-dormir, duas salas e três cozinhas, com quintal apinhado de pés de caqui, pêra, maçã, pêssego, jabuticaba, amora, laranja-seleta, mexerica, pinha, meu pai escolheu um dos quartos-de-domir, o que ficava mais nos fundos da casa, sempre vazio, quase um cômodo de entulhos, com a diferença de que, às vezes, os entulhos eram retirados às pressas para acomodar visita, e pendurou, num dos pregos da parede, a gaiola com o canário-belga que chocava dois ovos. Isto era no inverno e era no alto das montanhas do Espírito Santo, ao lado do Pico da Bandeira, e a neblina vinha e cobria, todos os dias, as roseiras e as hortênsias que seguiam, talvez calculadamente, a barra da varanda de madeira que rodeava a casa.

E foi lá no quarto dos fundos, em silêncio, que um dos ovos não vingou e o outro se abriu com um canarinho, pequeno como a ponta de um dedo polegar. Por alguma razão, a mãe canário não tinha sido feliz com os ovos. Um que não conseguiu ser chocado e o outro que trouxe um passarinho miúdo, de jeito fraco, com as pernas para cima e que, em vez de serem pernas para baixo, apontadas para o chão, pareciam ser braços erguidos para o céu. Em casas antigas, de madeira, enfiadas em alto de montanhas, cercadas por rosas, hortênsias e neblina densa, geralmente se fala muito pouco e basta um olhar para o outro para que a notícia da morte eminente fique estampada na cara. O passarinho, feio, monstruoso, com a deformação absurda e sem nexo, abria o bico como se fosse uma agonia gentil e delicada, e se arrastava no ninho, na tentativa inútil de usar as pernas enlouquecidas e aleijadas.

Meu pai então foi até um dos outros quartos, que minha mãe, a costureira da cidade de três ruas, usava para trabalhar. Ele foi até lá e voltou com linha de costura, de cor branca. Com o canivete, afinou e arredondou dois palitos-de-fósforo. E com as mãos grandes e ternas, que eu sabia que eram grandes e ternas porque, em certas noites, tiritando de frio, eu sentia as mãos do meu pai em mim quando ele, para me esquentar da frieza das noites no alto da serra, esfregava meu peito, como se espalhasse ungüento contra chiadeira e catarro. Com aquelas mãos, ele, mantendo a atenção firme e delicada de um restaurador de porcelanas, segurou o recém-nascido e, com a ponta dos dedos que comprimiam as juntas do passarinho, fez crec ao girar, de uma vez só, as pernas do canário-belga e pôr as duas de volta nos lugares certos. Ele, como se tivesse nascido para viver e nunca para morrer, não reagiu, não piou, não gemeu.

Com os palitos, o meu pai fez duas tipóias presas com fios de linha branca enrolada desde as patas até o alto das pernas e devolveu o passarinho para aquela parte quente e silenciosa que a gente sempre encontra quando se encosta na barriga das mães de todo o mundo.

Depois, não se falava mais disso e a neblina arredava e voltava, as rosas se arrepiavam com as gotas de orvalho produzidas pela noite e pelas primeiras horas da manhã, as hortênsias se ajeitavam na barra da varanda imensa, e o córrego, no fundo do quintal, borrifava águas até as margens da minha casa, com a serenidade aprendida nos caminhos das montanhas espírito-santenses. Atrás da porta do quarto, dentro da gaiola pendurada na parede, o tempo também passava, num silêncio de cama de hospital. Deitado de lado, o passarinho novo apenas arfava e abria o bico em horas de sede e de fome.

Até que meu pai, depois do almoço, que nunca era feito na cozinha de fogão-a-gás, mas sempre na cozinha de fogão-à-lenha ou na outra, com o fogão a pó-de-serra, de repente interrompeu as atividades da mesa com um gesto de mão. Um pio, apenas um, curto, alto, agudo e rápido, tinha vindo da gaiola. Ele se levantou e foi até o quarto dos fundos que, por ser de entulhos, tinha a porta escondida atrás da estante onde eram guardados as enciclopédias e os romances. Ele, o meu pai, afastou a estante, abriu a porta e entramos. O frio gelava os cômodos desocupados da casa.
Depois, acompanhados pelos cachorros com os focinhos empinados, na curiosidade de saber o que é, descemos as escadas do fundo da casa grande e entramos no quintal. No viveiro enorme, onde eu entrava com medo de me perder, meu pai, com as mesmas mãos que cuidavam das rosas e das hortênsias, que faziam violinos com cordas de crina de cavalos, que fabricavam piões e carrinhos com canivete, com as mesmas mãos que cuidavam de mim e dos meus irmãos, abriu a porta da gaiola. A mãe voou até o último poleiro que encontrou. Meu pai e eu nos olhamos.

Lá fora, do outro lado do viveiro, os cachorros espremiam os focinhos contra a tela de arame. Lá fora, tudo continuava vivo, as maçãs, os caquis, as hortênsias, minha mãe. E foi com esse sinal de vida, que se espalha por todos os cantos e que é inapelável, que o filhote, primeiro, sacudiu as asas, depois olhou para a porta da gaiola enquanto meu pai desenrolava os fios de linha que seguravam as tipóias, e, só aí, como quem se coloca na ponta do trampolim antes de saltar, se jogou para dentro do ar do mundo.

Eram, então, mãe e filho, dois canários-belgas bonitos, elegantes, com as penas que iam do amarelo-ouro até o vermelho-sangüineo, este mesmo vermelho que surgia quando o sol empurrava a noite, e fazia o dia começar, lá na ponta das montanhas mais altas que a minha casa.

8 comentários:

Cora disse...

Viva!!!! Funcionou!!!

Ribondi disse...

É inacreditável que isso esteja no ar.
Graças à Cora, por volta das 3 da manhã.
E lá vamos nós!

Cora disse...

Taí, valeu a pena: linda a história.

Cora disse...

Agora até apareceu a capivarinha!!! YESSSSSSSSSSSSSSSS!!!

Teresa Amorim disse...

Adorei a história. Adorei o seu pai.

Jussara disse...

Eta cara que escreve bonito, sô!

leila disse...

eba!!!!! tava om medo do final :)

Anônimo disse...

Puxa, me fez chorar, amo esses bichinhos!
Seu pai me fez lembrar de um tio, que tb amava demais TODOS os bichos dessa vida. Não matava nem marimbondo, imagina.
Que coisa mais linda, Ribondi.