10.27.2005

A visita

-Então, conta outra vez.

Do que ela contou, várias vezes, ao longo dos anos, ficou a lembrança. As imagens surgiram aos poucos, sem convicção, sem cores fortes. Mas, agora, são completas, visíveis:

A gata estava ali parada na porta dos fundos, que dava para o quintal. Viu e deu o sinal. Estava sentada, apreciando a vida, quando se espremeu toda e ficou arrepiada da nuca até a ponta do rabo.

O bebê estava no meu colo. Vi o susto da gata, mas ela estava calma, achei que não era de ser nada. Prestei atenção e, lá de fora, não vinha barulho, só aquelas coisas de quintal mesmo. Fiquei de olho porque gato é gato, não se arrepia por nada. Os outros dois meninos estavam brincando no quarto. Coisa de criança. Pulavam de uma cama para outra, para ver quem caía primeiro e se espatifava no chão.

A gata veio para trás, sem tirar os olhos e sem desmanchar o arrepio. Ficou naquela posição de ataque e eu achei curioso, esquisito mesmo:

-Iá, que coisa. Que será que foi?

Tentei me levantar da espreguiçadeira, uma de pano branco com listras. Não achei apoio, não tinha onde. Tentei de novo e desisti. Com um bebê nos braços, não tinha como. Esperei. A gata parou, o rabo em pé.

-E o que era?

-Entrou pela porta da cozinha. Vinha em tique-taque.

-Em quê?

-Sem ser em linha reta.

-E o que é que vinha em ziguezague?

-A cobra.

Lenta, toda mole, se esfregando, com a língua de fora, porque cobra é cega, não vê, acho que nem olho tem. Parou ali mesmo, ainda com metade do corpo na escada. Era precavida. O único som, no quintal, na casa toda, até na rua, era bem fininho, de criança. Os dois meninos que gritavam para dizer que iam pular. Nem sabiam de nada.

Um calor. Mimoso do Sul fica muito quente mais para o fim do ano. É que Mimoso é no meio das pedras, acharam um buraco no meio delas e fizeram uma cidade. E o sol vem, bate nas pedras e espalha o mormaço. Entra por debaixo da saia, vai até no coração. A gente fica com um jeito de ser de calor.

-Deu medo quando viu a cobra?

-Medo, medo, não. Mas sei que é perigoso, quem é que vai parado com o bicho daqueles chegando?

Nisso, joguei de novo o peito para frente, para me levantar da espreguiçadeira baixa, que estava na cozinha. A cada ida minha, o bebê abria a boca querendo o bico do peito. E a cobra ia entrando pela casa.

Lá dentro do quarto, os dois gritavam sem parar. Era assim um som que parecia espetada de agulha, fino, que incomodava, mas sem ser forte. Chamei um, o mais velho, o que tinha 11 anos:

-Paulinho...

-O mais velho é o Carlinhos.

-Isso. Carlinhos!

Mas era a hora do pulo mais importante, para cair sentado na cama que tinha encostada na outra parede, porque os dois dormiam no mesmo quarto. Chamei:

-Carlinhos...

Ele ouviu, sem sair do lugar. Eu estava arrepiada feito a gata e, aí, tive a idéia de dizer para trancar a porta que a brincadeira ia ficar melhor.

-Ele trancou?

Quem dera. Ele fez foi não entender por que ia ficar melhor. Por isso desceu da cama e foi na cozinha, perguntar. Só não gritei por causa da bicha que estava ali. Falei baixo porque quando a gente tem filho novo não dá para sair gritando feito louca:

-Volte pro quarto, agora. Tranque a porta!

Ele ficou lá me olhando na espreguiçadeira, o irmão mais novo no meu colo. Olhou a gata, e só aí viu a danada que estava inteira dentro de casa. Deu um grito só. Quis correr na cozinha.

Quase consegui me levantar, mas a espreguiçadeira se fechou e eu fiquei dentro, apertada. O bebê procurou novamente o bico do peito que roçava na carinha dele. Dei uma ordem e bastou:

-Volte para o quarto! Fecha a porta!

Ele voltou e se trancou com o irmão. Os dois ficaram encolhidos na cama, atrás dos travesseiros. Os gritos iam ficando cada vez mais finos. Dei outro solavanco com o corpo. Só que desisti. Fiquei ali, parada. E a gata dando aqueles miados compridos.

