10.11.2005

O inexistente





O quintal da casa era um mundo inteiro, com divisões administrativas e até mesmo étnicas. A parte da frente, por exemplo, era o território bem cuidado das roseiras, dos novelos de hortênsias, das abelhas, besouros, beija-flores e moscas. Era de lá também que partiam todas as borboletas do mundo, em bandos, para povoarem terras muito distantes e eu acreditava que iam para a Ásia, Canadá, Vitória e a baía da Guanabara. O cheiro de flores e rosas era sempre forte e meu pai controlava o ritmo natural das coisas.

A parte dos fundos, era a terra dos cachorros, dos passarinhos no viveiro, da araponga pendurada num poleiro grande, dos porcos no chiqueiro. Um pouco mais afastado, num vale desconhecido por mim, e totalmente desorganizado, com tufos esparsos de erva-cidreira, capim-gordura, pés de cana e almeirão, ciscavam as galinhas, piavam os pintos, se exibiam os galos e repousavam os ovos.

Depois do portão de outra cerca, que dividia o mundo em dois, começava a segunda parte do quintal, o campo das árvores, das frutas, das taruíras ligeiras. O campo só acabava quando começava o córrego, onde moravam os peixes pequenos.


E, em lugar nenhum, sem território aparente, com um jeito alheio de quem não pertence a nada, vivia ele, o inexistente. Sem se movimentar, sem percorrer os territórios das flores, dos cachorros, dos pássaros, das galinhas, das árvores, ele surgia. Eram instantâneos. De repente, ele, agachado em cima da mesa da varanda, com as pernas recolhidas debaixo do corpo. Subitamente, ele, lambendo as patas em cima do muro. Num piscar de olhos, ele, preparado para o bote no peitoral da varanda grande, observando o vôo dos beija-flores.


Tinha nomes, mais de um. Era Bichano. Ele nunca vinha. Era também Bichaninho, e ele continuava desaparecido, podendo, talvez, entrar na casa pela janela do banheiro, que dava para a horta, outro território, só que administrado apenas por minha mãe. As folhas verdes e úmidas das alfaces gordas eram, na verdade, o dossel da cama dele.

Mas respondia quando, com os lábios espremidos um contra o outro, a gente dizia o seu nome preferido, que era Psi-psi-psi-psi. E aparecia sem se roçar nas pernas, sem andar em círculos, sem emitir som. Apenas surgia sentado, em cima do rabo do fogão-à-lenha, como se entrasse em sala de trono e aguardasse, com certo tédio, com controlada soberba, com a paciência exigida pela nobreza, a voz dos súditos. Mas a minha mãe era impiedosa com as majestades e sabia fazer o pano-de-prato estalar como um chicote no ar. Ele, então, alçava vôo pela janela e ia cuidar do restante do reino.

Quando a noite começava a chegar, quem primeiro escurecia era o córrego, que se tornava rio de caudal misterioso, emitindo sons que atravessavam todo o quintal até entrar na sala. Depois, as galinhas, os pintos, os galos e os ovos iam dormir, com pequenos sons de multidão em discórdia que, mesmo assim, se acomoda em quarto pequeno. Os passarinhos encolhiam os pescoços. A araponga emitia a última martelada e fechava os olhos. Os cachorros se deitavam.

Eu estava no quarto. Meu pai tinha viajado, e seria eu o homem da casa se esse cargo não fosse ocupado, em caráter permanente e irrevogável, pela minha mãe, que se aproximou de mim e disse, em voz baixa, quase sussurrada:

-Tem um homem no quintal.

A casa era um castelo trancado. Dentro, eu andava na ponta dos pés, sem rumo. A escada dos fundos da varanda de madeira rangeu. Minha mãe parou, hirta. Com o braço estendido, sem dizer nada, apanhou a espingarda, escondida atrás da estante dos romances e das enciclopédias. A arma era sempre usada como cajado, porrete ou bastão, nunca como instrumento para soltar tiros, que era coisa que nem eu nem minha mãe sabíamos como fazer.

Ela me afastou com a mão espalmada e caminhou até a porta da cozinha. Girou lentamente a tramela. Com o dedo indicador erguido e duro, vibrando da direita para a esquerda, eu tentava dizer a ela que não abrisse a porta. Mas ela abriu. O homem, que era ladrão de quintal, assaltante de miudezas, e que subia as escadas, degrau por degrau, rodeado dos cachorros que apenas cheiravam o pé dele, parou quando ouviu o barulho da porta sendo aberta. Minha mãe, com a espingarda segura pelo cano, ainda conseguiu suspirar fundo, diante do vulto mais ou menos alto.

Na escuridão, três pares de olhos se encontraram, em um segundo antes da ação: os dele, os da minha mãe e os de Psi-psi-psi-psi, que, sentado de maneira inexistente no parapeito da varanda, arqueou as pernas de músculos poderosos, acertou a mira e pulou de uma vez.

Grudou-se com as garras afiadas à nuca do homem. Emitia urros, gemidos, gritos dilacerantes. O homem pulou até o quintal. Os cachorros, agora, latiam e se agitavam. No pulo, para não cair, Bichano grudou-se mais ainda ao pescoço da vítima. Enfiou as garras, cravou os dentes, agitou com força e rapidez as patas traseiras, que rasgavam a gola da camisa. O inexistente havia se tornado um escarcéu.

O homem corria pelo quintal e ele, Bichaninho, como um vírus grudado ao sangue, ia junto. Minha mãe rodava a espingarda no ar, os cães se afastavam, assustados, porque já tinham visto aquela mesma mulher em situações mais perigosas e agressivas. O homem pulou a cerca que levava para o quintal das árvores. Bichano, sem medo de alturas e saltos mortais, urrava. O homem pulou nas águas geladas do córrego e levou seu atacante junto. Os dois desapareciam na correnteza e voltavam à tona, como se fossem, os dois, jaguatirica brava e búfalo atacado na garganta.

Somente quando conseguiram chegar à outra margem, que dava para o campo de futebol, é que se soltaram. O homem, esfarrapado, ensangüentado, desfibrado, arranhado, mordido, tenso, assustado, dolorido e enxotado, sumiu na escuridão da noite de cidade sem postes de luz. Psi-psi-psi-psi, olhou para o córrego e lembrou-se, então, que não gostava de águas. Com o rabo em pé, procurou a parte mais estreita do canal e pulou de volta.

As mãos de minha mãe tremiam enquanto ela girava a colher para misturar o açúcar na água dentro do copo. Eu, lá fora, acalmava os cachorros.

E, subitamente, lá estava Psi-psi-psi-psi, no escuro, sentado no peitoral da varanda, lambendo, imponente, as patas mortais.

3 comentários:

leila disse...

amei!!!!! posso copiar no Miaumanaque? cê já viu? o endereço é
http://www.sosgatinhos.com.br/livro/poekat.htm
adorei muito!!!!

Anônimo disse...

Psi-psi-psi-psi era um ótimo gato de guarda!

Meu Maneco felino também não atende por nenhum nome a não ser psi-psi.

Estou adorando isso aqui.

Tô na fila do livro.
bjos!

leila disse...

nossa, Ribondi, li meu post anterior e achei que parece um spam ignóbil. não foi minha intenção, era pra voCê ver se permitiria ou não que eu copiasse. mas mesmo isso soou esquisito agora, o livro nem foi publicado. desculpa tá?