10.28.2005

O dente perdido



Mimosa, a minha cachorra quase bassê, perdeu um dente. Em acidente doméstico relativamente grave, mas, de acidentes, a minha casa vivia cheia.

Ás vezes, era uma aranha, encontrada na copa, com as pernas cabeludas à mostra – e uma delas eu quis pegar. Acelerei o engatinhamento e estendi a mão, até que alguém, mais alto, mais ágil e mais conhecedor dos perigos que eu, me levantou no ar e me pôs no colo. Outras vezes, era um rato, que passava em disparada perseguido por cães e gatos e iam todos parar embaixo da cama dos meus pais, quando os dois descasavam depois do almoço. Ou, então, era eu, o acordeonista da família. Não achava nenhuma graça naquilo, estudava no Conservatório da Irmã Celeste porque era levado aos empurrões por minha mãe. Mas, uma noite, com a sala cheia de visitas, recebi a ordem:

-Pega lá e toca.

E eu fui e voltei com o acordeão vermelho, feito de madrepérola. Como sempre, abotoei bem a camisa porque me irritava, sempre, com os beliscões que o fole do instrumento dava em minha barriga. E abri a cintura da calça curta, para poder me sentar melhor. E, aí, toquei o que minha mãe e as visitas achavam encantador: Besame Mucho, Danúbio Azul e Tico-tico no Fubá.

Fiquei empolgado com a atenção de todo o mundo e quis ser mais profissional. Decidi me levantar para anunciar a interpretação seguinte. Foi aí que a calça, desabotoada, caiu e escorregou até o meio da canelas.

Em pé, imobilizado pela calça, no centro dos risos e gargalhadas, tirei o acordeão do peito. Joguei no chão, e prometi, aos berros:

-Nunca mais toco isso, nunca mais!

E nunca mais toquei mesmo. Até hoje.

Mas, o acidente da Mimosa: nos fundos da minha casa, tinha um barranco. Que ia paralelo ao parapeito da varanda comprida, com um tanque onde minha mãe lavava a louça dos almoços, para não sujar a pia da cozinha. Entre o muro e o barranco, sobrava um beco estreito, onde cabiam somente as galinhas, os gatos, as taruíras e, às vezes, eu.

Mimosa tinha arranjado a mania de caminhar pelo barranco e, com um salto, ir se sentar em cima do parapeito da varanda que, se era baixo perto do portão, era alto, quase um muro, nas proximidades do tanque.

E, um dia, chovia. Chuva fina, mole, sem pressa para passar. Minha mãe lavava uma quantidade especial de panelas, caldeirões e baldes. Na borda do tanque, punha um pano. Apoiava as panelas cuidadosamente sobre o pano, enquanto esfregava uma bucha com sabão e areia, para tirar a sujeira grossa.

Mimosa escalou o barranco, com passos miudinhos. Chegou no ponto que mais gostava. Mirou. Afastou-se um pouco. Mirou bem, para não errar. Enquanto isso, minha mãe, de costas para barranco, muro e cachorra, areava as panelas empilhadas no tanque.

Mimosa pulou. De uma vez. Estava acostumada com o salto e sabia onde ia pousar. Pousou. Mas era dia de chuva e o muro estava molhado. As patas deslizaram. Ela tentou se equilibrar, as unhas rangeram. Buscou equilíbrio. Não conseguiu. Ganiu e levantou vôo novamente, varanda adentro, até que, como um manga madura que despenca de árvore alta, pousou de uma vez só, pah!, na nuca da minha mãe.

Foram bater as duas dentro do tanque, no meio das panelas e caldeirões. O estardalhaço ecoou pela casa: o som metálico das latas e ferros, o grito de pavor de uma e o latido de outra. Quando cheguei na varanda, minha mãe tentava sair do meio do desencontro e Mimosa tentava entender, sem conseguir, o que tinha acontecido.

Minha mãe foi beber água com açúcar. Eu saí às pressas com Mimosa para tratar do sangue que escorria da boca. Era o dente. Perdido para sempre. Meu medo era que o dente fosse encontrado enfiado na nuca da minha mãe, ou nos cabelos dela, mas foi achado, depois, dentro de uma das panelas.

Com o copo de água com açúcar na mão, minha mãe foi triunfante até o portão da varanda.

-Essa cachorra podia ter me matado! Podia ter quebrado o meu pescoço e, aí, você ia ver a falta que faz uma mãe.

Jurou, com voz que ecoava entre as árvores, que ia dar cabo de todos os cachorros e gatos, um a um. Que esperassem.

Mimosa e eu ficamos um bom tempo escondidos no fundo do quintal. Depois, as coisas se acalmaram, porque não há nervosismo que dure para sempre nem mãe que, um hora, não se lembre que também gosta daquilo tudo.

Além do quê, minha mãe quase nunca cumpriu as barbaridades que prometeu.

9 comentários:

Anônimo disse...

Nem a minha!
Ainda bem!!

Anônimo disse...

Adorei! Mãe é assim mesmo promete e nunca cumpre certas barbaridades (para alegrias dos filhos), mas como mãe hoje sinto que tudo é apenas uma explosão do susto que levou, depois ela esquece.
Tô com saudades suas!!!!!
Bjinhos

Teresa Amorim disse...

Tadinha da Mimosa que perdeu o dente.

Gosto muito das histórias que vc conta e principalmente as da sua infância.

A sua mãe ainda mora no ES?

Bjs

Anônimo disse...

E eu lendo só ouvia o barulho das panelas, do grito e do ganido e o silêncio do menino e da cadela escondidos até tudo passar.
O senhor tem o dom de transportar quem o lê para dentro da cena, nossa!

Anônimo disse...

Tudo muito engraçado, tudo muito lírico. :)

Anônimo disse...

Esqueci de dizer que a ilustração tá perfeita. ;)

Anônimo disse...

Praticamente vi a cena acontecendo e foi muito engraçada.Será que todas as mães falam as mesmas coisa? Por sinal a sua é o maior barato.

Anônimo disse...

Estou chorando de tanto rir imaginando a cena, adorei o trecho,"minha mãe tentava sair do meio do desencontro e Mimosa tentava entender..,"
Eu também tive que aprender acordeão e detestava, ia p/as aulas embaixo de sopapo, oh instrumentinho chato!
( tirando o do Dominguinhos).
Promete que qdo for p/o Irã não vai deixar a gente na mão, por favor!!!

Jussara disse...

Ri tanto que compensou a tristeza do anterior. Como já disseram aqui, você consegue nos transportar para dentro da história. Vi cada detalhe enquanto lia. Um barato.