O mundo inteiro era da cobra. Comprida, forte, ela se esfregava em tique-taque no chão fresco da cozinha, porque era dia de calor abafado. A gata pulou em cima do rabo do fogão. A cobra parou, elas param quando sentem movimento, para saber onde é. Depois, passou outra vez a deslizar no assoalho fresco, quase gelado. Ai, que horror. Fui ficando muito nervosa. Era um silêncio impressionante. Eu ouvia ela pondo a língua de fora.

Mas os gritos dos outros dois guiavam a cobra. Ela se espichava, se encolhia, escorria pela casa. Esbarrou na minha sandália e parou. Devagarinho foi mudando de direção, indo mais para lá, mais para cá, até esbarrar no meu pé. Deu uma parada. Ela se preparava e eu também. Ela começou a se mexer, eu de olho, mas sem me mexer. Pensei no que fazer.

-E fez o quê?

-Nada.

E a cobra escorregava, sem pressa, por cima dos meus pés.
Demorou muito até todo o corpo da cobra passar e eu, ali, sem dizer nada, sem respirar alto, sem mostrar que estava a ponto de perder as forças. Não podia fazer nada, fiquei dura, de boca fechada. De repente, veio um grito do quarto:

-Já dá pra sair?

A cobra também sentiu que a voz vinha de lá. Encolheu o corpo comprido e se espichou no assoalho da cozinha. Foi aí que vi e notei a fresta por debaixo da porta do quarto. Era casa velha. Em dois tempos, medi largura da fresta, medi a cobra. Dava para ela passar por debaixo.

Dentro de mim, eu só pensava nos meus dois filhos, lá no quarto, em cima da cama. Pensava que o Carlinhos não ia saber nem como agir numa hora destas, ele era mais velho e tinha que ajudar o Xandinho.

-Paulinho...

-É, ajudar o Paulinho, o do meio. Que naquele dia mesmo tinha ido no barbeiro, cortar os cachos loiros.

Mas se eles não iam saber o que fazer, foi um berro só:

-Sai pela janela, leva seu irmão.

A cobra foi se aproximando da porta do quarto. A gata se mexeu em cima do fogão, não se agüentava mais. Aflita. Abria a boca, mostrava os dentes bem finos e chiava pronta para se defender se fosse atacada. Acho que meu grito confundiu a cobra:

-Pula! Pula agora!

Ouvi o barulho da janela, quando eles abriram. Ouvi os pulos, os gritos, a corrida pelo quintal. Quando entraram pela porta da cozinha, de mãos dadas, a cobra, lenta, até calma, se virou para trás. Espichava a língua para saber aonde ir.

-Depressa, aqui.

O mais velho veio, tirou o bebê do meu colo e só aí deu para me levantar. A espreguiçadeira se desmontou no chão. Acho que eu tremia toda, não conseguia enfiar os pés nas sandálias. Até tentava, mas, em vez de calçar, empurrava para longe com os dedos, me confundia toda. Saí descalça.

-Vamos embora. Vem, vem.

Mas tudo isso eu dizia baixinho, até para não assustar mais os meninos. E a gente foi para o quintal, com a cobra vindo também. Nisso, a gata pulou do fogão e parou na porta. Veio a cobra, e a gata se levantou, com as patas para frente. Miava como se estivesse doida. Carlinhos é que dizia:

-Sai daí, sai daí.

Mas a gata ficou lá, na porta. Até que a cobra mudou de rumo e foi embora, pela frente da casa. Só aí a gente voltou e, de noite, os meninos gritavam sem parar, contando para o pai. Ninguém quis dormir separado. Foi todo o mundo para a mesma cama. A gata ficou no quintal, de olho.

-E eu? Não gritei, não fiz nada?

-Nada, era como se você soubesse, o tempo todo. Não tinha nada mais silencioso lá em casa naquela hora do que você e a cobra.

6 comentários:

Anônimo disse...

Então vem desde criança essa relação especial com os bichos?

Anônimo disse...

De novo assinei com o nome do meu blog, ainda estou meio-dormindo, desculpa, :).

Anônimo disse...

Ribs,esse conto nao da´pra ser lido qdo se tem filho pequeno e mora-se na roca...suspense caipira,afe!me suei toda.

Anônimo disse...

Bela memória!!!

Teresa Amorim disse...

Já descobri a quem vc puxou?

Bjs

Anônimo disse...

Não havia rotina na sua vida. Quanta aventura! Conta mais!