O Zé e a Glória nem sabiam se eu gostava de cachorro, mas também não sabiam que eu gostava de roça. Ficaram surpresos quando disse para eles que aparecessem na Vila Mateus, a casa branca de Olhos d’Água, o lugarejo velho, dedicado a Santo Antônio, à direita de quem sai de Brasília para Goiânia, e, para isso, é preciso largar tudo, asfalto, cidades, sinalização e se embrenhar Goiás adentro, até parecer que não tem mais para onde ir, e, aí, é lá.
O Zé e a Glória chegaram de motocicleta, mas ela, em vez de na cabeça, levava o capacete pendurado no antebraço, como uma cesta, e, dentro, uma coisa pequena, redonda, felpuda, como duas bolas. Uma, a cabeça e a outra, o corpo. Quando pus as mãos dentro do capacete, ele me esperava com movimentos apressados do rabo, apreensivo e pronto para ser feliz. Já era o Lula, o meu Lula. Sendo eu, o Alexandre dele.
Foi pequeno por muito pouco tempo, porque parecia querer ser adulto. E quando cresceu, mostrou o que era. Porte médio, pêlos longos cor de caramelo e uma gola branca que se estendia, caprichosa, sobre o peito. O focinho era afilado, o que garantia um perfil esguio, com ares de alta velocidade. Ninguém sabia nada da família dele, porque tinha sido comprado num bar, às três horas da madrugada. Mas parecia de raça. Em algum galho alto da árvore genealógica, devia haver um collie elegante que observava o Lula.
Ele me ensinou coisas importantes. Foi ao lado dele que conheci o estado de Goiás, para entender que, ao contrário do que dizem as ciências, a terra não é redonda. É plana, reta, enfeitada por relevos suaves, córregos prateados, buritis espalmados, ipês amarelos, lilás, vermelhos.
Também foi ele que me ensinou a técnica de procurar poços escondidos no cerrado e ficar à espera do momento certo. Imóvel, em silêncio, é preciso aguardar até que o sol chegue no ponto certo, em temperatura e localização, para pular na água, de uma vez. Eu, com um grito, as pernas dobradas à altura do joelho. Ele, com um latido firme, um só, o rabo tenso, firme.
Aprendi a andar mato adentro, sem me preocupar com cobras ou arranhões graves. Era só mantermos o combinado: eu olhava o mundo. Lula cheirava a paisagem. Um completava o outro.
De noite, na varanda, quando os grilos pensavam em voz alta, os sapos arrotavam e os abacates explodiam ao bater no chão sem luz, ele me ensinava as coisas silenciosas. Lula era contemplativo. Nunca abanava o rabo em excesso, pulava e saltava apenas o suficiente para mostrar contentamento e, depois, se recolhia. De noite na varanda, mostrava a maneira correta de olhar para nada, e enfrentar uma hora, duas horas, três horas com a resignação da felicidade absoluta.
Pelo Lula, desejei ser cão. Invejei os pêlos dele, que brilhavam como seda pura. Quis ser apenas o essencial, que, sem nada, tem tudo. Sonhava me deitar na laje fresca ou debaixo da cama ou no meio da cozinha e estar satisfeito. Planejava ter fome até esperar pela comida com os olhos cheios de atenção e brilho, como se a fome fosse o único desejo sincero. E pretendi amar como se nada, fora do amor, fosse real, plausível ou sustentável.
Um dia, o Lula se coçou. Com a pata traseira, arranhou a orelha. No outro dia, a coceira estava lá. Uma semana depois, foi para o hospital em Brasília. A coceira já marcava as orelhas, a barriga, o peito, as coxas.
Levaram o Lula para uma mesa alta, de ferro. Ele esperou. Rasparam a pele, tiraram sangue, examinaram cocô e xixi. Não era alergia. Não era sarna. Não era zequizira. Não sabiam o que era. Ele voltou para casa, em Brasília. Sentou-se para se coçar.
Não demorou muito para voltar ao médico. Desta vez, já entrou no hospital com a cabeça baixa, um jeito lento e servil de andar. Ele, mais que os médicos, sabia que era grave. Outra vez, tiraram raspas da pele, sangue, xixi, cocô, temperatura.
Em casa, o pêlo começou a rarear. O rabo, sempre em pé e curvado na ponta, como uma pluma, se tornou apenas um fio de carne escura. O peito estava marcado pelas unhadas. Ele se sentava, se levantava, girava sobre si mesmo, se coçava, voltava a se sentar e, outra vez, muitas vezes, se levantava. Ia da cozinha para o corredor, de lá para o banheiro, entrava no quarto, buscava os cantos.
Uma manhã, ele cheirou mal. Dei banho. A água aliviava as coceiras. O cheiro apaziguava-se, mas, em seguida, voltava, intenso, ácido. Eu esfregava os cremes na pele dele. Ele me olhava com paciência.
Quando lindo, as pessoas chegavam perto, perguntavam nome, idade, raça, queriam saber se tinha filhos. Seis meses depois do primeiro sintoma, ele caminhava sozinho, como se sua passagem fosse uma ousadia de lepra.
Até que não quis mais sair de casa. Queria ficar sozinho. Às vezes, eu me abaixava perto dele e o abraçava. A felicidade destes momentos era quieta, imóvel. Depois, me lavava para tirar o cheiro insuportável do meu cachorro que se desmanchava vivo.
Passados nove meses de visitas a todos os médicos da cidade, ele me chamou. Não tinha pêlos. Os olhos eram ainda felizes, como uma gratidão a tudo. Ficamos nós dois sentados, um ao lado do outro. Não chorei nem nada. Mas ele me lembrou os momentos mais bonitos de nós dois, cada um deles. Levantou a pata e me tocou. Depois, se coçou. Aí, eu me afastei. Pensei que fazer tudo, tudo por você, não era só buscar a salvação. Era perceber a total ausência de crueldade, a absoluta inocência que há nas coisas de morrer.
Lula tinha 11 anos e três meses. Foi uma boa vida. A minha, ao lado dele, foi.
6 comentários:
Ai, você arranca a alma e as lembranças da gente.. Vou dormir sentindo a presença boa de todos que já se foram.
Obrigada pelas leituras deliciosas.
História de cortar o coração.
Lindo o Lula, com coceira e tudo. Indiscutivelmente um ótimo amigo, como a maioria dos da sua espécie.
Lindo o texto.
Obrigada por compartilhar histórias tão lindas com pessoas que vc nem conhece, como eu.
Um abraço.
- Sabrina (Curitiba)
"... a absoluta inocência que há nas coisas de morrer."
E é isso.
E isso é tudo.
Alexandre tanto linda como triste, mas assim é a vida há momento bons e os ruins fazendo a gente se construir, crescer, se embelezar. Parabéns por mais este conto belíssimo.
Bjos
Já ia reclamar que você havia nos abandonado, mas se foi para escrever essa coisa tão linda, está completamente perdoado.Que sentimento puro e lindo que só os animais nos dão, sem cobranças.Sabendo que estou sendo repetitiva: parabéns, parabéns.
Ribondi, eu não estava pretendendo chorar hoje, mas a história do Lula me tirou do sério e me lembrei do cachorro do meu irmão que morreu de tristesa menos de um mês depois do dono ter nos deixado com apenas 13 anos de idade.
Um gde abraço
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